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A COALIZÃO NEOFASCISTA, A RETÓRICA DA POLARIZAÇÃO E OXIMORO LULISTA
Idelber Avelar

RESUMO

Um espectro paira sobre a retórica política brasileira dos últimos anos, o tema da “polarização”. Denunciada por um certo sentido comum centrista como a fonte de todos males, e ao mesmo tempo desentendida por boa parte da esquerda como uma mera cortina de fumaça, a polarização alcançou o estatuto de termo divisor de águas e identificador de tribos no interior dos antagonismos políticos brasileiros. Este artigo revisita o conceito de oximoro lulista, desenvolvido em um trabalho anterior (cf. Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI, 2021), para repensá-lo à luz da ascensão neofascista dos últimos anos e da consolidação do tema da polarização como o marco dominante na retórica política brasileira. O oximoro lulista não reconstrói as polarizações herdadas em outros termos nem as nega, mas as reinstala como afirmação simultânea de coimpossíveis, em uma estratégia de gerenciamento de antagonismos que funcionou notavelmente entre 2005 e 2013. O artigo revisitará a estratégia do oximoro lulista na era de ascensão do neofascismo brasileiro, que emergiu investindo no fomento de antagonismos em tempo integral e que continuará atuante e presente na sociedade brasileira, independente do resultado das eleições presidenciais.


POLARIZAÇÃO E ANTAGONISMO

Na entrevista concedida ao Jornal Nacional em 25 de agosto de 2022, a cinco semanas da eleição presidencial, Lula disse que “feliz era o Brasil, e a democracia brasileira, quando a polarização neste país era entre PT e PSDB”. O diagnóstico vinha como resposta a uma pergunta de William Bonner, capciosa mas não totalmente desamparada nos fatos, acerca das expectativas que tinha Lula de convivência com seu vice tucano, Geraldo Alckmin, já que outrora ele havia sido tão hostilizado pela militância petista. “A gente não se tratava como inimigo, a gente se tratava como adversário” foi a dicotomia a que recorreu Lula para diferenciar a polarização antiga da polarização atual, diferença exemplificada pela ilustração experiencial que sempre foi uma das estratégias retóricas de Lula: “se encontrasse em um bar, eu não teria nenhum problema de tomar uma cerveja com o Fernando Henrique, com o Serra, com o Alckmin”. A réplica de Bonner, de que Lula não teria problemas, mas a militância de seu partido teria, é driblada por Lula com a tradicional metáfora futebolística, que nessa entrevista demorou trinta minutos para aparecer: “militância é militância, militância é como torcida organizada. A torcida organizada não é a torcida do Flamengo, a torcida do Vasco”. A distinção que propõe Lula entre a torcida do clube (a torcida “de verdade”) e a torcida organizada é conhecida por qualquer boleiro, e acrescenta mais uma camada de sentidos ao rico mosaico semiótico que foi a interação no Jornal Nacional. Lula poderia ter negado, e com bons argumentos, que sua militância tivesse hostilizado os tucanos em qualquer nível tão grave assim. Lula poderia ter reconhecido que essa hostilidade existiu, mas que com os anos ele, seu partido e sua militância (e também os tucanos, supõe-se) aprenderam outro registro de convivência. Mas Lula escolhe uma terceira alternativa, como que dizendo: “a hostilidade existiu, eu reconheço, mas não importa, quem fazia era só a torcida organizada”.


A analogia deveria, evidentemente, ser insultante para qualquer militante petista. Torcidas organizadas podem incentivar o time e, no limite, ter algum papel no desenlace dos acontecimentos dentro das quatro linhas, por exemplo ao alterar o estado anímico dos jogadores com o seu incentivo. Mas esses são casos raríssimos, e é compreendido que as torcidas, mesmo as organizadas, não passam de espectadoras dos acontecimentos, que podem manifestar entusiasmo ou reprovação ante eles, mas que não têm o poder de alterá-los. Ora, o fundamento primeiro da ideia de militância, particularmente da militância de esquerda, cuja trajetória histórica em muito antecede Marx, é de que a luta muda a vida. Aceita-se como tácito o axioma anunciado por Marx no 18 Brumário de Luís Bonaparte – “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” –, mas também é tácito que as orações principal e subordinada podem ser invertidas, de tal forma que se produza um axioma igualmente verdadeiro, a saber: todos os seres humanos atuam sobre condições legadas pelo passado, mas a práxis pode alterar substancialmente a realidade legada por esse passado. Entre a indiscutível e reversível verdade do axioma de Marx aplicado de maneira imediata à política e a escolha retórica feita por Lula no Jornal Nacional, é recomendável que fiquemos com Lula para entender o Brasil de hoje. Qualquer militante com um mínimo de lucidez de leitura sabe que é zero a possibilidade de que a militância altere significativamente as escolhas e decisões da campanha de Lula. O que importa aqui é que “polarização” passou a ser objeto de menções não críticas, não irônicas, e não desmascaradoras no discurso do líder de uma das coalizões interiores a essa polarização. Não se trata de uma coalizão entre outras, mas daquela que é liderada pelo único partido político brasileiro que detém simpatias de um segmento significativo da sociedade (e a antipatia de outro largo segmento).


A fala de Lula sobre a polarização no JN foi um marco, porque não se tratou de uma menção qualquer. Durante longos cinco minutos, para uma audiência de dezenas de milhões de espectadores, o foco da discussão foi o próprio conceito de polarização, e assim foi por iniciativa de Lula. Ou seja, não se tratava de discutir uma polarização qualquer, como a que opunha petistas e tucanos, ou como a que agora opõe bolsonaristas e antibolsonaristas. Lula escolheu falar sobre em que consiste a polarização enquanto tal. Ali passou-se da expectativa, presente em muitos, de um discurso histórico, rememorativo, do tipo mais comum em Lula, para a realidade de um discurso filosófico, conceitual:


a polarização é saudável no mundo inteiro, tem nos Estados Unidos, tem na Alemanha, tem na França, tem na Noruega, tem na Finlândia. Tem polarização em tudo quanto é lugar […]. Não tem polarização no Partido Comunista Chinês. Não tinha polarização no Partido Comunista Cubano. Agora, quando você tem democracia, quando você tem mais que um disputando, a polarização é saudável. […] O que é importante é que a gente não confunda polarização com o estímulo ao ódio.


Em uma só cajadada, Lula matava dois coelhos: por um lado, abandonava qualquer possível associação entre sua candidatura e os regimes historicamente comunistas, em um contexto em que o espantalho da foice e do martelo já havia sido amplamente utilizado pelo bolsonarismo na eleição anterior. Ao mesmo tempo, reivindicava a polarização como essencial para o funcionamento da democracia. A escolha de Lula pode ter surpreendido boa parte da esquerda, acostumada a realizar a operação de demonstrar que não há simetria entre os dois termos da polarização, e que esta seria, portanto, uma espécie de falso nome, de signo linguístico sem referente, ou ‘lenga-lenga’, na definição de Paulo Arantes (2014). Do ponto de vista do que havia sido, na esquerda, uma reiterada desconstrução das falsas simetrias, marcada por certo primarismo, a singular entrevista de Lula trouxe uma novidade. Lula não recusou o conceito de polarização como um signo sem referente ou um instrumento de mistificação, e o reivindicou como tema a ser defendido, enquanto nome de um estado saudável das coisas.


No meu uso do termo, aproximo-me de Lula e me distancio do ensaísmo de esquerda sobre polarização, no sentido em que, nas páginas que seguem, o termo não aparece entre aspas para designar uma espécie de truque ilusório dos meios de comunicação de massas que criaria uma falsa simetria, ou uma sorte de signo sem referente ou discurso mistificador. Se o espírito fosse esse, metodologicamente o recomendável seria não abordar o conceito, já que é por demais tedioso repassar a estratégia que se limita a demonstrar que o grosseiramente diferente não é comparável ou equivalente, que a distância entre um ponto extremista e um ponto democrático do espectro político não é ou não deveria ser o marco de nenhum genuíno centro, ou que apenas um dos lados é extremista. Em contraste com essa bibliografia, e em sentido não muito diferente do utilizado por Lula, polarização nomeia aqui a representação afetivo-eleitoral do antagonismo político na sociedade. “Maior polarização” aqui quer dizer a diminuição da curtose, ou seja, do espaço da dispersão entre duas “opiniões” (que aqui, e esse é o primeiro deslocamento significativo, prefiro chamar de polos de um antagonismo). Os antagonismos existirão sempre em uma sociedade complexa, moderna e democrática. A polarização exacerbada, não necessariamente entre dois extremos – uma eleição pode estar polarizada entre a extrema-direita e a centro-esquerda, por exemplo, como aliás tem sido o caso no Brasil em 2018 e em 2022 –, é apenas uma entre várias formas possíveis de tradução dos antagonismos.


Ancorado em um trabalho anterior (Avelar, 2021), sugiro que o antagonismo político no Brasil: a) tendeu a permanecer mascarado nos corredores do pemedebismo, sendo a bibliografia politológica sobre o presidencialismo de coalizão uma espécie de naturalização desse mascaramento; b) foi capturado no discurso-prática lulista de forma contrastante ao período em que o tucanato “liderava o atraso”; o petismo, com força de militância real na sociedade, incluiu o antagonismo na equação, recorrendo a uma estratégia retórica oximorônica, que exacerbava os dois polos de tal forma que, quanto mais se atacavam as Organizações Globo nos comícios e blogs das bases, mais se nomeavam Hélios Costa para Ministérios chave do governo; c) reapareceu na coalizão neofascista vitoriosa nas eleições de 2018, que cultivou a estratégia retórica de fomentar o antagonismo em tempo integral, de tal forma que o bolsonarismo passou a representar, para amplas massas plebeias e de classe média, o nome da própria possibilidade de antagonizar enquanto tal, uma espécie de metáfora sempre disponível para “ser contra”.


O antagonismo foi, então, mascarado nos corredores do pemedebismo durante toda a Nova República, foi administrado como um oximoro regulado no período lulista, com notável sucesso entre 2005 e 2013, e ressuscitou como operação incessante, em tempo integral, em mãos da coalizão neofascista vitoriosa em 2018. Entre uma data e outra, massas verde-amarelas zanzaram como zumbis em busca de um líder antipetista a quem abraçar, e um dos argumentos deste trabalho é que não era uma fatalidade que esse líder fosse um neofascista. Começamos com o lembrete de que apenas o terceiro desses momentos, o do bolsonarismo, teve lugar em uma sociedade já altamente polarizada, em polarização da qual o bolsonarismo e o lulismo, sem ser simétricos, sem ser equidistantes do centro e sem ser moralmente comparáveis, simultaneamente nutriram e da qual comparavelmente se alimentaram.


A POLARIZAÇÃO E O ANTIPARTIDÁRIO NAS CIÊNCIAS SOCIAIS E NO JORNALISMO

Em pesquisa recente, Pablo Ortellado, Marcio Moretto Ribeiro e Leonardo Zeine apontaram a relativa ausência de bibliografia brasileira sobre polarização que não esteja ligada à polarização do voto. A ciência política brasileira estudou abundantemente a polarização do voto à luz do antagonismo eleitoral entre PT e PSDB, e na bibliografia brasilianista essa tradição culminou em obras como Partisans, Antipartisans, and Nonpartisans: Voting Behavior in Brazil, em que David J. Samuel e Cesar Zucco constatam a relativa escassez de estudos da figura do antipartidário, essencial para se entender o Brasil contemporâneo, em que o antipetismo passou a ser não apenas uma identificação, mas uma força política autônoma e em certo momento majoritária. No histórico de pesquisas sobre identificação partidária, são conhecidas algumas curvas: a maioria do eleitorado brasileiro mantém sua identificação com “nenhum partido” em níveis que oscilam entre 30% e a maioria absoluta, atingida em coincidência com as Jornadas de Junho, a identificação com o PT passa a ser a maior entre todos os partidos no final dos anos 1990 e jamais deixa de sê-lo; entre 1980 e 2012, a porcentagem de brasileiros que se identifica com o partido salta de 5% para 30%, que foi o seu pico, também coincidente com as Jornadas de Junho, quando se iniciou uma trajetória descendente que o levou a seu piso de 10% em 2015-16, antes de que voltasse a crescer a partir de abril de 2019, chegando a alcançar a 28% em 2022. Enquanto isso, a porcentagem da população que se declara antipetista passou de insignificante nos anos 1980 a ser uma força política mais numerosa que o próprio petismo em 2014. A própria bibliografia especializada costuma declarar-se pouco equipada para lidar com o fenômeno do antipartidário, como figura distinta do partidário e do não-partidário. Em todo caso, no Brasil a coisa se complica ainda mais por uma dimensão retórica não comumente atendida nas análises das ciências sociais. No Brasil, o antipetismo teve, em primeiro lugar, uma existência discursiva no interior do próprio discurso petista.


A partir do escândalo do mensalão em 2005 e chegando ao paroxismo com as Jornadas de Junho em 2013, o antipetismo foi menos um fenômeno presente e articulado enquanto tal na sociedade brasileira e muito mais uma menção constante na própria retórica petista, um epíteto de desqualificação no discurso do oficialismo. Por um bom tempo na retórica oficialista entre 2005 e 2013, o termo “antipetista” foi usado como epíteto para (des)qualificar, seguidamente, o genérico e pálido movimento anti-corrupção de 2005, a campanha de Alckmin em 2006, as críticas ambientalistas a Belo Monte no fim da década de 2000 e início da seguinte, e as restrições à política de subsídios de Dilma em 2011-13, entre outros. Até o mais submissamente confiável dos partidos-racha, o PSOL, que em nenhum momento se descolou da lógica e da leitura petista dos acontecimentos, foi sistematicamente desqualificado como “antipetista”, e só deixou de sê-lo quando demonstrou sua total fidelidade nos anos do impeachment (2015-16). De forma sobredimensionada, em particular na base militante oficialista, tanto presencial como digital, o epíteto “antipetista” foi usado para designar um espectro bem mais amplo do que o antipetismo então realmente existente mobilizava na sociedade (em 2002, por exemplo, o índice dos declarados antipetistas não era muito superior a 10%). Tal como “fascismo”, o “antipetismo” existiu discursivamente na esquerda antes de ter raízes sólidas no tecido social. Seguindo-se à repressão a Junho, à progressiva captura judicialista dos anseios das Jornadas e ao estelionato eleitoral de 2014, o antipetismo real, entendido em sentido estrito e sem hipérboles, ia aumentando os seus índices de identificação até chegar a quase 30% e superar o próprio petismo por largas margens em 2015-16, antes de que tivesse lugar – especialmente depois de abril de 2019 – uma paulatina recuperação do petismo. Curiosamente, enquanto acontecia a ascensão do antipetismo, a estratégia retórica petista passava a ser negar que os acontecimentos pudessem se mover segundo lógica ou sentimento antipetista realmente existente na sociedade. Para além da dificuldade que a figura do antipartidário causa às ciências sociais, tem-se no Brasil esse singular fenômeno: o único partido que mobiliza identidades negativas já havia criado, de forma hiperbólica, em seu próprio discurso, a figura do antipartidário, em um momento em que a identificação antipetista realmente existente na sociedade era baixa. Quando a identificação antipartidária passou a ser efetivamente alta na sociedade, a estratégia do partidário passou a ser negar que esse antipartidarismo realmente existisse. Eis aí um dos singulares imbróglios da polarização brasileira.


Na ciência política brasileira, é abundante a bibliografia sobre a polarização eleitoral, e ela é contemporânea a um processo em que, de forma sub-reptícia, o conceito de presidencialismo de coalizão foi passando a ser entendido normativamente, como um estado ótimo de coisas, e a polarização eleitoral foi apresentada como tendendo a acentuar-se em torno ao par PT-PSDB. Como sabemos, essa “tendência” não durou muito, mas um testemunho do devir-norma de certos modelos das ciências sociais pode ser encontrado no fato de que não foram poucos os cientistas políticos que ainda previam, já bem avançado o ano de 2018, que a eleição tenderia a se polarizar de novo entre PT e PSDB. Minha observação não é feita no sentido do gotcha! nem do Monday morning quarterbacking, o engenheiro da obra pronta. A observação vem de uma crítica fraterna – reconhecidamente externa à disciplina, mas não menos atenta – do fato de que, em meio a uma riqueza de materiais sobre o funcionamento do sistema político, os corredores do pemedebismo e as filigranas do presidencialismo de coalizão, a disciplina talvez tenha perdido o pulso das relações desse sistema político com a facticidade das ruas e com os movimentos reais da sociedade brasileira. O índice dessa possibilidade me veio ao escrever uma réplica a Fabiano Santos e Fernando Guarnieri no Journal of Latin American Cultural Studies (JLACS), no qual eu apontava que antes de sua terceira página sobre “o golpe parlamentar” os autores haviam utilizado o epíteto de “fascista” para designar, em sequência, os manifestantes de 2013 que protestavam contra os gastos dos grandes eventos, os cidadãos e cidadãs que carregavam cartazes “Não me representam” inspirados pelas acampadas espanholas, as multidões pró-impeachment de março de 2015, e os leitores dos três principais jornais paulistas e cariocas. O artigo de Guarnieri e Santos apareceu no final de 2016 e minha resposta foi publicada em maio de 2017. O termo ‘fascista’ tendo sido usado para designar um espectro tão amplo de sujeitos sociais, não surpreende que quando o fascismo de verdade chegou, ele o fez como uma carreta que atropelava desavisados que não se encontravam em condições de antecipá-la. Em 2016, enquanto transcorriam as publicações no JLACS, Bolsonaro já havia dado uma entrevista com ares de candidato para um YouTuber de extrema direita, Nando Moura, ex-aluno de Olavo de Carvalho e responsável por um canal com alcance de milhões de pessoas.


Para todas as vertentes do que poderíamos chamar a “teoria do golpe”, deve haver causado estupefação o empenho com que o petismo recusou-se a bombardear Bolsonaro no primeiro turno de 2018, em visível estratégia de ajudar a levá-lo ao segundo turno. O escancaramento da estratégia chegou ao ponto em que porta-vozes do mais puro oficialismo petista perguntavam retoricamente em público, já em 2018: “por que iríamos querer tirar Bolsonaro do segundo turno? Para perdermos as eleições?” sem suspeitar (ou talvez já suspeitando, nunca se sabe) que Bolsonaro só venceria no segundo turno contra o petismo. Nove entre dez analistas de esquerda capazes de colocar “polarização” entre aspas para sugerir a platitude de que bolsonarismo e lulismo não são simétricos (como resposta à platitude de que há que se buscar um meio-termo entre eles) são incapazes de apresentar um modelo analítico que englobe este fato, que permanece sistematicamente omitido nas análises: o petismo trabalhou ativamente para colocar Bolsonaro no segundo turno. Como a história contrafactual aqui é impossível, não sabemos se Bolsonaro o teria alcançado sem a estratégia petista de ajudá-lo ao longo do ano de 2018, assim como não sabemos se ele o teria alcançado sem a facada. Mas, tanto no momento em que apparatchiks petistas anunciaram o desejo de que Bolsonaro chegasse lá como depois, quando ele recebeu a facada, já era possível saber, por medições da polarização antipartidária, que a única chance de Bolsonaro era ter o petismo como antagonista no segundo turno. Essa genuína retroalimentação entre lulismo e bolsonarismo, pela qual o lulismo trabalhou declaradamente em 2018, permanece intocada nas análises que se limitam a demonstrar que “extrema direita não é equivalente a esquerda”. Sim, não há qualquer equivalência ou simetria entre o lulismo e a coalizão extremista e genocida que venceu as eleições em 2018. E o que exatamente o analista de esquerda desconstruidor de falsas simetrias espera que façamos com essa platitude ou marco zero consensual? Trabalhar para esconder as cadeias de retroalimentação é que não podemos.


Há um sentido em que não há simetria na polarização partidária brasileira, por certo, mas isso se deve a motivos diferentes do imaginado pela militância e pelo ensaísmo mais acrítico da esquerda. A polarização não é assimétrica por si, como se a condição de assimetria fosse uma sorte de verdade filosófica da polarização sob o capitalismo. A assimetria advém do fato de que no Brasil, em particular, apenas um partido desfrutou da identificação de um setor da população superior a traço nos últimos trinta anos. A parcela da sociedade que se identifica com o PT tem oscilado, mas quase nunca para menos que o dobro da soma de todos os outros partidos. Em geral, o partido detém identificação equivalente a várias vezes a soma dos demais. Em seu auge de popularidade, em meados da década de 2000, o PT desfrutava do apoio de 30% dos brasileiros em pesquisas de identificação partidária. Em meados da década seguinte, quando o antipetismo já havia passado a ser uma força política mais numerosa que o petismo, o PT perdera simpatizantes para a identificação “sem-partido”, não para qualquer outra legenda. Com a ascensão do antipetismo, cresceu no Brasil, não a identificação com alguma outra sigla, mas a enorme massa dos sem-sigla, agora já superior a 70%. Na verdade, a ascensão do antipetismo como força política autônoma coincide com a decadência da força outrora antagônica ao PT, o PSDB. Na Nova República tivemos, então, três pares de polarizações que não se confundem entre si, mas não deixam de interrelacionar-se: uma polarização entre petistas e tucanos, uma polarização entre petistas e antipetistas, que se sobrepôs à anterior e a fez caducar, e recentemente uma polarização entre bolsonaristas e antibolsonaristas, esta última consolidada apesar de que o PT continua sendo o único partido a despertar a simpatia e a antipatia de camadas da população que superam o traço estatístico (ou quem sabe não apesar de, mas justamente como função de, se nos lembramos do esforço feito pelo petismo para que Bolsonaro chegasse ao segundo turno). Todas essas polarizações se sucedem, é sempre bom lembrar, em um país caracterizado pelo mascaramento dos seus antagonismos sociais reais nos salões carpetados da negociata pemedebista. A última dessas polarizações, aquela construída pela coalizão neofascista, só pôde ter lugar, note-se, porque o petismo passou a ser percebido como o grande guardião do salão carpetado pemedebista. Não convém ignorar nenhuma dessas camadas.


MORFOLOGIA DA COALIZÃO NEOFASCISTA

Em um trabalho anterior (Avelar, 2021), sugiro que a principal tarefa nos estudos de bolsonarismo seria desbastar a teoria do erro, a saber, opor-se às leituras que, seja por sobredimensionar a importância da facada (ou pior, supô-la “combinada” com Abin, hospitais, imprensa, etc.), seja por automatismo adquirido na esquerda brasileira com o termo “golpe” no pós-impeachment de Dilma, seja por idealização do poder de espionagem da NSA ou sobredimensionamento do interesse dos EUA na Lava Jato, viram o bolsonarismo como a vitória de uma trapaça, uma distorção das regras do jogo, um golpe no sentido lato. É verdade que, pela primeira vez na Nova República, a eleição presidencial consagrou uma força política dedicada a trabalhar pela aniquilação da democracia enquanto tal. Mas não é menos verdade que a eleição de 2018 foi tão democrática como qualquer das anteriores, em qualquer sentido em que se use o adjetivo. A disparidade econômica entre as forças que disputavam foi menor que em 2014, a interferência da TV com maior audiência no resultado foi, sem dúvida, menor que em 1989 (se é que teve qualquer papel decisivo, concesso non dato), a montanha de falsidades que circularam por mãos da coalizão vitoriosa não foi maior que a de 2014, e assim por diante. Sem dúvida, a novidade técnica da eleição brasileira de 2018 – o encaminhamento em massa via Whatsapp – teve suas singularidades, que matizam, influenciam e ajudam a explicar a vitória bolsonarista em 2018, e não teria sido despropositado tentar impugnar Bolsonaro no TSE por violação da lei eleitoral, caminho que a oposição decidiu não trilhar. Mas, sem se reconhecer que o bolsonarismo traduziu (fascistamente, mas traduziu) um movimento real da sociedade brasileira, de raízes múltiplas, e sem se admitir que há, portanto, uma verdade antropológica no bolsonarismo, não se sai do lugar na análise.


Se o bolsonarismo não foi o produto de um erro, fraude ou golpe, o que foi ele então, na sua emergência? Foi um mosaico (Cesarino, 2020) que dependeu portanto do atamento entre vários blocos que, por coincidência de interesses em um contexto específico, se juntaram para compô-lo. Esse atamento aconteceu em temporalidades superpostas, conforme os blocos foram se juntando e se aproximando de Bolsonaro. A cabeça da chapa, claro, é uma constituição tardia. Ainda em 2013, quando Marco Feliciano era conduzido à comissão de direitos humanos da Câmara, Bolsonaro era a insignificante figura que se plantava à porta para bater boca com os militantes do PSOL. Não custa lembrar que, entre as multidões pró-impeachment, um grito por representação antipetista existiu no vácuo por mais de um ano. Em março de 2015, quando da multitudinária manifestação na Avenida Paulista, o PSDB negava-se terminantemente a falar de impeachment. Em agosto de 2015, com as ruas cheias de multidões ainda sem identificação política positiva (apenas com uma identificação negativa, a de antipetista), o famigerado Jornal Nacional lançava um editorial contra o impeachment, fato omitido em dez entre dez versões da teoria do impeachment como golpe, de Jessé Souza a Santos/Guarnieri. Somente em março de 2016, com atraso, os tucanos Aécio Neves e Geraldo Alckmin decidiram juntar-se às manifestações e, naquele momento, tão tardios, acabaram sendo expulsos das ruas, enquanto as multidões que haviam vagado buscando um líder antipetista que as representasse agora abraçavam um inexpressivo deputado do Rio de Janeiro, conhecido apenas pelo seu histórico corporativista de votação e por declarações militaristas, misóginas e homofóbicas. Esse é outro elemento com frequência esquecido nas teorias do golpe, do erro e da fraude: as multidões antipetistas de 2015-16 zanzaram por quase dois anos inteiros organizadas por associações da sociedade civil de direita, como o MBL e o Vem pra Rua, sem representação no sistema político-partidário, e sem um líder a quem abraçar. Do fato empiricamente comprovável que a multidão zanzou sem líder durante quase dois anos, impõe-se pelo menos a conclusão de que não era uma fatalidade que o líder abraçado terminaria sendo um fascista.


Os componentes do mosaico bolsonarista só se deixam entender no interior de uma temporalidade em que a polarização petistas-tucanos vai dando lugar à polarização petistas-antipetistas. Em 2014, por certo, o agronegócio já estava em peso com Aécio Neves, rompendo o pacto ganha-ganha que havia mantido com o lulismo durante toda a década anterior. Mas o lava-jatismo não existia, boa parte dos evangélicos ainda se dispunha a votar em Marina ou até mesmo Dilma, e o olavismo era um subterrâneo de internet desconhecido para quase todo o pensamento das humanas e sociais brasileiras (exceto para as poucas pesquisadoras que se já se dedicavam ao tema das novas direitas, como Camila Rocha, que pesquisa durante uma década para seu Menos Marx, Mais Mises). O bloco privatizante da Faria Lima ainda esperava que seus candidatos tucanos decolassem em algum momento. Tudo isso mostra que o sistema político pemedebista teve inúmeras alternativas, assim como as tiveram os tucanos e, muito especialmente, o petismo, em todo o seu arcabouço, de Lula à militância.


A coalizão que depois viria a ser bolsonarista não existia como tal, portanto, no planejamento de nenhum ator que controlasse o processo de antemão. Lembremos que a adulteração de contas, a represa artificial da inflação e a pesada campanha de difamação contra Marina Silva haviam sido suficientes para garantir a apertada vitória de Dilma em 2014, em uma eleição vencida com discurso quase-bolchevique (posto que só de tal posição é possível ver Marina Silva como “neoliberal”, que foi o menor dos insultos lançados contra ela), mas à qual a coalizão vitoriosa já sabia que se seguiria um período de governo de austeridade e rigor monetarista, afinal de contas o dinheiro acabara, por gestão atabalhoada da economia durante o primeiro mandato da própria coalizão vitoriosa. Em março de 2015, a reação ao estelionato eleitoral romperia a barragem que mantinha o antipetismo represado e as multidões verde-amarelas tomavam o espaço público. A manifestação era muito menos contra as medidas de arrocho e a retirada de direitos trabalhistas e muito mais contra a diferença entre essas medidas e o discurso eleitoral da coalizão petista vitoriosa em 2014. Isso certamente não era uma fatalidade em 2013, quando multidões voltaram às ruas no Brasil, mas já em março de 2015, pela primeira vez em 50 anos, desde a “Marcha com Deus e a família pela liberdade”, as ruas brasileiras voltavam a pertencer à direita.


Naquele momento, como vimos, o próprio Bolsonaro ainda era um ator insignificante em Brasília, cidade em que a extrema-direita se fazia representar por figuras como Silas Malafaia e Marco Feliciano. Apesar dessa insignificância na capital federal no momento em que tinham lugar as cisões e bifurcações nos antagonismos, também é verdadeiro que em Barretos Bolsonaro já era alguém. Já com frequência carregado nos ombros naquele espetáculo de masculinidade caipira fake próprio da cultura de rodeio, Bolsonaro então ainda falava do Bolsa Família como “dinheiro para vagabundo”, discurso que ele abandonaria por volta de 2016, quando a aspiração presidencial se tornou uma possibilidade. Na coalizão bolsonarista houve então, em primeiro lugar, o Partido do Boi.


Já existia o que poderíamos chamar Partido da Polimilícia – neologismo com que designo o bloco de interesses inseparáveis das polícias e das milícias, especialmente no Rio de Janeiro. Esse foi o outro pedaço do mosaico que teve caráter originário e se constituiu em uma espécie de núcleo primeiro do bolsonarismo. É o núcleo familiar bolsonarista por excelência. Milicianos, policiais, ex-policiais e delegados compunham o grosso de sua demografia, e em certa medida o bolsonarismo não foi senão a expansão do Partido da Polimilícia para o terreno da política executiva federal, com os penduricalhos de alianças que ele foi formando no caminho. Note-se que o Partido da Polimilícia nunca foi antipetista. Pelo contrário, o PP de Jair Bolsonaro participou da base de apoio da coalizão que incluía o PT e o PMDB no governo do estado do Rio. O Partido da Polimilícia é uma operação que se disseminou de maneira paraestatal no sentido estrito, ou seja, desdobrando-se no interior e ao lado do aparato do Estado, atravessando-o e constituindo-o. Isso aconteceu não apenas porque as milícias são compostas de agentes e ex-agentes armados do Estado, mas também porque já em seus albores elas elegiam parlamentares e penetravam de forma decisiva na magistratura. Para o Partido da Polimilícia, a polarização que importa é entre “bandido”, entendido como o pobre, preferencialmente negro, autor potencial de crimes contra o patrimônio ou envolvido no tráfico de drogas, e o “cidadão de bem”, entendido como preferencialmente branco, armado e imbuído da retórica da ordem, mesmo que realizando atividades que incluem violações de vários artigos do Código Penal. “Segurança” é aqui o vocábulo onipresente, e o bloco social que os apoia advém, em grande parte, do lobby pela legalização irrestrita do porte de armas.


No caso do Partido da Bíblia ou, como prefiro chamá-lo, o Partido Teocrata, a trajetória é distinta, mas inclui uma participação na coalizão lulista não muito diferente daquela do Partido do Boi. Nos dois casos, houve lideranças cooptadas para uma aliança ganha-ganha com o lulismo enquanto a militância petista, estimulada pelos seus próprios líderes, fomentava um antagonismo intenso às bases de ambos os setores, especialmente do evangélico. Essa coabitação entre as duas coisas é a fórmula do oximoro lulista. Não se trata de um erro, um exagero retórico, ou um tropeço dos governos lulistas sanável por alguma moderação. É o mecanismo de funcionamento do lulismo entre 2005 e, de forma particularmente estável, 2013 (com seus escombros sendo ainda suficientes para uma apertada vitória eleitoral em 2014, agora já sem o voto evangélico). É importante notar que o Partido Teocrata existiu por longo tempo sem antagonizar o lulismo e ocupando ministérios em seus governos. Em uma eleição como a de 2006, por exemplo, os evangélicos se dividiram entre Lula e Alckmin em proporções comparáveis à forma como se dividiram os votos na população em geral. Nada poderia contrastar de maneira mais contundente com as eleições de 2018, em que toda a diferença de 10,8 milhões de votos entre Bolsonaro e Haddad, em números absolutos, saiu da população evangélica. Na ruptura das massas evangélicas suburbanas com o lulismo, operaram vários fatores, por certo, mas em um contexto bibliográfico tão marcado pelas análises de decisões tomadas nos corredores e salões políticos, não convém esquecer ou menosprezar o fator econômico. Sobrerrepresentado em programas como o Prouni, o suburbano evangélico viu o valor do diploma em Letras, pedagogia ou direito esfarelar-se, na medida em que não se concretizava o novo ciclo de crescimento prometido pelo petismo. Pelo contrário, na recessão dos anos Rousseff, escasseava a oferta de emprego com a qual se havia contado, mas que jamais havia entrado em qualquer plano de impacto sério durante a concepção dos programas de transferência de dinheiro público para o ensino privado como o ProUni. Gestou-se ali poderoso caldeirão de ressentimento, intensificado por um tratamento aos evangélicos, comum na base petista, que combinava o desprezo, a condescendência e a hostilidade aberta. Em 2014-15, não estava dada a forma que tomaria a revolta antipetista, mas já estava claro que ela contaria com caixas de supermercado formados em letras ou pedagogia pelo ProUni. Os chefes do Partido Teocrata continuavam ocupando ministérios nos governos petistas e fazendo negócios com o lulismo, por certo, e a TV Record ainda era cidadela aliada ao petismo, mas na base a situação era outra. A ruptura desses chefes com o petismo, durante os anos do impeachment, não surpreendeu ninguém e parecia decorrer de um processo que fluía quase naturalmente. Com a mesma rapidez com que se tornou lulista, a TV Record abraçou o bolsonarismo. A única coisa que restou ao petismo foi gritar “golpe!”


O descolamento definitivo do Partido Teocrata da coalizão petista da qual ele havia sido parte coincidiu com a percepção de Bolsonaro, em algum momento de 2016, de que se ele dobrasse a aposta do antipetismo, mantivesse o Partido do Boi ao seu lado, carregasse o Partido da Polimilícia que ele trazia do Rio, e atraísse o Partido Teocrata com a retórica alarmista sobre costumes e sexualidade, ele teria chances de uma corrida presidencial, só faltando alguém que o avalizasse na banca, ou seja, alguém que o autorizasse no interior do Partido do Mercado. Esse avalista, como sabemos, apareceu tardiamente, em 2018, com a coalizão já consolidada. Os motivos de Paulo Guedes advinham visivelmente de ressentimentos pessoais, mas isso não impediu que ele trabalhasse para maquiar o mais corporativista dos deputados no sentido de transformá-lo em liberal privatizante. Tudo possuía um irresistível ar farsesco, a começar pelas próprias credenciais de Guedes, mas no desespero do bloco privatista por encontrar alguém que derrotasse o petismo, o casamento entre Guedes e Bolsonaro teve que servir, dado o fracasso eleitoral das candidaturas tucanas e centristas. Na fórmula ouvida por Malu Mader e relatada em um artigo seu da época: “Muito empresário queria votar nele, mas tinha receio ou vergonha. O Paulo Guedes deu a desculpa que o pessoal precisava”.


Em 2016, na internet já se gestava o setor que conferiria à coalizão a sua linguagem por excelência, o Partido dos Trolls. Uma fauna até então pouco notada pelas ciências sociais, de ex-alunos de Olavo de Carvalho de diferentes matizes, monarquistas, tradicionalistas católicos, terraplanistas, youtubers de extrema direita, incels, militaristas ou crentes em teorias conspiratórias iam gestando uma linguagem própria, baseada na trollagem incessante, ou seja, na participação na conversa de tal forma a permanentemente dinamitar as condições de possibilidade da conversa, na denegabilidade e na rasura da fronteira entre o sério e o cômico, ou o verdadeiro e o falso. O Partido dos Trolls se construiu a partir de uma constelação de operações retóricas que incluem a atuação reiterada nos mesmos veículos, o registro extremamente agressivo contra o interlocutor ou o sujeito tematizado no discurso, a desconsideração completa da diferença entre verdade factual, hipótese não fundamentada e pura invenção, o modo hiperbólico do discurso, a postulação permanente de algo oculto e a adoção de uma ambiguidade acerca da seriedade ou não do enunciado e da crença ou descrença do sujeito enunciador nele. Este último traço é modulador e decisivo. A incerteza sobre o estatuto dos enunciados cumpre a função de garantir a denegabilidade automática, caso o enunciado seja questionado ou desmentido, além de oferecer o efeito de choque necessário para manter a atenção do espectador/leitor no mundo volátil das redes sociais, de arco de atenção breve. A operação do troll ocorre nesse registro, no qual verdade e mentira, constativo e performativo, estão mesclados ou confundidos. Guedes foi o avalista no mercado, mas é claro que a linguagem da coalizão teria que vir de alhures. Nenhum bloco político brasileiro venceria eleições falando como Guedes. Mas, nos EUA em 2016 e logo depois no Brasil de 2018, ficou provado que é possível eleger um bloco político cujo líder fala como um troll.


O Partido da Lava-Jato só se juntaria à coalizão bolsonarista em um salto declaradamente oportunista, já às vésperas da eleição presidencial. Ao contrário do Partido da Polimilícia, o Partido da Lava Jato, sim, havia se gestado no interior do antipetismo. De todos os vértices do hexágono bolsonarista, o Partido da Lava Jato talvez tenha sido o mais desmoralizado nos três primeiros anos e meio da gestão de Bolsonaro. Sucederam-se e sobrepuseram-se em velocidade estonteante os acontecimentos decisivos, como as revelações da Vaza Jato, que mostravam desvios éticos e possivelmente criminais graves da coalizão lava-jatista, a declaração da suspeição da corte de Curitiba e a consequente anulação dos processos contra Lula pela Suprema Corte do país, as repetidas humilhações a que se submetia Sergio Moro como Ministro da Justiça, incapaz de nomear até mesmo membros de um conselho consultivo, a investigação da Corregedoria sobre Deltan Dalagnol, e por fim o pedido de demissão de Moro, já no último momento sustentável, com o pacote de humilhações completo. Nesse período, o lava-jatismo passou de identificação política positiva majoritária na sociedade brasileira a um apêndice de Bolsonaro, descartado no momento conveniente. Essa trajetória descendente do lava-jatismo se reflete na própria queda pessoal e paulatina de Sergio Moro, que passou de juiz super-herói a Ministro desprestigiado e, sem a estabilidade da magistratura, passou de fracassado candidato presidencial a candidato não favorito ao Senado no Paraná, vários pontos atrás do mesmo Álvaro Dias que havia feito do lava-jatismo e do morismo a sua única plataforma presidencial em 2018.


RETROALIMENTAÇÃO, OXIMORO E ANTAGONISMO

A coalizão costurada entre Partido da Polimilícia, Partido do Boi, Partido Teocrata, Partido do Mercado, Partido dos Trolls e Partido da Lava Jato foi contingente, no sentido de que não era, em 2016 ou mesmo em 2018, uma fatalidade inescapável que ela se constituísse dessa forma. Essa fatalidade é com frequência pressuposta, ainda que silenciosamente, nas análises do tipo “Da Lava-Jato ao bolsonarismo” ou “Do golpe ao fascismo”. Nestas análises, a construção marcadora de um ponto (arbitrário) de partida e um ponto de chegada não apenas obnubila o caráter contingente do arranjo que se produziu e que levou à eleição de um candidato neofascista. Elas recortam a longue durée em um ponto de partida conveniente para uma narrativa em particular, a que poderíamos chamar de petista-parapetista, dominante nas ciências sociais desse período. Nessa narrativa, presume-se uma diferença moral essencial entre os sujeitos políticos, de tal forma que ao petismo, mesmo tendo ele governado o país durante 14 anos, hegemonizado vários movimentos sociais, administrado boa maioria das cidades e estados importantes, controlado dezenas de mídias “alternativas” e batido recordes de aprovação, reserva-se sempre uma cadeira cativa de vítima de alguma quebra das regras, golpe ou trapaça, ou no máximo de objeto de consequências nefastas advindas de “erros” do partido. A baixa inelutável desse tipo de arranjo analítico é a consequente percepção do bolsonarismo a partir do que chamo teoria do erro – ou seja, a explicação da emergência e vitória de uma coalizão neofascista recorre a alguma interferência externa indevida, alguma distorção do estado ótimo das coisas, algum golpe ou trapaça. Nesse sentido, há uma retroalimentação entre o lugar concedido ao lulismo na análise e a decorrente posição do bolsonarismo nessa mesma análise, para além das platitudes (“lulismo e bolsonarismo não são simétricos”) com que boa parte da esquerda responde a platitudes (“há que se encontrar o meio-termo entre dois extremos”) presentes no colunismo da grande imprensa.


Mais proveitoso, então, seria retomar o fio do tratamento dos antagonismos no interior do sistema político brasileiro e localizar onde o possível fim do ciclo eleitoral da coalizão neofascista nos colocaria. Independente do resultado das eleições, o bolsonarismo seguramente não deixará de exercer impacto no tecido social, disseminar mensagens antidemocráticas incendiárias, ameaçar instituições e possivelmente tentar um golpe. A vitória da coalizão lulista coloca o desafio de se elaborar um modelo de governança posterior ao colapso da fórmula do oximoro, bem sucedida de 2005 a 2013 e dificilmente reeditável agora. Retoricamente, a coalizão lulista de 2022 fala muito mais como o Lula da Carta aos Brasileiros, de 2002, do que segundo a fórmula de 2005-13, que operava no registro do oximoro, com a modulação de mensagens simultâneas e contraditórias (“Fogo na Globo!” “Bem-vindo, Ministro Hélio Costa!”). O próprio arcabouço pemedebista, apesar de continuar operante, como demonstram as idas e vindas da chantagem do Centrão a Bolsonaro, não tem mais o mesmo cacife para mascarar antagonismos reais da sociedade em salões de bastidores. Mantém o seu poder, mas em meio a recordes de rejeição ao Congresso. Em um tecido social esgarçado pelo dilúvio de ressentimento e agressão desatado pelo bolsonarismo, o sistema político brasileiro terá que reinventar a administração democrática dos seus antagonismos reais, sociais, facticamente existentes. As polarizações entre, respectivamente, bolsonaristas e democratas, por um lado, e petistas e antipetistas, por outro, seguirão coexistindo em camadas no tempo e no espaço, sendo hoje duvidoso qual par polarizador se imporá sobre o outro (ou se caducarão ambos em uma síntese que hoje só pode nos parecer ideal, abstrata e impossível). Em todo caso, já deveria estar claro que à luz do ocorrido com “fascismo” e “golpe”, a precisão lexical importa e a luta em torno ao dicionário não é uma luta entre outras.

OBRAS CITADAS

Arantes, Paulo.  2014. Entrevista a Eleonora de Lucena. “Nova direita surgiu depois de junho, diz filósofo”. Folha de São Paulo.  31 de outubro.

 

Avelar, Idelber.  2021.  Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI. Rio de Janeiro: Record. 

_____.  2017. “A response to Fabiano Santos and Fernando Guarnieri.” Journal of Latin American Cultural Studies 26.2: 341-50. 

Cesarino, Leticia. 2019. “Identidade e representação no bolsonarismo: Corpo digital do rei, bivalência conservadorismo-neoliberalismo e pessoa fractal”. Revista de Antropologia [São Paulo] 62.3: 534-5.

Gaspar, Malu. 2018. “O fiador: a trajetória e as polêmicas de Paulo Guedes, o ultraliberal que se casou por conveniência com Jair Bolsonaro”. Piauí 144. Setembro. 

Ortellado, Pablo, Marcio Moretto Ribeiro e Leonardo Zenne.  2022. “Existe polarização política no Brasil? Análise das evidências em duas séries de pesquisa de opinião”. Opinião pública [Campinas] 28.1: 62-91.  Janeiro-Março. 

Rocha, Camila. 2021. Menos Marx, mais Mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil. São Paulo: Todavia. 

Samuels, David e Cesar Zucco. 2018.  Partisans, nonpartisans, and antipartisans: Voting behavior in Brazil. Cambridge: Cambridge UP.  


Santos, Fabiano e Fernando Guarnieri. “From protest to parliamentary coup: An overview of Brazil's recent history.” Journal of Latin American Cultural Studies 25.4 (2016): 485-494.

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