BIOPOLÍTICAS DA CRISE: ELEMENTOS DO NEOMALTHUSIANISMO DE JAIR BOLSONARO
Yasmin Afshar
De abril a junho de 2021, uma comissão parlamentar de inquérito investigou as omissões e irregularidades das ações do governo do então presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia do coronavírus no Brasil e chegou à conclusão já esperada por muitos: o chefe de Estado havia sido não apenas negligente com as medidas sanitárias, insistindo que a população continuasse a circular normalmente; ele também havia promovido e investido em tratamentos sem eficácia demonstrada, como o uso de hidroxicloroquina e ivermectina para o tratamento contra a covid-19, além de ter recusado a oferta de vacinas, a exemplo das 80 milhões de unidades oferecidas pela Pfizer. A investigação resultou na indicação de 65 pessoas por crimes e contravenções penais – incluindo Bolsonaro e o ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello.
Sob a justificativa de proteção dos mercados, Bolsonaro havia seguido, e radicalizado, a posição adotada por Boris Johnson e Donald Trump no primeiro semestre de 2020. Mas esse modo de enfrentar a pandemia pode adquirir outro sentido se retomarmos algumas das teses e valores defendidos por Bolsonaro nos últimos 30 anos; em particular, o ideário de matriz neomalthusiana que perpassa algumas de suas propostas e discursos e que constitui, também, um elemento comum às pautas de vários grupos da extrema-direita global. Embora seja difícil atribuir alguma consistência a esses discursos, principalmente se considerarmos sua dimensão conspiratória delirante, o tema do controle de populações parece ser um eixo importante ao redor do qual giram as mais diversas pautas.
Preocupado com o problema da miséria no início da primeira revolução industrial, Thomas Robert Malthus (1766-1834), escreveu sua obra mais conhecida, Ensaio sobre o princípio da população (também conhecida como Primeiro Ensaio), publicada em 1798. Nela, ele procura demonstrar que, enquanto a população crescia em progressão geométrica, a produção de alimentos aumentava em progressão aritmética. Em consequência, a menos que as taxas de natalidade diminuíssem, haveria, em algum momento, escassez de alimentos e, consequentemente, fome ou guerra, resultando em pobreza, despovoamento e enfraquecimento do Estado. O malthusianismo surge, assim, como uma teoria da crise para tempos de crise, segundo a qual a miséria resultaria de um descompasso entre o crescimento populacional e a produção de alimentos – uma tese que, ademais, não era original, já que vinha sendo teorizada desde o século XVIII. Como consequência do princípio da população, os seres humanos vivem na privação, de onde se originam as guerras, as pandemias e a fome. No Primeiro Ensaio esgotamento do solo (limite natural) levaria ao controle natural da população. No Segundo Ensaio (1803), uma versão estendida do primeiro, porém, Malthus prevê uma regulação moral da população: a medida de prevenção (preventive check) ao crescimento desenfreado é, então, a redução das taxas de natalidade, por meio da abstinência sexual, até o retorno à condição anterior de equilíbrio entre oferta e demanda de alimentos. De outro modo, a volta ao equilíbrio seria forçado pela ocorrência de catástrofes (positive check) que afetariam principalmente a parcela mais pobre (e mais numerosa) da população urbana, então amontoava em habitações precárias e insalubres com pouca estrutura sanitária, sendo, portanto, mais suscetível a doenças contagiosas e letais. Na sua fase tardia, a partir de 1830, Malthus defende a regulação da população pela economia, sobretudo pela política salarial. De modo geral, o malthusianismo se configura como uma teoria biopolítica[1] da crise para tempos de crise, segundo a qual o combate à miséria teria que visar o descompasso entre o crescimento populacional e a produção de alimentos.
Malthus, assim como David Ricardo e outros economistas, defendeu a abolição da legislação assistencial vigente desde a Era Elisabetana – as chamadas Leis dos Pobres (Poor Laws) –, levada a cabo de forma descentralizada pelas paróquias locais. Malthus considerava esse modelo ineficaz, moralmente deletério e economicamente insustentável. A medida não acabaria com a miséria, uma vez que os pobres se reproduziriam ainda mais e, como os utilitaristas, Malthus acreditava que a privação era um estímulo fundamental para o trabalho e a criação de riquezas. Em termos morais, a pobreza só podia ser o resultado da superpopulação, pela qual os pobres eram responsáveis. No Segundo Ensaio, Malthus escreve: “São eles mesmos [os pobres] a causa da sua própria pobreza; [...] a sociedade em que vivem e o governo que a preside não têm qualquer poder direto sobre isso; [...] e estão agindo no sentido contrário à vontade de Deus.” (Malthus, 2007, p.342).
A corrente conhecida como “neomalthusiana”, que se reivindica como continuadora dos trabalhos de Malthus, defende que o aumento populacional exerce uma pressão sobre a natureza e os meios de subsistência da humanidade, razão pela qual o controle demográfico é a solução para os problemas da miséria, da catástrofe climática, da violência e até da guerra. Talvez pudéssemos dizer que o neomalthusianismo se distingue da doutrina malthusiana na medida em que defende a difusão de métodos anticoncepcionais, coisa a que Malthus, um reverendo anglicano, sempre se opôs. No entanto, a ideia de que os pobres, devido à sua fraqueza moral, são responsáveis por sua própria pobreza é uma das lições de Malthus transmitidas para o neomalthusianismo. Essa doutrina adquire, ao longo do século XX, traços nitidamente racistas, senão eugenistas, ao pregar o controle de natalidade de maneira seletiva – para determinados estratos da população ou para certos países e regiões.
No Brasil do século XXI, durante a pandemia da covid-19, apesar da negligência e da ignorância manifestadas por Bolsonaro quanto à letalidade da doença, este reconheceu muito cedo os efeitos desiguais da crise sanitária sobre a população. No dia 1º de abril de 2020, quando a pandemia mal havia começado no Brasil, Bolsonaro declarou no programa de TV Brasil Urgente que não apenas pessoas com mais de 60 anos, mas “com problemas a mais” seriam mais vulneráveis à doença: “Quem são essas pessoas mais fracas? A pessoa às vezes vive na miséria, pobre ao extremo, então é fraca por natureza, vamos assim dizer, né?, dada a falta de uma alimentação mais adequada. Então essas pessoas é que sofrem mais com esse vírus que chegou, mas eu tenho certeza que vai embora um dia”.[2] A declaração não poderia ser mais clara; ao contrário de uma crença muito difundida no princípio, a idade avançada não é, isoladamente, o principal fator de risco, no caso da covid-19. Outros fatores, associados a condições socioeconômicas e de acesso à saúde são fundamentais.[3] As correlações entre a morbidade e a mortalidade com o nível de escolaridade, a renda e a raça vêm sendo mostradas por diversos estudos.[4] Da mesma forma, o acesso a equipamento de proteção individual, saúde, qualidade da alimentação, prática esportiva e grau de exposição à poluição seriam de grande importância.[5] A cobertura desigual da campanha de vacinação, a partir de 2021, entre os países do sul e do norte constitui, nesse sentido, apenas um desdobramento de uma assimetria posta desde o início. De um ponto de vista neomalthusiano, vacinar uma população excedente implica impedir a autorregulação natural da população.
NEOMALTHUSIANISMO E DIREITA GLOBAL
A expressão maior do neomalthusianismo do pós-guerra é Caminho da Sobrevivência (1948), obra do ambientalista e ornitólogo William Vogt (1902-1968). À época, o livro tornou-se rapidamente um best-seller, tendo sido também reproduzido, em versão condensada, pela influente revista conservadora Reader’s Digest. Nele, o autor se refere à escassez crescente de terras cultiváveis como um perigo para a sobrevivência das gerações futuras; por outro lado, defende a preservação de áreas ainda intocadas – sobretudo nos países do Terceiro Mundo – observando que doenças endêmicas, tais como a malária, são uma "bênção disfarçada”, pois impedem que tais áreas sejam cultivadas.[6] Aqui, a catástrofe neomalthusiana reaparece, como consequência do progresso técnico e, mais uma vez mais, o controle demográfico de populações aparece como resposta ao apocalipse iminente.
Já no ano seguinte à publicação da obra de Vogt, o geógrafo e médico brasileiro Josué de Castro (1908-1973)[7] desenvolve uma crítica contundente às ideias de Vogt, em Geopolítica da Fome (1951). Para Castro, a receptividade do neomalthusianismo no pós-guerra era reveladora do momento de crise social do período: “viveu o economista inglês [Malthus] numa fase revolucionária – a era da revolução industrial – e, portanto, numa fase de inquietação e de incerteza do futuro, fenômeno que se repete ainda em maior escala na revolução social dos nossos dias” (Castro, 1959, p.66). O malthusianismo, outrora como em nossos dias, ressurge tipicamente em momentos de crise.
A segunda retomada, por assim dizer, do neomalthusianismo ocorre com a publicação de A bomba populacional, dos biólogos Paul e Anne Ehrlich (embora não creditada como coautora), no emblemático ano de 1968, em que o mundo inteiro foi varrido por insurreições anticoloniais, antirracistas e antiautoritárias – um contexto, portanto, de crise social. O livro de Ehrlich alardeava que a explosão demográfica e a degradação ambiental acarretariam uma grande fome, na década seguinte, catástrofe só evitável por meio do controle da natalidade. “O câncer é uma multiplicação sem controle de células; a explosão demográfica é a multiplicação sem controle de seres humanos” (Ehrlich, 1968, p.152). A metáfora do câncer e da explosão demográfica serão repetidas pelos seguidores de Ehrlich, como veremos na sequência, embora suas previsões catastrofistas não tenham se realizado.
Poucos anos depois da publicação de Bomba populacional, iniciou-se uma gradual reconversão “controlista” das organizações internacionais, como a USAID (Agência Americana para Desenvolvimento Internacional), o UNFPA (Fundo para a População das Nações Unidas), a OMS e o Banco Mundial (Nelson, 2003, p.96). Com apoio e financiamento dos países centrais, instituíram-se programas de planejamento familiar, em países periféricos (mas não apenas[8]), basicamente voltados a mulheres pobres que eram induzidas, ou até forçadas, a limitar a quantidade de filhos através de esterilização e de outros métodos anticoncepcionais.
Durante a Guerra Fria, setores da esquerda dos países periféricos[9] defendiam a necessidade de políticas desenvolvimentistas, em lugar de políticas populacionais “controlistas” – conforme mostram os debates ocorridos na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento de Bucareste, em 1974 – para superar “o círculo vicioso da pobreza”. O otimismo demográfico dos desenvolvimentistas, baseado no binômio modernização-desenvolvimento (urbanização, escolaridade, aumento de renda), defendiam que o equilíbrio entre crescimento populacional e econômico ocorreria sem a intervenção de uma política de natalidade. Em contrapartida, as organizações multilaterais e os países desenvolvidos defendiam que a redução do rápido crescimento demográfico em países como o Brasil só poderia ocorrer com uma eficiente política de controle de natalidade (Carvalho, 2005, p.356).
Até os anos 1950 e 1960, vigorava na América Latina o lema “governar é povoar”,[10] uma doutrina populacionista que predominava, ademais, até o século XVIII, antes de Malthus, na Europa. Os primeiros presidentes da ditadura militar brasileira expandiram as políticas pró-natalistas do governo Getúlio Vargas (1930-45/1950-54), considerando o povoamento uma questão de segurança nacional. Sem que os militares encampassem uma política antinatalista – tendo antes optado por uma deliberada omissão nessa seara (Carvalho, 2005, p.356) – o programa de controle de natalidade foi, em grande parte, levado a cabo pela Sociedade Civil de Bem-estar Familiar no Brasil (BENFAM), entidade privada sem fins lucrativos que, entre os anos de 1965 e 1975, operou clínicas conveniadas com a rede de assistência médica, empresas e universidades. A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre esterilizações no Brasil (1993) constatou o aumento das laqueaduras tubárias, sobretudo em mulheres não brancas e residentes em regiões pobres do país, mostrando que a BENFAM contou com apoio financeiro de organizações internacionais, como a USAID e a UNFPA.[11]
Em sua expressão pós-crise de 2008, o discurso neomalthusiano ganha novo impulso e reaquece o pavor diante da redução da taxa de natalidade na Europa e nos Estados Unidos, de um lado, e do crescimento da população de alguns países da África e da Ásia, de outro.[12] Embora o recurso à imigração pudesse equilibrar esse quadro demográfico polarizado, contribuindo para a reposição demográfica nos países centrais, tanto o mainstream político como a extrema-direita consideram essa via como inaceitável. No contexto europeu, a publicação de A grande substituição, em 2011, pelo francês Renaud Camus, é a expressão maior desse mais recente relançamento do neomalthusianismo. À diferença de Vogt e Ehrlich, Camus recria teses catastrofistas sem partir de uma perspectiva ecológica, mas escancarando o componente classista e racista – expresso no delirante “genocídio branco” – que permeia o malthuisianismo e suas viariantes desde sempre.
Além de rechaçar a imigração de não brancos, os adeptos dessa variante mais abertamente racista do neomalthusianismo alertam para a baixa fecundidade das mulheres brancas, em oposição à alta fecundidade das mulheres não brancas. Ter ou não filhos se torna, no limite, uma questão de utilidade pública, na qual os direitos reprodutivos e a autonomia da mulher cumprem um papel secundário. O ideário neomalthusiano fornece então uma base pseudo-científica dupla para abusos autoritários: de um lado, pró-natalistas (“pró-vida”) e, de outro, antinatalistas, guiando políticas de esterilização em massa, voluntárias ou involuntárias, sobre mulheres não brancas.
Uma breve revisão histórica do neomalthusianismo e de suas variantes possibilita a reconstituição das fontes do pensamento e do discurso classista, racista e antifeminista da extrema-direita, na Europa e nas Américas, hoje. De Viktor Orbán[13] a Bolsonaro, da família real britânica[14] a Donald Trump,[15] passando pela “nova direita”[16] francesa, Éric Zemmour[17] e membros do Alternativa para a Alemanha (AfD),[18] multiplicam-se os alertas contra a imigração, contra a baixa fecundidade das mulheres brancas e a alta fecundidade das mulheres não brancas como ameaças à segurança da pátria. Na Europa, o termo “grande substituição” tem sido o emblema dessa mentalidade. Não por acaso, o manifesto publicado na internet, em março de 2019, pelo supremacista branco Brenton Tarrant, antes de realizar o atentado de inspiração ecofascista[19] que deixou 50 mortos em duas mesquitas na Nova Zelândia, chamava-se “A Grande Substituição”.
O NEOMALTHUSIANISMO DO BOLSONARO DEPUTADO
“Sras. e Srs. Deputados, todos nós, quando chegamos a Brasília, temos um sonho. Como Capitão do Exército, sou tido como defensor dos militares, mas meu sonho é implantar no Brasil uma política de paternidade responsável, de planejamento familiar ou, utilizando um nome mais pesado, de controle de natalidade.”[20] Foi nesses termos que o então deputado Jair Bolsonaro iniciou, em setembro de 2009, um de seus vários discursos parlamentares de apologia ao controle de natalidade. Ao longo de toda a sua atuação, como parlamentar (1991-2018), Bolsonaro discursou em 49 sessões parlamentares sobre a urgência de uma tal medida. Muito antes da pandemia, Bolsonaro costumava tratar os problemas da miséria, da violência e da crise ecológica com um viés abertamente neomalthusiano, defendendo tanto medidas preventivas (a esterilização de pobres), como a pena de morte.
Durante um discurso parlamentar pronunciado em fevereiro de 2006, Bolsonaro discorreu sobre “a bomba-relógio armada sob o mundo”, referindo-se a uma entrevista publicada naquela mesma semana com o já referido biólogo neomalthusiano Paul Ehrlich na revista de maior circulação do Brasil, a Veja.[21] Esta seria a primeira vez que Bolsonaro articularia a suposta urgência do controle de natalidade às questões ambientais e geopolíticas, citando textualmente Ehrlich,[22] que fazia referência à bomba capaz de extinguir a espécie humana, a atômica.
Como deputado, Bolsonaro apresentou três projetos de lei para flexibilizar as regras para a realização de vasectomia e laqueadura tubária. A lei brasileira do planejamento familiar permite a esterilização cirúrgica voluntária apenas aos maiores de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos, observado o prazo mínimo de 60 dias entre a manifestação da vontade e a cirurgia, o direito à informação sobre a irreversibilidade do ato e a não realização de laqueadura durante o parto. Por mais de 20 anos, Bolsonaro defendeu a retirada de praticamente todas essas restrições legais.
É curioso notar que o projeto controlista de Bolsonaro foi encampado pelos seus três filhos parlamentares, Flávio, Carlos e Eduardo.[23] Cada um deles protocolou um projeto de lei para flexibilizar as regras da laqueadura e a vasectomia.[24] As justificativas apresentadas para uma política de controle de natalidade no país são normalmente centradas no problema da violência, do desemprego, da miséria e da poluição. Ao defender a resolução controlista da “questão social”, a extrema-direita naturaliza implicitamente as causas da crise social, combatendo a brutalidade da vida social não atacando suas causas, mas penalizando suas principais vítimas.
A análise dos 49 discursos parlamentares de Jair Bolsonaro, em defesa do controle de natalidade, permite constatar o uso de muitas imagens e analogias recorrentes em autores neomalthusianos: a população como bomba prestes a explodir,[25] a terra como barco superpovoado,[26] a exagerada proliferação da população pobre[27] e assim por diante. Fica evidente que o excedente populacional a ser reduzido por meio da política de esterilização preconizada por Bolsonaro são os pobres. Na justificativa da proposta de emenda constitucional apresentada por ele, em 2002, consta: “Ressaltamos que os casais mais abastados usam largamente os métodos da vasectomia e da laqueadura, que são seguros e definitivos, enquanto os mais pobres não os utilizam por absoluta falta de poder aquisitivo. São, por isso, condenados a dividir a miséria com muitos filhos, em sua maioria não desejados ou planejados.”[28] Em termos neomalthusianos, o controle de natalidade é um “obstáculo preventivo”, pois evita o aumento populacional – diferentemente de uma epidemia, por exemplo, que seria um “obstáculo positivo”, por elevar a mortalidade.
No entanto, sabe-se, em primeiro lugar, que a taxa de natalidade vem caindo no Brasil desde 1960.[29]A partir de 2000, verifica-se um contínuo declínio da fecundidade total (TFT), sobretudo em 2004, quando a TFT registra o valor de 2,04 filhos por mulher. Observe-se que uma fecundidade total inferior a 2,1 filhos por mulher é considerada insuficiente para assegurar a reposição populacional. Ao longo dos anos 2000, estudos e pesquisas posteriores confirmaram a manutenção desse declínio da fecundidade no Brasil, de modo que, a longo prazo, é de se esperar que o crescimento da população brasileira assuma valor zero ou negativo – como também, aliás, a população mundial no ano de 2065. Finalmente, cabe destacar que embora a fecundidade seja, em geral, mais elevada entre as mulheres de renda mais baixa, os dados mostram que, na última década, o declínio da fecundidade foi maior justamente entre as mais pobres.[30]
Em segundo lugar, o Brasil já era um dos líderes mundiais em número de esterilizações nos anos 1990, conforme o já referido relatório da CPMI da esterilização. Esse parecer revelou, inclusive, que as regiões mais pobres do país eram as que apresentavam as maiores taxas de mulheres esterilizadas. Enquanto a média dos países desenvolvidos não passava de 7% no início daquela década, no Brasil, 44% das mulheres haviam feito laqueadura tubária.
Apesar de a laqueadura não ser um método contraceptivo a ser rejeitado, especialistas sugerem que a esterilização cirúrgica não deve ser apresentada como primeira opção, por ter um caráter praticamente irreversível e, como qualquer procedimento cirúrgico, envolver riscos para a saúde. Além disso, a laqueadura pode produzir efeitos secundários, tais como a desregulação do ciclo menstrual, a perda de libido e a obesidade.[31] É sintomático que, em seus discursos, Bolsonaro se refira ao “controle de natalidade”, ao “planejamento familiar” e à “paternidade responsável” como quase sinônimos.[32] De maneira deliberada ou não, ele acaba por ocultar que “controle de natalidade” implica uma injunção alheia à vontade dos sujeitos, enquanto a “planejamento familiar” e “paternidade responsável” sugerem a agência relativamente autônoma dos indivíduos.
Por duas vezes, Bolsonaro recorreu ao exemplo da China como modelo de política antinatalista que, à época, registrava o maior número de abortos do planeta, revelando que se trata, sim, de “controle de natalidade”. Em abril de 1992, ele chegou a requerer que fosse transcrita nos autos da Câmara dos Deputados uma notícia sobre a produção e a distribuição de uma pílula abortiva (RU-486) pelo governo chinês.[33] Mas, na medida em que foi se aproximando de grupos religiosos conservadores, as menções de Bolsonaro ao aborto como possível medida de controle populacional desapareceram de suas falas, e apenas o tema da flexibilização das regras de esterilização foi mantido.
Além do modelo chinês, Bolsonaro fez menções elogiosas em duas sessões parlamentares à política de esterilização levada a cabo no Peru pela ditadura Fujimori (1990-2000). “Pela sua coragem, quero agora louvar o Exmo. Sr. Presidente do Peru, Alberto Fujimori, que implantou em seu país, como forma de conter a explosão demográfica, a esterilização voluntária através da laqueadura e da vasectomia”.[34] Vale ressaltar que, no contexto das esterilizações, em especial em populações sem escolaridade, o epíteto de “voluntária” é bastante duvidoso. Fujimori é acusado de ter realizado mais de 300 mil esterilizações forçadas, sobretudo em pessoas pobres e com baixa escolaridade, em sua maioria indígenas, no contexto do “Programa Nacional de Salud Reproductiva y Planificación Familiar (PNSRPF) 1996-2000”.[35] Durante o processo instaurado pelo Ministério Público peruano, foi denunciado que o governo promovia inumeráveis “festivais de saúde” em povoados pobres, incluindo espetáculos de fogos de artifício e de música visando atrair as mulheres para, mediante mentiras e ameaças, esterilizá-las sem consentimento informado.[36]
A partir do discurso de 2006 em que cita Ehrlich, Bolsonaro irá incorporar um novo ingrediente à sua incansável defesa do controle de natalidade: o argumento ecológico. Seus discursos afastam-se, assim, do simples “negacionismo climático”, posição hoje associada a Bolsonaro com frequência. Pelo contrário, ele reconhece a existência de um limite natural para a expansão da atividade econômica e, portanto, para o contínuo aumento populacional. A oscilação entre o negacionismo climatológico a uma posição ecofascista é, aliás, uma tendência da extrema-direita contemporânea no mundo inteiro hoje. Em outras palavras, trata-se de não negar a contradição entre crescimento demográfico e capacidade de suporte do meio ambiente, propondo começar a resolvê-la mediante a redução do elemento excrescente, a saber, a população – com destaque para aquela parcela “que infelizmente prolifera de maneira exagerada”, conforme a fala de Bolsonaro de 1992. A contenção da exploração desmedida e predatória dos ecossistemas ficaria para o segundo plano. “Nossos queridos ecologistas não podem falar em aquecimento global, em conter a expansão das fronteiras agrícolas, sem primeiro falar em controle da natalidade.”[37] Ao fazer referência à poluição dos rios,[38] ao excesso de automóveis nas cidades[39] e à grande produção de lixo, Bolsonaro repõe a tópica propriamente neomalthusiana, de Vogt a Ehrlich, da crise ecológica com uma abordagem puramente demográfica, de corte classista, se não eugenista.
Outro clichê que passa a constituir o repertório de Bolsonaro após a menção da entrevista de Ehrlich é a tese de que os países superpopulosos, como a China e a Índia, pretenderiam deslocar sua população para o “espaço vazio” (sic) existente na região amazônica,[40] um topos que serviu ideologicamente, ao menos desde a “terra nullius” de Locke, à apropriação de terras por meio do extermínio de povos originários. Uma pergunta sobre possíveis guerras por “espaço vital” leva Bolsonaro à questão da demarcação de terras indígenas. Segundo ele, as Forças Armadas não podem dar conta de proteger um território tão grande e supostamente despovoado. Mas, paradoxalmente, reafirma a importância de frear o crescimento demográfico do país, ao mesmo tempo em que se diferencia da política pró-natalista da ditadura militar e do antigo bordão “povoar para governar”. Há, portanto, aqui uma oscilação entre o natalismo como estratégia militar – defendido já por Carl Schmitt e a doutrina do “espaço vital” fascista – e o antinatalismo ecofascista.
Uma possível explicação para essa aparente contradição é lembrar que, para o Capitão, os povos indígenas são elementos estranhos à unidade nacional e, portanto, incapazes de defender a pátria, além de suscetíveis à manipulação estrangeira. “O índio não fala a nossa língua, não tem dinheiro, é um pobre coitado (…) Nessas terras demarcadas, nessas terras riquíssimas, com toda a certeza, mais cedo ou mais tarde, provocando-se a sua independência – hoje já chamadas de nações –, o Primeiro Mundo virá aqui explorar a nossa biodiversidade, os nossos minerais, a água potável e, o que é uma grande preocupação, os enormes espaços vazios dessas áreas!”.[41] Implícito está, portanto, que os indígenas teriam menos condições de defender a pátria dos funestos interesses internacionais por serem de outra etnia e por falarem outras línguas. Outra contradição flagrante é a defesa, na mesma sessão parlamentar, do agronegócio para a Amazônia; ora, a monocultura altamente tecnificada e a expansão da pecuária não constituem exatamente um modelo de povoamento. Assim, a demagogia racista e nacionalista anti-indígena revela-se basicamente como a defesa de um modelo de negócio e de seus representantes – e o discurso ecológico, mero instrumento retórico.
O NEOMALTHUSIANISMO DO BOLSONARO PRESIDENTE
No universo dos quadrinhos da Marvel, Thanos é representado como o Titã louco, porque guiado por uma ideia fixa: eliminar metade da população do universo para assim restabelecer seu equilíbrio. A primeira aparição do personagem foi na edição de número 55 da revista O invencível homem de ferro, em fevereiro de 1973 – portanto cinco anos após a publicação de A bomba populacional, de Ehrlich. Desde a década de 2010, ele tem aparecido também em várias animações da Marvel. Curiosamente, o próprio bolsonarismo já aproximou Thanos da figura de Bolsonaro em pelo menos duas ocasiões nos últimos anos. A primeira, em novembro de 2019, durante uma live no Facebook, na qual Bolsonaro discutia a proposta de extinguir municípios com menos de 5 mil habitantes e com arrecadação própria inferior a 10% da receita. Em um certo momento, Bolsonaro diz, em tom de brincadeira: “Alguns estão falando que eu quero acabar [com esses municípios]. ‘Onde esse pessoal vai morar?’ Vamos lá, eu não sou o Thanos, aquele cara que faz assim com o dedo [estala os dedos] e... resolve o problema!”.[42] Resolver o problema, bem entendido, eliminando as pessoas. Um ano mais tarde, em outubro de 2020, seu filho e vereador do Rio de Janeiro, Carlos Bolsonaro, ironizou o tweet de uma parlamentar que dizia “Brasil registra temperatura acima dos 43 graus. É o apocalipse Bolsonaro!”. Carlos respondeu a esse comentário com uma montagem em que Thanos aparece, sobre um fundo em chamas, com o rosto de Bolsonaro – “Bolsothanos”.[43] Para além do seu aspecto anedótico, o recurso à imagem de Thanos por parte dos Bolsonaro mostra sua afinidade, também no campo imaginário, com o espectro neomalthusiano.
Em termos concretos, o neomalthusianismo expressou-se no governo Bolsonaro em duas frentes: uma delas provém do Ministério da Saúde; a outra, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Este último, chefiado pela pastora Damares Alves, foi um dos poucos que não tiveram seus titulares substituídos. Nos últimos anos, Damares mostrou ser uma figura prestigiada pelo governo, ganhando projeção internacional. Representou o Brasil na III Cúpula da Demografia, em 2019, em Budapeste – encontro dirigido por Viktor Orbán que reúne nomes de peso da política e da demografia neomalthusiana – assim como assumiu, sobretudo após a derrota de Trump, a liderança do chamado “Consenso de Genebra”, que reuniu em 2020 alguns dos chefes de governo mais conservadores do mundo para a descriminalização do aborto e em defesa do fortalecimento da família heteronormativa.[44]
A militância “pró-vida” da ministra Damares chegou ao paroxismo quando ela interveio para impedir que uma criança de 10 anos, grávida em consequência dos múltiplos estupros cometidos por um tio durante anos, fizesse um aborto, em agosto de 2020. A pastora não apenas instrumentalizou o drama vivido pela criança, em favor de sua cruzada antiaborto, como também usou sua influência no interior da comunidade evangélica para fazer com que os hospitais se recusassem a realizar a cirurgia.[45] A criança teve sua identidade revelada e só pôde realizar o aborto em outro estado, sendo ainda recebida por agressivos grupos “pró-vida” na porta do hospital. A esse episódio bárbaro, o governo respondeu dificultando ainda mais a realização do aborto legalizado, como no caso de estupro. Uma portaria do Ministério da Saúde publicada poucos dias após o escândalo obriga o médico a notificar a polícia, quando existir suspeita de gravidez provocada por violência sexual, e a informar a vítima da possibilidade de visualização do feto por meio da ultrassonografia.[46]
Paralelamente aos ataques às políticas educativas de diversidade de gênero, Damares defende a abstinência sexual como único método contraceptivo para adolescentes, a política do “eu escolhi esperar”. A divisa não está longe da injunção moral da castidade pregada por outro pastor, Thomas Malthus. Conforme a pastora, a prevenção da gravidez precoce não se daria por meio da educação sexual, que de fato oferece ao jovem uma decisão informada e consciente sobre suas práticas. Analogamente ao que ocorre no controle de natalidade via esterilização, a decisão autônoma e informada é relegada a segundo plano. Além disso, a política da abstinência ajuda a reforçar o modelo heteronormativo, na medida em que o casamento e a reprodução são representados como caminho natural para a mulher. Reduzidas à sua condição fértil, que, dependendo de seu estrato social e de sua cor da pele, pode ser mais ou menos desejável, as mulheres são o objeto prioritário desse tipo de política heterônoma (porque prioriza o controle estatístico) e reificante (porque objetifica os indivíduos sem considerar seus desejos desviantes da política pública).
Em abril de 2021, o Ministério da Saúde lançou uma portaria autorizando a realização de implantes subdérmico hormonais (etonogestrel) de anticoncepcional pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para certo grupo de mulheres: aquelas em situação de rua, portadoras de HIV, em privação de liberdade, trabalhadoras do sexo, em tratamento de tuberculose e usuárias de talidomida.[47] Tal medida já havia sido antecipada por Bolsonaro durante a campanha presidencial, quando foi questionado em um canal de televisão[48] sobre suas propostas para o combate à miséria. Trata-se de um elemento perfeitamente coerente com o ideário neomalthusiano que Bolsonaro sempre defendeu publicamente. Entre a fixação de Bolsonaro pelo controle da natalidade e sua negligência em relação à urgência sanitária da covid-19, parece haver uma mesma ideia: a de que os fracos, os mais pobres, frequentemente racializados, são suas vítimas naturais.
Esse modo inconsistente de pensar e de agir não faz de Bolsonaro uma excrescência do sistema; ao contrário, mostra seu perfeito alinhamento a um movimento global – que o antecede – de reanimação do neomalthusianismo em um contexto de crise capitalista. Prova de que essa doutrina não resiste ao mais simples teste de realidade é o fato de a miséria ter aumentado assustadoramente no Brasil, embora a população tenha diminuído – inclusive a mais pobre. Por outro lado, a intensificação dos incêndios nas florestas brasileiras com a conivência do ex-presidente mostra que o argumento ecológico do controle populacional é apenas mais uma de suas piadas de mau gosto. Assim, a suposta preocupação com a miséria e com a natureza revela-se mero pretexto para o controle social da miséria em um contexto de crise. Trata-se, ademais, da função que o malthusianismo sempre exerceu, desde seu surgimento.
Embora o crescimento da população no Brasil seja sobretudo endógeno, o tema da “grande substituição” é reposto, de modo que a taxa de natalidade a ser contida é a da população racializada, tratada como estrangeira endógena, por assim dizer. Os pobres, responsabilizados por sua própria miséria, já que supostamente não são capazes de limitar o número de filhos, são então culpados por sua fraqueza, a qual faz deles vítimas preferenciais da covid-19 – também de natureza incontrolável. Seja como for, a estruturação do discurso neomalthusiano pela extrema-direita consiste em um truque: desviar a atenção do fundamento da violência, da miséria e da catástrofe climática – a saber, a dinâmica destrutiva do capital –, preconizando o controle biopolítico de populações excedentes para o capital.