top of page

ONWARD BARBARIANS (AVANTE BÁRBAROS)
Endnotes
Tradução
Aline Dainez, Carine Laser, Gabriel Bichir, Guilherme Medeiros, Régis Alves

No começo de maio de 2020, rebeliões contra a fome eclodiram em Santiago, Chile. Lockdowns privaram homens e mulheres dos seus rendimentos a ponto de quase passarem fome. Um grande movimento de cozinhas comunitárias auto-organizadas logo se espalhou pelo país. Mais tarde no mês, rebeliões se espalharam pelo México em resposta ao assassinato de Giovanni Lopez pela polícia - um trabalhador de construção que havia sido preso por não usar máscara - enquanto milhares de trabalhadores migrantes desesperados quebraram o toque de recolher na Índia. Alguns trabalhadores de depósito da Amazon nos EUA e na Alemanha começaram greves em protesto contra os precários protocolos de segurança contra o COVID-19 [1]. No entanto, essas agitações das lutas dos trabalhadores na maior revendedora do mundo foram rapidamente abafadas, no final de maio, por um movimento de massa de proporções sem precedentes que varreu os EUA em revolta contra o assassinato de George Floyd pela polícia, transmitido ao vivo. Em larga medida iniciado pelos residentes negros de Minneapolis, o levante rapidamente congregou americanos de todos os lugares, raças e classes. Nas primeiras revoltas e manifestações podia-se até mesmo notar alguns poucos apoiadores milicianos numa Querfront digna da era do QAnon [2].


A chegada do COVID-19 inicialmente pareceu implicar uma ruptura na luta de classes ou, ao menos, pareceu prover o aparato repressivo com recursos adicionais. Pelo menos foi esse o prognóstico de três antiquados dissidentes italianos que circularam textos escandalosos nas primeiras semanas da pandemia [3]. E de fato pode ser verdade que os lockdowns representaram, como Julian Coupat recentemente argumentou, "uma nova forma de governar, e produzir, um certo tipo de homem" [4]. As mobilizações em massa que abalaram o Chile desde outubro de 2019 foram dispersadas pelo lockdown, juntamente a um medo generalizado da nova praga num país em que a saúde é uma mercadoria cara. A longa greve geral da França contra as reformas previdenciárias acabou abruptamente quando as reformas foram aprovadas pelo mesmo conjunto de decretos que anunciou as primeiras medidas de emergência do coronavírus, contornando o parlamento. Por algum tempo, manifestantes de Bagdá, de Beirute e de Hong Kong foram forçados a sair das ruas, e parecia que os dissidentes italianos estavam certos. Ainda assim, não demorou muito para que as massas ao redor do mundo desobedecessem aos toques de recolher e os lockdowns que colocaram metade da humanidade em confinamento e jogaram a economia mundial em uma gigantesca recessão.


Por volta da mesma época das manifestações em massa contra o assassinato de Floyd que surgiram nos EUA, milhares marcharam das favelas de São Paulo para o palácio do governador exigindo auxílio econômico, enquanto massas na Colômbia e em El Salvador tomaram as ruas batendo panelas para protestar contra a piora dos padrões de vida e para exigir o fim dos lockdowns. Em julho, centenas invadiram o parlamento da Sérvia em resposta à nova reinstalação de toques de recolher por parte do governo, enquanto o assassinato do popular cantor Haacaaluu Hundeessaa na Etiópia desencadeou manifestações violentas nas quais mais de 150 pessoas foram mortas. O mês seguinte viu protestos semelhantes no vizinho Quênia, quando as favelas de Nairóbi se levantaram contra uma força policial que tinha matado mais de 20 pessoas no processo de imposição do toque de recolher, enquanto a Bielorrússia tremia com manifestações, revoltas e greves depois de eleições manipuladas que, como sempre, entregaram o poder a Alexander Lukashenko. Em setembro, a Colômbia viu uma onda de revoltas decorrentes do assassinato do advogado Javier Ordóñez pela polícia, e os bairros da classe trabalhadora de Madri e Nápoles se levantaram contra a polícia e contra os lockdowns. No momento da escrita desse texto, a Nigéria acabara de experienciar uma onda massiva de protestos contra uma força policial assassina e corrupta, e a Índia está atualmente no meio da maior greve geral de sua história.





















Nosso período presente pode representar uma espécie de metanóia (uma conversão ou virada) das populações contra todo o conjunto de aparatos e costumes que não podem mais modelar de forma bem-sucedida a nossa espécie em um animal cujos únicos habitats são trabalho assalariado e capital. Na esteira de décadas de taxas de crescimento em declínio e crescentes retomadas de desemprego, estamos agora no meio da pior recessão global desde os anos 1930 (veja figura 1). O Escritório de Estatísticas do Trabalho dos EUA anunciou "os piores números de desemprego mensal dos 72 anos em que a agência tem dados em arquivo" enquanto o Banco da Inglaterra alertou que "o Reino Unido enfrentará o seu declínio de produção mais acentuado desde 1706" [5]. Camaradas em Faridabad, Índia, recentemente argumentaram que "o capital está em recuo irregular. O capital está extremamente fraco. Está cambaleando" [6]. Isso pode soar demasiado otimista, mas agora está claro que o "tipo de homem" que uma tal economia produz não é o átomo socialmente distanciado e autopoliciado, mas uma massa descontente de homens e mulheres pronta para se revoltar. Eles têm ido às ruas numa quantidade sem precedentes e num escopo planetário, uma confusão de identidades díspares reunidas pelo ódio a condições de vida em deterioração, à alienação e à polícia.


1. UMA ACUMULAÇÃO GLOBAL DE NÃO-MOVIMENTOS

Ainda é muito cedo para prever as consequências da pandemia, mas o que é certo, sem sombra de dúvidas, é que a era dos protestos que começou com a crise de 2008 não acabou. A maioria dos levantes que mais tarde deram vida aos sonhos e esperanças daquele ano, para usar as palavras de Barack Obama, ou foram esmagados pela repressão estatal, ou tornaram-se guerra civil, ou se fossilizaram em partidos políticos buscando administrar as economias estagnadas do nosso mundo. Contudo, se a esperança por mudança foi ingênua, isso só se deu porque as mudanças reais se revelaram em cores mais aterrorizantes com a ascensão do ISIS, com o golpe de Abdel Fattah el-Sisi e com a proliferação de um novo populismo que catapultou ao poder figuras como Donald Trump, Victor Orban e Jair Bolsonaro, mas também Emmanuel Macron e Boris Johnson.


Alguns tentaram entender este desenvolvimento do Occupy ao Trump pela via da dialética clássica da revolução e da contrarrevolução [7]. No entanto, não é de forma alguma claro que estamos testemunhando uma "contrarrevolução", pois os Trumps deste mundo podem apenas aumentar conflitos e aprofundar os cismas, até o ponto em que o partido da ordem revela-se o partido da anarquia [8]. Esses neopopulistas não podem produzir nenhuma hegemonia real, apenas dividir populações [9]. A vitória de Joe Biden mostra que o medo do fascismo foi exagerado. Mas os Bidens do planeta podem apenas estimular os cismas que deslegitimam o processo democrático. Se há um desenvolvimento iliberal, ele está mais precisamente ligado ao aumento de medidas draconianas do Estado contra os movimentos de protesto que vemos ao redor do mundo, os quais exigem soberania sobre suas vidas, bem como uma paz, uma ordem e uma segurança que nem Trumps, Bidens ou mesmo Sanders podem prover [10]. O eixo direito da figura 2 (em verde) mostra que entre 2008 e 2019 houve um aumento de lutas antigoverno em todo o mundo por volta de 11 por cento ao ano. O eixo esquerdo (em vermelho) mostra o declínio constante da legitimidade política a partir de 2008, medida pela quota de pessoas expressando satisfação com a democracia [11]. Demais figuras espalhadas por este artigo mostram as mesmas estatísticas distribuídas por região. Claramente visível nesta figura, a nova onda de levantes que emergiu desde maio de 2020 indica que estamos indo em direção a uma década ainda mais disruptiva. A insurreição não está vindo, ela já chegou, desdobrando-se em nível planetário com intensidade crescente a cada ano [12].





















Isto não implica que estamos continuamente nos movendo em direção a um ponto ômega onde a revolução se torna inevitável. Esses movimentos podem simplesmente indicar a nossa entrada num mundo ingovernável. Mas hoje podemos repetir as palavras de Jacques Camatte de 1972 e insistir que "desde maio, tem havido o movimento de produção de revolucionários" [13]. Em todo o mundo, homens e mulheres estão, se não abandonando o mundo do capital, pelo menos expressando um desacordo real com o status quo. Está implícito na acumulação de protestos desde 2008 um crescimento no número de pessoas com experiências de mobilização em massa e dissidência prática que podem potencialmente começar "a entender as necessidades existentes para uma revolução" [14]. Assim, mesmo que nosso período não seja revolucionário a curto prazo, ele é fundamentalmente disruptivo e produz o potencial para um rompimento com o modo de produção capitalista. O acúmulo de lutas, e, portanto, de homens e mulheres que experienciaram por si mesmos a necessidade de revolta e, talvez, de revolução, é um pré-requisito para qualquer discussão séria acerca da superação do capitalismo.


É verdade que a revolução não é uma escola e que não podemos confiar na memória coletiva mais do que nas nossas equívocas lembranças individuais. Mas a acumulação de dissidência social das décadas passadas provavelmente continuará e, cada vez mais, moldará o terreno sobre o qual as lutas são travadas. Isso não se deve apenas ao fato de que lutas antigovernamentais já reestruturaram o horizonte político, como nos casos de partidos como o Movimento Cinco Estrelas na Itália ou o En Marche de Emmanuel Macron, que organizou assembleias e copiou a retórica de 2011 de não ser nem de esquerda nem de direita. Nem é simplesmente porque movimentos de praça, rebeliões de jovens e lutas semelhantes estabeleceram as bases para Syriza e Podemos e inflaram os sonhos de Jeremy Corbyn e Bernie Sanders (em paralelo ao crescimento da direita nacionalista que parece ser a verdade da virada populista). Não, nós insistimos que a acumulação de dissidência social desde 2008 sinaliza uma contínua intensificação de conflitos de massa simplesmente porque os fracassos, muitas vezes brutais, ou até mesmo as débeis vitórias, dos movimentos desde 2011 não exorcizaram o espectro da mudança [15].


Pelo contrário, a anarquia do nosso período pressupõe que manifestações enormes, revoltas massivas e (precisamos enfatizar) ondas de greves [16], transformaram-se no novo normal. No Chile é possível, por exemplo, identificar uma linha vermelha que vai da revolución pingüina em 2006, quando centenas de milhares de jovens do ensino médio paralisaram o sistema escolar, exigindo passe livre e reforma educacional, ao levante mais violento e abrangente por volta de 2011. E então de novo, com intensidade ainda maior, vimos um novo salto em 2019 quando as massas tomaram as ruas, indignadas pela declaração de guerra do presidente Sebastian Piñera contra a população, que levou à reformulação da constituição [17]. Trajetórias similares podem ser identificadas em muitos países, como nos Estados Unidos, onde o Occupy Wall Street foi seguido pelo Black Lives Matter, que por sua vez pavimentou este ano o caminho para o maior movimento social na história do país [18]. Enormes sublevações e conflitos sociais intensos estão se tornando uma faceta tão normal do nosso período que até mesmo a esquerda radical os rejeita como incapazes de corresponder aos seus altos padrões: são liberais demais, violentos demais, passivos demais, informais demais, nacionalistas demais, demasiadamente parte do status quo, ou demasiado comprometidos com políticas identitárias.


Neste artigo, argumentamos que o que testemunhamos de fato desde 2008 é um contínuo crescimento do que o sociólogo iraniano-americano Asef Bayat descreveu como "não-movimentos", a saber, "a ação coletiva de atores dispersos e não organizados"[19]. Esses não-movimentos não são de forma alguma em si mesmos revolucionários. Eles estão mais próximos do que Camatte chamou recentemente de "revoltas passivas": expressões subjetivas da desordem objetiva dos nossos tempos [20]. Eles refletem acima de tudo a crescente deslegitimação da política num contexto de constante estagnação e austeridade. É a combinação de não-movimentos continuamente insurgentes envolvendo um número sem precedente de pessoas, com um declínio da legitimação democrática, que nos permite descrever a dinâmica da nossa era como a produção de revolucionários sem uma revolução.


Como exemplos de não-movimentos, Bayat aponta para as lutas dos pobres não organizados no Egito; a luta da juventude na Turquia para recuperar e realizar seus modos de vida desejados; assim como a luta das mulheres por igualdade de gênero tanto na esfera doméstica quanto na esfera pública no Chile, na Índia e nos Estados Unidos. Nessas lutas, as "práticas de reivindicação" se fazem sentir "através de ações diretas e não pela pressão exercida sobre as autoridades para que cedam - algo que os movimentos sociais convencionalmente organizados (como movimentos ambientalistas ou trabalhistas) geralmente fazem" [21].


Tais práticas frequentemente se revestem com os trajes da identidade. Assim como o movimento dos trabalhadores pertencia a uma ordem mundial capitalista emergente organizada pela polarização do campo político juntamente com linhas de classe, também hoje a fragmentação das classes moldou o horizonte dos não-movimentos. Numa época de endividamento, onde grande parte da população ou não tem reservas ou tem reservas negativas, a decomposição da classe desfaz as bases não apenas para o movimento dos trabalhadores, mas para a própria representação democrática. Assim, hoje é racional para os proletários, e cada vez mais para os membros da classe média, recorrerem a outras categorias com o objetivo de definir o seu lugar em uma ordem mundial cambaleante. A classe continua a ser a fonte primária de nossas separações - a sociologia marxista à moda antiga ainda é válida em muitos quesitos - mas o pertencimento à classe é hoje calibrado por uma multidão de variáveis tais como idade, gênero, geografia, raça, ou religião, que agem como canais, assim como limites reais, para lutas sociais, e fazem da política identitária uma expressão real da luta de classes [22].


Como deixamos claro abaixo, não desejamos rejeitar, denunciar ou sequer exaltar a política identitária, nem associá-la ao liberalismo ou ao reformismo [23]. No entanto, é preciso reconhecer que há algo bastante liberal nos não-movimentos, a saber, que eles são compelidos a confrontar as tendências iliberais da nossa era. Por exemplo, manifestantes franceses estão atualmente lutando contra novos controles draconianos sobre a liberdade de expressão e sobre a liberdade da imprensa, incluindo uma lei que proíbe fotografar a polícia [24]. Poder-se-ia dizer que os não-movimentos têm sua base na "tribo de toupeiras" que Sergio Bologna retratou em sua análise do autonomismo italiano dos anos 70, mas a forma delas pode também sugerir a subculturalização e a infantilização da sociedade que críticos como Christopher Lasch e Jean Baudrillard uma vez lamentaram [25]. Ao mesmo tempo, a confusão de identidades enfraquece teorias governadas, por exemplo, por perspectivas "interseccionais" que veem classe como uma identidade entre outras, pois é a própria estrutura de classe ramificada que tornou a identidade a categoria política central de um capitalismo estagnado [26].


Além disso, crítica externa à política identitária está fora de questão, pois os próprios não-movimentos apresentam em sua prática diária uma crítica imanente dos seus limites. Eles revelam como homens e mulheres estão começando a conceber a realidade em categorias para além dos imperativos econômicos, ao mesmo tempo em que estão se confrontando contra as consequências daquilo que é comumente chamado neoliberalismo. Políticas identitárias são, para nós, o modo necessário de politização de um sujeito neoliberal para quem os predicados da identidade parecem ser simultaneamente essenciais e inessenciais, empoderadores e debilitantes. Tais políticas não podem ser facilmente mapeadas em uma divisão estratégica entre "real" e "social", "classe trabalhadora" e "classe média", "revolucionário" e "reformista", porque sua operacionalização na luta leva à confusão de identidades, incluindo aquelas vomitadas pela própria luta.


Os levantes após o assassinato de George Floyd e a virada em relação às atitudes raciais nos Estados Unidos, que tem sido apropriadamente chamada de o "grande despertar", são uma expressão desse padrão e revelam a natureza antropológica dos não-movimentos [27]. O que estamos testemunhando é, em larga medida, um questionamento dos costumes, das representações e dos modos de reprodução que não combinam mais com o proletariado desindustrializado. Contudo, mesmo aqueles que apreenderam a particularidade dos não-movimentos têm geralmente falhado em reconhecer essa virada. Para Bayat, os não-movimentos implicam "uma revolução sem revolucionários", na medida em que dão origem a sublevações explosivas que não estão "ancoradas em visões estratégicas ou em programas concretos" [28]. Para críticos das políticas identitárias, como Michael Lind, os não-movimentos expressam um aprofundamento do capitalismo e não sua domesticação ou superação [29]. Porém ambos não entenderam bem as dinâmicas internas dos não-movimentos. Por um lado, temos argumentado, contra Bayat, que estamos testemunhando a produção de revolucionários sem revolução, uma vez que milhões vão às ruas e são transformados por sua efusão coletiva de raiva e de asco, mas (ainda) sem qualquer noção coerente da transcendência do capitalismo. Por outro lado, contra Lind, insistimos que os não-movimentos apontam para o núcleo disruptivo da nossa era, o fato de que a estagnação do capitalismo implica uma crise para a representação política como tal, e, portanto, o fim dos movimentos políticos no sentido clássico.


O movimento social clássico, como definido por Carl Schmitt, é a mediação entre as pessoas não organizadas e o Estado [30]. Tal movimento busca organizar e mobilizar "o povo" como uma categoria política e administrativa, que precisa superar as identidades que diferenciam uma dada nação, frequentemente reprimindo violentamente os interesses ou até a existência de grupos específicos. Em contraste, os não-movimentos expressam a dimensão antagônica da política identitária na medida em que não podem constituir um povo e só raramente articulam reivindicações políticas ou positivas claras. Caso contrário, produzem uma onda sem fim de reivindicações parciais e, por vezes, contraditórias - assim, assemelham-se a uma hidra cujos muitos apelos são quase impossíveis de realizar, mas cuja vida útil pode ser curta e violenta.


Claro que no interior dos muitos não-movimentos que estamos vendo ao redor do mundo, que incorporam grandes setores do proletariado assim como elementos da classe média em movimento descendente, muitos realmente esperam constituírem a si mesmos como um novo sujeito. Às vezes ligam-se a partidos, sindicatos e outras organizações que já pertenceram ao mundo dos movimentos e ideologias, mas que nos dias de hoje em sua maioria agem como um estranho conjunto de subculturas. Nacionalismo e populismo estão certamente de volta. Mas, como notou Gilles Dauvé a propósito dos Gilets Jaunes [Coletes Amarelos], os não-movimentos tendem a conseguir se mobilizar apenas como turba, abalando o status quo [31]. Eles reformulam constituições, derrubam governos e forçam presidentes e primeiros ministros a renunciar (como vimos recentemente no Chile, no Peru e na Guatemala). No entanto, por representarem a crise de um capitalismo estagnado, e seu efeito é tornar a estagnação ingovernável, os não-movimentos apontam para a necessidade de um universalismo que vai além das ruínas dos movimentos dos trabalhadores [32].


Em um mundo onde a identidade medeia a classe, o ódio proletário assume a cor amarela (como com os Gilets Jaunes) ou preta (como no levante de George Floyd) ao invés da vermelha. A trajetória de um mundo de trabalhadores para um globo de proletários - que Gáspár Miklós Tamás descreveu [33] - moveu a luta de classes para além das formas tradicionais e da retórica política. Mas o nosso objetivo não é apenas insistir novamente que o movimento dos trabalhadores foi se enfraquecendo globalmente desde os anos 1970, que a própria composição de classe revela a si mesma de forma negativa, como decomposição, e que novos símbolos ideológicos estão, desse modo, moldando os protestos e reconfigurando os movimentos sociais. O que queremos enfatizar é que a lógica do não-movimento expressa a dimensão antagônica e a base social da "política identitária" enquanto tal, seja ele advindo da esquerda ou da direita. Em vez de entoar a ladainha do cul de sac [beco sem saída] identitário, a questão é mostrar como um status quo crescentemente disruptivo é necessariamente atravessado por problemas de identidade, e que qualquer discussão sobre emancipação precisa começar daqui.


O que estamos testemunhando hoje é uma confusão generalizada de identidade. Podemos observá-la não apenas nos Estados Unidos, onde os liberais com formação universitária estão derrubando estátuas e se juntando aos proletários negros e a um punhado de milicianos brancos em uma frente popular contra a polícia, mas também na França, onde os trabalhadores nas ruas antes cantavam a Internacional, mas agora têm como grito de guerra "Aou! Aou! Aou!" (do filme 300 de Zack Snyder) e agitam bandeiras francesas ao profanar o monumento mais patriótico da França - o Arco do Triunfo. No Chile, o slogan "evadir", alavancado inicialmente por estudantes do ensino secundário - a verdadeira vanguarda dos levantes - contra os aumentos das tarifas de transporte em outubro de 2019, logo se generalizou em uma revolta contra a austeridade e contra a repressão policial que tomou por símbolo a bandeira indígena mapuche em vez das bandeiras vermelhas ou pretas da esquerda [34]. Com esses cantos e símbolos confusos, os não-movimentos declaram estar do lado dos "bárbaros" contra o Estado (ou império) e começam a questionar um modo de produção que não pode mais produzir bem-estar ou prosperidade [35]. Eles expressam a necessidade de uma nova reprodução da existência cotidiana, uma necessidade que leva homens e mulheres a se revoltarem em todo o mundo em uma escala sem precedentes.


É verdade que essa necessidade é frequentemente expressa apenas como falta ou mesmo literalmente como fome. Mas não há, como temos visto desde o retorno das revoltas por comida a partir de 2011, nada mais ingovernável que homens e mulheres famintos. E os nove anos de 2011 a 2020 têm sido anos de crescente desespero e de pauperização. As lutas de Puerta del Sol, Tahir, e Syntagma em 2011 foram rapidamente eclipsadas. Entretanto, o impulso por trás delas não desapareceu, foi simplesmente trocado pela fúria ainda maior e pelo desespero dos Gilets Jaunes ou pelos levantes no Chile, Equador, México e agora no Peru e na Guatemala. Além disso, Estados e economias capitalistas têm sido impotentes quando convocados a satisfazer as necessidades crescentes e cada vez mais explosivas dos não-movimentos.




















2. CONFUSÃO E INGOVERNABILIDADE

Uma característica unificadora dos não-movimentos é que eles lutam no terreno de um capitalismo estagnado (veja a figura 1 acima). Assim como a estagnação de seu próprio tipo de capitalismo levou à queda da União Soviética, a atual era de estagnação e de desindustrialização levou ao enfraquecimento da socialdemocracia europeia, primeiro por meio de uma virada à direita e depois por sua pasokificação. Esse processo ocorreu paralelamente à ascensão de partidos iliberais e, desde 2008, a duras medidas de austeridade. Em resposta, vimos nos não-movimentos o aspecto disruptivo tanto dos valores liberais quanto da defesa das necessidades básicas de um proletariado miserável cada vez mais diferenciado em fragmentos drasticamente distintos. Mas essa fragmentação não implica necessariamente divisão. Pelo contrário, muitas vezes força as pessoas a se unirem em alianças reais, mas débeis, como a dos “99%” ou a do mosaico de grupos que se reuniram no estallido social [levante social] do Chile. Lá os movimentos recorreram à canção El derecho de vivir en paz de Victor Jara — “o direito de viver em paz” — não porque se identifiquem com o herói da música (Ho Chi-Minh), mas porque a paz e até a ordem se tornaram uma exigência radical em um mundo cada vez mais catastrófico.


O termo não-movimento não designa apenas as explosões de revoltas e ocupações de praças em que a classe média desfavorecida e o lumpemproletariado, pessoas das periferias e sertões; islamistas e feministas; milicianos e negros pobres podem pelo menos potencialmente unir as armas contra um inimigo comum e, assim, começar a desfazer suas separações. Ele também aponta para um repertório de hábitos e experiências, para uma política cotidiana que possibilita tais rupturas espetaculares e tais surtos violentos. O fato de que a maioria das pessoas envolvidas no levante de George Floyd fosse branca, e que a morte de Floyd pudesse se tornar um catalisador para um amplo levante contra Trump, revela mudanças sociológicas e demográficas que tornam possível a confusão dos não-movimentos e que vão além do próprio levante [36].


Mesmo as organizações formais que, pelo menos por um período de tempo, tiveram êxito em representar uma determinada realidade social, precisaram se adaptar à lógica dos não-movimentos. Podemos observá-lo nos sindicatos franceses, inicialmente hostis aos Gilets Jaunes, que conseguiram tirar proveito desse não-movimento em setembro de 2019 ao lançar sua greve contra as reformas previdenciárias de Macron [37]. Nesse sentido, o não-movimento se tornou a forma de luta hegemônica, mas apenas na medida em que reflete uma crise mais ampla de representação. Assim, os não-movimentos podem ser descritos como processos destituintes ao invés de constituintes [38]. Mas contra aqueles que fetichizam a destituição como um caminho positivo ou revolucionário, enfatizaríamos que hoje todo poder está se tornando destituinte, no sentido de que não apenas os fluxos de capital, mas também as motivações e as necessidades das populações tornam a ordem política cada vez mais difícil de governar.


Essa ingovernabilidade também pode ser vista na formação dos não-movimentos como resposta ao governo draconiano ou cada vez mais irracional, especialmente como resposta à violência policial. Uma das poucas coisas que a maioria dos trabalhadores, dos estudantes, dos desempregados e assim por diante, em qualquer país, tiveram em comum nas últimas décadas é terem sido vítimas de políticas venais que alocam recursos estatais cada vez mais escassos para membros da elite. Embora tal corrupção possa ser a qualquer momento uma fonte de raiva popular, essa raiva é exacerbada agora que a política estatal foi reduzida a brigar pela distribuição de uma fatia fixa ou cada vez menor do bolo e quando os pedidos comuns por medidas de contenção tornam qualquer injustiça nessa distribuição ainda mais intolerável. Como argumentamos em “The Holding Pattern” [O Compasso de Espera], uma raiva difusa contra a flagrante injustiça de um regime de crise administrado por uma classe política corrupta e incompetente definiu em grande parte uma maré crescente de luta de classes e de mobilização popular ao redor do mundo desde 2008. Isso, argumentamos abaixo, também é o motivo pelo qual os não-movimentos de hoje se voltaram com tanta frequência contra a polícia, como a face brutal da corrupção e da injustiça, e é parte da razão pela qual o antirracismo tem sido uma força mobilizadora tão central nos EUA [39].


No entanto, o que cada onda de mobilização de massa enfrenta é a capacidade limitada de ir além de uma unidade negativa (uma unidade contra o racismo/polícia/elites) para estabelecer uma força social ou política positiva e criativa. Os problemas perpétuos da política identitária são sintomáticos desse limite: a incapacidade de uma onda de lutas se corporificar e se sustentar dada a atomização e fragmentação de seus componentes. Em algum momento, cada onda se choca e se despedaça nesses fragmentos. Os não-movimentos tendem tanto a atacar quanto a se afastar de um Estado que eles percebem estar se afastando deles. Nesse sentido, a exigência americana de “desfinanciar a polícia” reflete uma tendência mais ampla (em muitos aspectos um avanço) de não mais lutar para tomar o Estado, mas simplesmente de colidir com o aparato estatal: austeridade contra austeridade.


Enquanto os movimentos tradicionais se formaram em torno de estruturas ideológicas relativamente estáveis e comunidades reais, como o sindicato, como o partido de massas ou como os países do socialismo de Estado, aqueles que se espalharam pelo mundo desde 2008 expressam os desejos coletivizados de populações cada vez mais atomizadas. Mas enquanto o fim da era dos movimentos é, em certo sentido, o fim da ideologia, não é, como vimos, o fim da identidade. Pelo contrário, as identidades proliferam em uma economia cada vez gangsterizada e subculturalizada em que, como Tyler Cowen argumentou, a média acabou [40]. Não há mais um centro estável, antes uma estrutura de classe altamente segmentada que reconfigura o terreno dos movimentos clássicos como o fascismo e a socialdemocracia. Se a política centrista de Clinton e Blair durante a década de 1990 e a ascensão das políticas identitárias desde a década de 1970 já sinalizavam essa mudança, o período desde 2008 revela, em vez disso, uma crescente confusão de identidades.


Os não-movimentos são, como temos insistido, a expressão subjetiva de uma desordem mais geral que tem suas raízes na estagnação capitalista. É a grande quantidade de protestos e revoltas – sua crescente normalidade – que distingue nossa era, por exemplo, dos anos antiglobalização. É por isso que dizemos que nossa época é marcada pela produção de revolucionários em escala global. Homens e mulheres de todo o espectro da ideologia política e da estratificação identitária estão confrontando a ordem reinante com seu desgosto, medo e raiva, cada vez mais defendendo seu direito de se “evadir” aos custos insuportáveis da vida capitalista. São revolucionários sem revolução, mas em seu confronto com a reprodução capitalista, assim como em sua ânsia por comunidade, os não-movimentos expressam um conflito potencial com a lógica do capital como tal.


Em tal contexto, a política – na forma clássica de inimizade e de cisma – volta com força total. A política identitária anuncia um retorno do político ao invés do nascimento de uma era pós-política (como têm argumentado muitos críticos de esquerda da política identitária). Mas a política não pode mais produzir qualquer estabilidade significativa. Ela divide a população contra si mesma e leva as nações, se não a uma guerra civil, ao menos à intensificação de conflitos e a cismas mais profundos. No entanto, embora a aporia da identidade represente uma perda do que poderíamos chamar de comunidade, não vemos ganho no desejo de retornar aos horríveis mundos da socialdemocracia e do fascismo. Pelo contrário, tendemos a ver uma ânsia por uma existência comunal baseada nas demandas liberais expressas nos não-movimentos. O liberalismo e o wokeness, por mais estranho que pareça, tornaram-se forças disruptivas em um momento em que amplos setores da esquerda estão se tornando cada vez mais conservadores, abraçando o populismo nacionalista que alimenta a direita.


Por isso, tranquilizamos o leitor preocupado que agora indaga: como ter certeza que a desordem de nossos tempos não nos empurrará simplesmente ainda mais fundo em direção a uma ordem autoritária que só pode ampliar o abismo entre o liberalismo e a democracia que estamos testemunhando hoje? A primavera árabe não levou à ditadura e à guerra? O movimento Occupy não pressagiou Trump? As lutas brasileiras contra o aumento das tarifas de transporte não prepararam o terreno para os protestos anticorrupção que deram poder a Bolsonaro? A lógica identitária que está produzindo lutas ao redor do mundo não nos empurra sobremaneira para um mundo fascista? Forças iliberais e fascistas estão ganhando força, mas seria irracional atribuir sua ascensão aos não-movimentos, já que eles mesmos são expressões da desordem de nossa era que tanto os populistas de esquerda quanto os de direita buscam explorar. Além disso, a reação cultural que alimenta o populismo de direita já dura décadas, muito antes do crash de 2008 – o principal motor dos não-movimentos [41].


Além disso, o fechamento de fronteiras e a virada ao nacionalismo, as duras políticas para os refugiados em países governados pela esquerda, como Suécia e Dinamarca, bem como a vitória da direita populista em nações como Polônia e Hungria, revelam desenvolvimentos claramente iliberais em lugares que não foram dilacerados por não-movimentos. Deixado a si mesmo, nesse mundo de produtividade estagnada e de desindustrialização, o Estado capitalista contemporâneo irá facilmente fundar a cidadania na língua, na cultura e no trabalho. É por isso que massas crescentes de homens e mulheres em todo o mundo são mobilizadas por valores liberais e democráticos e cada vez mais levadas a odiar uma polícia a quem foram atribuídas as tarefas sujas de uma ordem ingovernável [42].





















3. UMA NOVA DESORDEM MUNDIAL

Bayat compara o surgimento dos não-movimentos com o que Timothy Garton Ash denominou, em referência aos movimentos do Leste Europeu nos anos 80 e 90, “refolutions” – levantes violentos em favor de reformas liberais [43]. Estes foram de fato precursores importantes, mas por razões que nem Ash nem Bayat identificam. O que Ash não conseguiu ver foi que esses movimentos respondiam a um colapso do império soviético que prenunciava uma crise do mundo industrial moderno [44]. Desde então, o Ocidente vem alcançando os antigos países comunistas em termos de sua própria estagnação e desindustrialização (veja a figura 1). Os levantes proliferantes da nossa era, que muitas vezes desaparecem tão rápido quanto aparecem, expressam o estado disruptivo de uma ordem econômica global em estagnação secular, bem como a geopolítica em ruínas do período pós-1945.


Um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, o marxista italiano e teimoso líder de seita Amadeo Bordiga escreveu o “Tracciato d'impostazione”, um ensaio tão cheio de exageros retóricos e de jargões desconexos que, quando aparecem, seus insights reais brilham como pedras preciosas na lama [45]. Bordiga procurou esclarecer a definição de movimento revolucionário em um momento em que o “democapitalismo” reinava supremo e a própria teoria comunista havia perdido seu significado original de uma ciência radical e experimental que previa a mudança social. Para esse revolucionário sectário, a trindade antifascismo, democracia e, em última análise, marxismo havia se tornado o principal obstáculo para qualquer perspectiva comunista digna desse nome. Agora, “movimentos extremamente conservadores de instituições burguesas ousam designar-se partidos do proletariado”, lamentou [46]. A vitória dos Aliados em 1945 não só ofuscou as perspectivas de uma guerra revolucionária na Europa, mas também transformou o imaginário comunista original em um imaginário democrático que, em última instância, afastaria os proletários do movimento operário. Assim, muito antes de Thomas Piketty alertar sobre as consequências da “esquerda brâmane” [47], Bordiga declarou que o marxismo estava se transformando em uma ideologia para os gestores da classe média, ou pior, em uma simples defesa do liberalismo e da democracia [48].


Bordiga talvez concordasse com Mario Tronti, que insistiu que “o movimento operário não foi derrotado pelo capitalismo, foi derrotado pela democracia” [49]. Bordiga, no entanto, argumentou que o próprio movimento comunista havia lançado as bases para essa derrota democrática. Sua famosa crítica ao antifascismo e suas reflexões contrafatuais sobre por que uma vitória do Eixo poderia ter estimulado uma guerra civil e, portanto, a revolução, podem parecer bizarras para nós hoje [50]. Entretanto, o diagnóstico de Bordiga da era pós Segunda Guerra Mundial pode nos ajudar a entender o crescimento dos não-movimentos, constantemente lutando por valores aparentemente liberais e exercendo pressão sobre o Estado a partir de baixo, ao mesmo tempo em que vemos uma ascensão da direita populista que reflete uma crise das classes gerenciais. Nosso tempo é atravessado pela desordem tanto de cima como de baixo, e essa crise parece estar desfazendo a base da longa paz (a Pax Americana) que interrompeu o desdobramento revolucionário de uma época anterior.


A ascensão de Trump, Bolsonaro, Duterte, Modi, Orban, Putin e até Macron revela que o status quo é de ruptura, o que David Ranney chamou de “Uma Nova Desordem Mundial” [51]. Como vimos recentemente na Polônia e nos Estados Unidos, as eleições são cada vez mais disputadas e vencidas em margens estreitas entre "liberais" e "conservadores", sendo a idade e a educação tipicamente mais decisivas do que a classe na formação da lealdade partidária [52]. Os Trumps do mundo dividem as populações, e mesmo as classes dirigentes, contra si mesmas e revelam que a luta pela democracia liberal pode ser facilmente radicalizada, assim como revolucionários podem ser facilmente cooptados como camisas pretas prontos para lutar com suas pedras, escudos e guarda-chuvas pelo status quo democrático. O levante de George Floyd, por exemplo, tornou-se rapidamente um canal de resistência à autocracia dos novos líderes populistas em todo o mundo. Mas sob a oposição “liberal” e “conservador” podemos identificar o que Bordiga chamaria de tendências “antiformistas”, escalando conflitos e remodelando a forma social de nossa ordem atual.


Ao analisar o conflito social e as instituições sociais, Bordiga repudiou expressões imbuídas de valores como “conservador”, “progressista” ou mesmo “revolucionário” [53]. A tarefa do marxismo, que Bordiga qualifica de uma "ciência da espécie", é entender cada movimento ou instituição social em suas dimensões "conformista", "reformista" ou "antiformista " [54]. Um movimento conformista é uma força que procura manter "intactas as formas e instituições existentes, proibindo qualquer transformação e referindo-se a princípios imutáveis" [55]. Os movimentos reformistas são "aqueles que, embora não procurem perturbar abrupta e violentamente as instituições existentes, significam que as forças produtivas estão exercendo uma pressão forte demais, e que defendem mudanças graduais e parciais da ordem atual" [56]. Os movimentos antiformistas, ao contrário, envolvem um "ataque às formas antigas, e mesmo antes de saber teorizar as características da nova ordem, tendem a quebrar a antiga, causando o irresistível nascimento de novas formas" [57].


Se adotarmos a tipologia de Bordiga, argumentaríamos que é esta última dimensão que vemos aumentar anualmente, tendo em vista que mais e mais pessoas expressam sua frustração com o status quo. A proliferação de não-movimentos reflete a instabilidade de um mundo pós-industrial e, portanto, pode ser descrita como “antiformista”. Todavia, essas explosões podem facilmente se transformar em movimentos reformistas ou mesmo conformistas se, paradoxalmente, permanecerem incapazes de evitar as tendências à guerra civil e à violência niilista implicadas nessa instabilidade. O sonho de Bordiga de uma guerra revolucionária tornou-se (ou talvez sempre tenha sido) uma fantasia ingênua incapaz de produzir as bases para uma sociedade sem classes. As guerras civis na Líbia e na Síria revelam a facilidade com que a guerra transforma organizações revolucionárias de massa em gangues militares que precisam de dinheiro, armas e recrutas [58].


Mesmo que a defesa da guerra de Bordiga fosse ingênua, sua crítica à democracia ainda merece séria consideração. A evolução de 2008 a 2020 mostra que os não-movimentos encontram seu limite na face de Janus da repressão e da representação (ou, em sua forma mais plena, da guerra e da democracia). As duas podem ser combinadas para enfraquecer os não-movimentos, por exemplo, amarrando-os ao Estado ou transformando-os em partidos ou sindicatos formais. Tais derrotas nascem das necessidades dos próprios não-movimentos, de sua incapacidade de ultrapassar seus limites imanentes. Mas se a acumulação de lutas antigovernamentais continuar a aumentar, como tem feito anualmente desde 2008, então será necessário que os não-movimentos desenvolvam sua crítica instintiva da repressão e da representação para uma crítica implacável da guerra e da democracia.


Uma estratégia que buscasse desencadear a lógica antiformista dos não-movimentos teria que passar pela discussão dos problemas da mediação política e, portanto, pela defesa do que se costuma chamar de antipolítica [59]. Para que os levantes evitem as duas armadilhas da guerra e da democracia, é necessária uma perspectiva estratégica que desafie as divisões ideológicas e identitárias dentro do proletariado, incluindo aquelas entre os trabalhadores e os estratos de classe média. Pode-se apostar que as consequências econômicas dos lockdowns que já estão começando a forçar as pessoas a se unirem contra uma economia estagnada e em deterioração contribuirão ainda mais para a confusão de identidades predominantes e visíveis em muitos lugares ao redor do mundo. Assim como os Gilets Jaunes fundiram homens e mulheres do interior, certamente conservadores ou de direita em muitos casos, com estudantes de esquerda, membros insatisfeitos da classe média e proletários das periferias, a desaceleração e a paralisação mais recente da economia lançarão as bases para mais confusão [60]. Às vezes, a incerteza gerada por essa mistura pode parecer assustadora, e talvez seja por isso que os jovens de Napoli, protestando contra as consequências dos lockdowns, sentiram a necessidade de declarar “somos trabalhadores, não fascistas”. Como Perry Anderson alertou em 2017, uma das razões pelas quais o sistema está vencendo pode ser o fato de o medo, e não a raiva, mobilizar a esquerda [61]. Mas os não-movimentos desafiaram corajosamente a repressão policial, lockdowns e o medo do coronavírus simplesmente reunindo pessoas aos milhares nas ruas. Esse questionamento de uma normalidade capitalista, marcada pela histerese e o catastrofismo que a acompanha, será ainda mais importante à medida que a economia continuar estagnada e os não-movimentos forem empurrados para uma direção mais revolucionária [62].


Uma reflexão estratégica, portanto, também precisaria vislumbrar meios pelos quais os não-movimentos possam eventualmente assumir o controle da estagnação/desindustrialização capitalista e liberar as bases para um novo mundo que ela contém. Isso é algo que eles não estão nem interessados em fazer, nem são ainda capazes de fazer, pois ameaça sua espontaneidade e, em certo sentido, sua passividade constitutiva. Mas, para sobreviver, os não-movimentos devem inspirar a criação de formas de vida capazes de viver por algo mais do que dinheiro e trabalho assalariado. Isso implicaria um novo uso dos meios de produção como ferramentas contra o capital – ferramentas que não apenas nos liberam do trabalho, mas também nos permitem compartilhar o trabalho necessário para garantir que a vida possa se tornar algo mais do que mera sobrevivência [63]. Como os "Angry Workers of the World” [Trabalhadores Furiosos do Mundo] recentemente ressaltaram, o objetivo imediato deve ser que todos “trabalhem menos com salário integral, conforme o nível atingido de produtividade social” [64].


No entanto, populações dispostas a viver tal existência comunal, em que a economia é regida por uma desindustrialização ao mesmo tempo possibilitada e proibida pelo capitalismo, só podem ser produzidas sob a forma de uma (chamemo-la provocativamente) mistura interclassista tão característica de nosso período. Proletários, estudantes e camadas de classe média são forçados a se unir nas ruas. Trabalhadores com poder estratégico fundamental, técnicos com know-how para remodelar a face industrializada do mundo, tais grupos serão cruciais para o ultrapassamento do capitalismo; mas a afirmação de seu poder será uma receita para uma maior fragmentação de classe, a menos que possam ir além de seus interesses setoriais e convergir com segmentos das massas precárias ou desempregadas do mundo. Assim, embora seja necessário estar “enraizado” na vida proletária, criando assim vínculos internacionais entre trabalhadores em luta, é igualmente essencial vincular os locais de trabalho aos não-movimentos cujo crescimento transborda as fronteiras mais setoriais e até de classe [65]. O fracasso nesse aspecto implica reproduzir as divisões que estratificam as classes em diferentes segmentos com interesses distintos e não raramente antagônicos. Certamente é algo dessa oscilação – que tanto força as pessoas a se unirem em alianças frágeis quanto cria divisões significativas dentro do proletariado global – que caracteriza nosso período de Behemoths decrépitos e Leviatãs fracassados.


Hoje, um vírus quase parou a máquina civilizacional. Ele revelou a incapacidade do Estado capitalista de abrigar vida sem fechar uma economia que se tornou quase inseparável da existência humana como tal. Dado que não buscamos nem somos capazes de recriar a máquina de crescimento que foi a base da socialdemocracia, o único caminho a seguir é, como insistiram os bordiguistas em 1953, lutar por um radical “desinvestimento do capital”. Para Bordiga isso implicava que aos "meios de produção fosse atribuída uma proporção menor em relação aos bens de consumo" e que elaborássemos um “plano de subprodução, ou seja, a concentração da produção no que é necessário” [66]. Uma tal combinação de desinvestimento e subprodução certamente se mostrou possível através dos lockdowns (bem como através da estagnação secular da economia). Mas afirmar o controle sobre o declínio capitalista exigiria abordar as questões sociais que produzem as estranhas convergências entre os diferentes estratos sociais dentro dos não-movimentos.


Os protestos de jovens do ensino médio no Chile por um aumento de 30 pesos no transporte se tornaram um movimento de massa contra os 30 anos da constituição neoliberal que foi reformulada em outubro de 2020: “No son 30 pesos son 30 años” [Não são 30 pesos, são 30 anos]. Um protesto contra o aumento do preço do combustível na França logo se tornou uma ampla mobilização contra a crescente desigualdade e contra as medidas de austeridade impostas por um governo autocrático. Quando as lutas se intensificam e muitas demandas iniciais são atendidas – não raramente pelo simples fato de que a repressão força cada vez mais pessoas às ruas devido à repulsa pela violência policial – os não-movimentos revelam um ponto de unidade no fato de que todos são produzidos, ou ao menos condicionados, pela estagnação econômica. Nesse contexto, a confusão identitária dos não-movimentos pode ajudá-los a se conscientizar do que são: expressões subjetivas do declínio econômico. Temos argumentado que a consciência de classe, no período atual, só pode ser a consciência do capital [67]. Hoje isso não implica, por sua vez, nada mais do que a crescente revelação de que o capitalismo não tem futuro. E quando os Gilets Jaunes dizem “fim do mundo, fim do mês”, eles não estão apenas expressando o que consideram a dimensão apocalíptica da nossa era, mas afirmando o fim deste mundo e desta vida como o pré-requisito necessário para a criação de um novo mundo e de uma nova vida.





















4. AGORA SOMOS TODOS CANALHAS

Vimos que a turba que agita bandeiras e canta hinos nacionais tentando destruir o Arco do Triunfo, bem como a derrubada por vezes indiscriminada de monumentos nos Estados Unidos, são todos indicativos de um padrão mais amplo do que só pode ser chamado de antipolítica [68]. Mas, tal como acontece com muitos não-movimentos contemporâneos, desde a Primavera Árabe até os Gilet Jaunes [coletes amarelos] e Black Lives Matter, a fúria contra a polícia vem, muitas vezes, substituir um ódio mais amplo contra a política. Isso não ocorre simplesmente porque a polícia é a manifestação imediata da repressão estatal, um adversário tático nas ruas. Se as estátuas são os símbolos mortos do Estado, a polícia são os seus vivos, e isto é especialmente verdade em uma época de austeridade e de uma pandemia mortal. Uma vez que o Estado provou ser incapaz de proteger a população de uma crise multifacetada, fica claro que o seu papel principal será conter as consequências dessas crises disciplinando a população. Ou seja, o Estado está sendo reduzido à sua função policial.


Assim, o popular slogan francês tout le monde déteste la police - "todos odeiam a polícia" - pode apontar para uma deslegitimação mais ampla do estado moderno, cujo antigo precursor, a polis, emprestou tanto o nome como a forma para a "polícia". A violência policial, as quarentenas, o distanciamento social, e as medidas de lockdown (ou, com efeito, a vontade dos políticos de reabrir as economias) tornaram-se desencadeadores de uma nova onda de dissidência social que reflete uma crise aguda de representação política. Claro, nem todo mundo odeia literalmente a polícia. As pesquisas na Europa Ocidental frequentemente mostram um grau notável de confiança na polícia (embora isso varie de acordo com classe, idade, nação e raça) [69]. Embora a polícia seja amplamente desprezada nas autocracias, os recentes programas de austeridade deram-lhes uma forma particularmente degenerada e violenta em algumas democracias neoliberais, onde se tornaram o principal representante do Estado em muitas comunidades pobres e da classe trabalhadora [70]. Consequentemente, as sondagens mais recentes mostram que a confiança na polícia caiu, e podemos ver sinais de que a polícia se tornou cada vez mais um foco de ódio, não apenas dos proletários e das minorias raciais, mas também entre segmentos da pequena burguesia e mesmo dos ricos.


Certamente, uma razão para isso pode ser um aumento tanto da incidência de brutalidade policial como da conscientização sobre esta. A polícia é universalmente brutal, pois o ofício tanto seleciona como encoraja uma personalidade autoritária, e o papel da polícia na proteção da riqueza e da propriedade sempre fez da polícia, nos termos de Orwell, o inimigo natural da classe trabalhadora [71]. Mas a brutalidade policial pode ser ampliada pela sua responsabilidade expandida de impor primeiro a austeridade, e agora os lockdowns. Sem um compromisso de aumentar os recursos da polícia, os policiais que encontram o seu tempo e recursos esgotados podem estar mais inclinados a recorrer a punições sumárias ou exemplares. Em todo caso, seu papel de conter e disciplinar a população que se revolta contra essas medidas torna inevitável o aumento da brutalidade, e o aumento dos níveis de brutalidade, por sua vez, conduzirá inevitavelmente a um aumento da inimizade tanto das vítimas como dos espectadores (reais ou virtuais).


Além disso, a própria experiência de ser odiado pode dar origem a uma identidade subcultural entre os policiais, não muito diferente daquela de muitos dos que os combatem: um sentimento de ser uma minoria sitiada ("blue lives matter" [vidas azuis importam]) que pode ampliar a tendência para o aumento da brutalidade. A sensação de que não são respeitados nem pelos proletários, a quem disciplinam, nem pelos ricos, a quem protegem, pode também levar ao cinismo. Assim, embora seja verdade que “all cops are bastards” [todos os policiais são canalhas], também é verdade que ao reagirem ao sentimento de abandono (por parte de políticos e elites) e de ilegitimidade (aos olhos daqueles que eles policiam) os policiais acabam por verem a si próprios como canalhas - os filhos não reconhecidos de uma sociedade doente - e se deleitam em ostentar normas "civilizadas", brutalizando impunemente [72]. Tal como Edmund, em Rei Lear, eles "defendem os canalhas" [73].


A possibilidade de um segmento crescente da população vir a identificar-se com esta brutalidade desavergonhada levanta um perigo fascista real, e isso produz uma reação antifascista e antipolicial compreensível. No entanto, como Camatte já apontou em 68: "é perigoso delegar toda a desumanidade a uma parte do todo social, e toda a humanidade a outra" [74]. Para Camatte, o risco não é apenas o de ir contra um princípio fundamental do humanismo (e, portanto, do comunismo), mas também o de "excluir efetivamente a possibilidade de minar a força policial" [75]. Concentrar nossos ataques na polícia é, para Camatte, "perpetuar um certo ritual" - um ritual em que a polícia é sempre colocada no papel de subjugadora invencível" [76]. Em vez de assumirmos que atacar a polícia é a tática insurgente por excelência, temos que pensar estrategicamente sobre como contornar a polícia, e até explorar potenciais contradições dentro do campo inimigo [77].


Uma crítica contemporânea da violência, adequada a uma época em que a guerra só pode significar derrota, não necessita de recuo; em vez disso, pode indicar a necessidade de uma inteligência revolucionária, como quando massas de mulheres cercam a polícia na Bielorrússia, ou o Muro das Mães protege a linha de frente em Portland. No entanto, seria um erro exagerar a importância das táticas e planos ao discutir as ações espontâneas de milhões de homens e mulheres. As melhores maneiras de desmobilizar a polícia e as forças de segurança são através da escalada crescente (e, portanto, muitas vezes violenta) dos protestos. Não são as revoltas que colocam em risco o desenrolar contínuo das lutas (delegacias de polícia incendiadas podem mobilizar milhões, como vimos após o assassinato de George Floyd), mas sim a militarização do conflito. Todas as formas de violência profissionalizada impedem o crescimento dos não-movimentos, precisamente na medida em que estes últimos assumem a forma de massas de revolucionários não profissionais que procuram superar as divisões do trabalho que minam o potencial emancipatório dos protestos.


Por fim, os não-movimentos não apenas deslegitimam a polícia, mas todo um mundo em que a política se reduz ao policiamento. Eles podem combater a polícia de forma mais eficaz ao deslegitimar o sistema como um todo. Como vimos muitas vezes recentemente, isso pode implicar que os militares sejam mobilizados, suscitando o espectro da guerra civil. No final, esse espectro só pode ser dissipado através da deserção. E tal como os soldados devem desertar (tradicionalmente a condição sine qua non do sucesso revolucionário), as deserções da polícia e da equipe de segurança, como na chamada Revolução Bulldozer, na Sérvia, em 2000, serão cada vez mais necessárias para ultrapassar a inimizade que devolve os não movimentos às categorias, identidades e papéis que eles começaram a transcender em suas confusões [78].


Talvez, odiando a polícia odiemos aquilo que nos tornamos. Não no sentido de que odiamos "os policiais em nossas cabeças", mas no sentido de que nos tornamos dependentes da mesma infraestrutura austera que, em última análise, se assenta na polícia, mas de cuja exclusão - aquilo que Ruth Gilmore descreveu como "abandono organizado" - significa morte prematura, e não apenas nas mãos da polícia [79]. De certa forma, todos nós nos tornamos "canalhas". No entanto, se assim for, é evidente que nem "desfinanciar" nem "abolir" a polícia resolveriam esse problema mais profundo.


O movimento pelo desfinanciamento imagina que o dinheiro gasto na polícia e nas prisões, se realocado para outros programas sociais, poderia resolver os problemas sociais subjacentes que a polícia deveria gerenciar ou conter. Mas isto ignora o fato de que a polícia e as prisões são os programas sociais mais baratos, a própria expressão da austeridade e, portanto, de pouca utilidade para a reparação redistributiva [80]. "Abolir", na prática, significa muitas vezes substituir a polícia por alguma outra instituição (por exemplo, mediadores profissionais, assistentes sociais, segurança privada) que provavelmente apresentarão patologias semelhantes ou relacionadas [81]. Mas mesmo as visões mais radicais da abolição tendem a tropeçar nos problemas sociais reais que os estados capitalistas delegam à polícia. Aqueles que colocam as vítimas no controle da punição e da "responsabilização" podem reproduzir o viés punitivo do atual regime carcerário [82]. Mas, embora os apelos de reparação e redução de danos sejam inteiramente justificados, deve ficar claro que estão para além do escopo do que qualquer sociedade capitalista poderia admitir (muito menos pagar). Pois seria necessário reconhecer que reparação não é a mesma coisa que indenização (pagar suas dívidas é comprar o que é da ordem das relações humanas) e que o capitalismo faz de todos nós canalhas (embora ninguém seja apenas isso) [83].


Talvez não seja surpreendente que o slogan "desfinanciar a polícia" tenha decolado em um país que possui não apenas uma força policial comparativamente assassina, mas também uma tradição profundamente enraizada de justiça vigilante [84]. O termo "abandono organizado" deveria chamar a nossa atenção para o fato de que quando a política é reduzida à polícia, a ausência da polícia pode ser tão política quanto a sua presença. Podemos encontrar vários exemplos dessa política - a presença dessa ausência - não apenas na fantasia americana do Velho Oeste, mas também em muitas situações de guerra (tanto civis como não civis), e em alguns bairros empobrecidos abandonados pelo Estado, tais como as favelas brasileiras que são, em grande parte, administradas por gangues. Podemos também encontrar exemplos no menos conhecido Jim Crow South, onde a polícia se recusava frequentemente a entrar em bairros urbanos negros, a menos que os brancos afirmassem ter sido vítimas de criminosos negros [85]. Mais recentemente, vimos um lampejo disso nas "zonas livres de policía" que foram declaradas em certas cidades americanas, como a CHAZ de Seattle que, se considerada uma nação independente (como alguns participantes sugeriram), teria tido a maior taxa de homicídios do mundo [86]. No sul de Chicago, onde a taxa de homicídios atingiu, momentaneamente, os níveis brasileiros neste verão, temos uma noção mais clara do que poderia ser a abolição da polícia sem abolição do capitalismo. A "polícia" privada da Universidade de Chicago em Hyde Park, uma ilha de riqueza no meio da pobreza do lado sul, é mais bem financiada do que todas as delegacias locais juntas. A segurança privada é, afinal de contas, um esquema totalmente mais econômico para os ricos: por que desperdiçar os seus dólares de impostos em um departamento de polícia espalhado por toda a cidade, quando tudo o que você realmente precisa é proteger os seus próprios enclaves?


Sob pressão dos manifestantes, em junho de 2020, a Câmara Municipal de Minneapolis votou não apenas para "desfinanciar", mas também para desmantelar o seu departamento de polícia. Embora pareça que eles vão rescindir este compromisso, se seguissem o modelo "abolicionista" de Camden, New Jersey, isso significaria simplesmente renomear o departamento [87]. Visões mais radicais da abolição foram, por vezes, veiculadas entre as milícias que passaram o verão policiando as ruas de Minneapolis em busca de míticos "saqueadores supremacistas brancos" [88]. Relatos divergentes dessa experiência indicam a complexidade da questão da violência, uma vez que ela se apresenta de forma diferente para ativistas, proprietários de lojas, e moradores de bairros de alta criminalidade. Como revela a história das revoluções do século XX, raramente é possível distinguir claramente entre violência política e antissocial no nevoeiro da guerra civil [89]. Mas as tentativas necessariamente caóticas dos revolucionários de defender os territórios conquistados do Estado e do capital não devem ser confundidas com uma vigilância de bairro ou o braço armado de uma "organização comunitária" que protege a propriedade privada em colaboração aberta ou tácita com a polícia local [90].


A partir desses exemplos fica claro que as próprias lutas podem facilmente se tornarem expressões passivas da anarquia e desordem que os Trumps do mundo procuram intensificar [91]. Como disse Agamben, em 2013, em Atenas: "a verdadeira anarquia é a anarquia do poder" [92]. Talvez possamos ver um reconhecimento disso num dos cânticos mais populares das revoltas chilenas: No estamos en Guerra [Não estamos em guerra]. Isto foi dirigido contra o presidente Sebastián Piñera, que num discurso de Outubro de 2019 declarou: "Estamos em guerra contra um inimigo poderoso, que está disposto a usar a violência sem quaisquer limites" [93]. Neste exemplo, um entre vários, os não-movimentos do mundo parecem representar paradoxalmente o partido da ordem, enquanto que a polícia não passa da força armada do partido da anarquia, que apenas intensifica os conflitos que dilaceram nosso mundo.


Evidentemente, seria insensato adotar um princípio abstrato de não-violência. A revolta no Chile custou, infelizmente, a vida de pelo menos 30 pessoas desde outubro de 2019, e cerca de 500 têm lesões oculares. No entanto, é claro que as massas nas ruas não desejam o caos nem anseiam pela violência. Ao renomear o núcleo do não-movimento em Santiago de Praça Baquedano para Praça Dignidad, os manifestantes chilenos declaram que buscam uma vida digna. Talvez se possa discernir um (desgastado) fio condutor que liga o desolador slogan No Estamos en Guerra, de 2019, a Make Love not War [Faça amor, não guerra], de 1968, e até mesmo Peace, Land and Bread [Paz, Terra e Pão], de 1917. Pois a história do comunismo não é apenas a história da luta de classes, mas também a história de uma inimizade contra a inimizade, uma revolta contra o antagonismo que divide as classes subalternas em amigas e inimigas. É, nesse sentido, um anseio de paz.





















5. UMA CIÊNCIA DA ESPÉCIE

Em "The Holding Pattern", em Endnotes 3, descrevemos a preocupação central da Primavera Árabe e do Ocuppy como o problema da composição de diversos fragmentos do proletariado (bem como da classe média descontente) em uma força coerente nas praças. Em retrospectiva, estes foram os primeiros sinais de uma maré crescente de não-movimentos. Mas o "problema da composição" é mais convencionalmente entendido como um problema de uma "política identitária" que parece ter surgido em paralelo ao desaparecimento do movimento operário [95].


Seria um pouco exagerado dizer que a política anti-identitária é o pior produto da política identitária. Muitos críticos de esquerda da política identitária assumiram a existência de uma questão de identidade em torno da qual os restos do movimento dos trabalhadores ainda podem ser reunidos, nomeadamente o "nacionalismo cidadão", que nunca esteve longe de seu âmago [96]. Mas vimos que só a direita pode prosperar de forma viável nesse terreno. Contudo, a "política identitária" não é apenas um espectro que assombra a esquerda socialdemocrata. De fato, tornou-se um termo de opróbrio quase universal. Pois mesmo os mais wokes tendem a empregar o mesmo termo (ou um sinônimo) para criticar aqueles que costuram divisões desnecessárias ou fazem afirmações dúbias para representar subgrupos cada vez mais refinados de oprimidos. É por isso que tomamos a "política identitária" para assinalar mais do que apenas um conjunto de limites que os não-movimentos contemporâneos devem enfrentar. No sentido mais amplo em que empregamos o termo, a política identitária forma o próprio terreno em que a maioria das lutas se desenrolam atualmente e, portanto, no qual tais limites devem ser confrontados.


Os movimentos sociais clássicos - sejam eles de esquerda ou de direita - podem manobrar apenas no terreno de um capitalismo decrépito que os não-movimentos do mundo estão hoje lentamente, e talvez em breve rapidamente, remodelando. Em Apocalipse e Revolução, Giorgio Cesarano descreveu as primeiras aparições da política identitária enquanto "movimentos contrarrevolucionários de libertação" que, apesar de sua imparcialidade, produzem uma "consciência duramente conquistada dos verdadeiros desafios: a libertação da espécie frente à ideologia, a superação necessária de todas as separações, a conquista armada do ponto de vista da totalidade" [97]. Nos termos de Bordiga, poderíamos dizer que paralelamente a suas dimensões conformista e reformista (a preocupação das ladainhas “anti-woke”) tais movimentos também contêm elementos claramente antiformistas, no sentido de que reconfiguram o próprio terreno sobre o qual a contestação está em jogo.


O princípio organizador central dos não-movimentos tem sido sua raiva e repugnância contra a injustiça ou corrupção em geral, e contra a polícia, os políticos ou as elites em particular. Mas chega a um ponto na evolução da luta que tal unidade negativa (unidade através da inimizade) é experimentada como insuficiente. Estamos unificados através de um sentido compartilhado sobre o que vai mal, mas limitados por esta mesma relação com o que vai mal, que só pode ser transcendida através da articulação de uma visão compartilhada de bem. Além disso, nos reunimos sob a bandeira dos enfurecidos e indignados, mas, por trás disso, verdadeiras divisões de interesse e lealdade permanecem ocultas. Divisões que inevitavelmente se fazem sentir em algum momento, muitas vezes de forma violenta. Isto é verdade mesmo quando a luta parece não ser apenas uma luta contra um determinado inimigo, mas a luta de uma fração específica da classe (por exemplo, negros, indígenas, jovens, migrantes) que podem se apresentar como a mais explorada ou a mais enfurecida, a parte que representa o todo.


Hoje o todo como tal não pode ser representado, de tal modo que qualquer forma de política identitária tende a delinear os potenciais e limites de qualquer luta de classe que se estenda além de um determinado local de trabalho ou de um determinado setor da classe. De fato, tais lutas só podem se estender confrontando e confundindo as separações identitárias nas quais a classe trabalhadora está imbricada. A classe está dividida em uma miríade de situações, cada uma delas capaz de representação parcial, mas nenhuma capaz de ser localizada de forma clara em uma filiação política ou um grupo de interesse. Também raramente há uma solução para o problema de coordenação, pela qual tais identidades parciais poderiam ser alinhadas para representar adequadamente a classe como um todo.


Nos EUA, por exemplo, a classe parece ser mediada pela "raça"; a camada mais pobre e mais desfavorecida da sociedade é desproporcionalmente de descendência africana ou indígena, e os marcadores visíveis de tal descendência são frequentemente identificados com essa camada. Naturalmente, o problema com esta forma de aparecimento não é apenas que existe uma classe média negra e indígena, cuja existência está necessariamente em tensão com estes preceitos culturais, mas também que os brancos pobres são muitas vezes erroneamente apresentados como privilegiados a partir desta perspectiva. Dentro da imaginação da América liberal, a classe trabalhadora branca passou a ser vista como incorrigivelmente racista, um "saco de deploráveis" identificado com a base insultada de Trump, enquanto os conservadores persistem em associar o grupo a trabalhos masculinos de subsistência há muito extintos - incluindo policiais - cuja respeitabilidade contrasta com as supostas patologias da "subclasse" negra. Para ambos a classe é assim dividida ao longo de uma linha simultaneamente moral e racial em pobres merecedores e não merecedores, mas qual "raça" está associada a qual lado desta dicotomia maniqueísta é largamente dependente da fidelidade liberal ou conservadora do observador.


Mas enquanto a política racial dos EUA é um exemplo extremo de uma classe mediada pela identidade, isto não é de forma alguma uma exceção americana. As lutas por identidade têm dominado a esfera política em todos os lugares. Não porque as pessoas tenham se tornado mais racistas, sexistas ou homofóbicas. Pelo contrário, tais opiniões geralmente têm declinado mesmo quando se tornaram mais marcantes nos realinhamentos políticos contemporâneos [98]. A tendência geral é que as gerações mais jovens, mais liberais e progressistas enfrentem partes conservadoras, e muitas vezes mais velhas das populações, que têm uma influência desproporcional sobre a política (devido à sua riqueza e propensão a votar). Neste contexto, o nacionalismo e o populismo se tornaram mais pronunciados, mas isto por si só não sinaliza uma mudança de direção, pois todas as políticas mainstream (tanto de esquerda como de direita) são fundamentalmente uma política do Estado, do cidadão, do povo e da nação. O que mudou é que os não-movimentos do mundo, com seu ímpeto antiformista, perturbaram essa política conformista.


Hoje todas as políticas tendem à política identitária não porque as divisões identitárias se tornaram mais claras e enrijecidas, mas sim porque estão sendo cada vez mais questionadas e confusas. Por um lado, se trata de uma simples função da estagnação capitalista contínua, na qual as transformações no processo de produção combinam-se com o agravamento das tendências econômicas para minar as expectativas de estabilidade no emprego, na saúde, na residência e na vida familiar. Por outro lado, as identidades são ainda mais questionadas, até o ponto em que sua própria sobrevivência é posta em questão, sempre que a necessidade de combater estas condições cada vez piores excede os limites reais de cooperação entre fragmentos de classe, e os não-movimentos se espalham pelas ruas, praças e rotundas. Tais espaços são necessariamente confusos, pois sua produção requer uma confusão ativa de identidades díspares. Este processo é tenso, pois envolve uma dança de alto risco por parte das políticas de identidade, sempre em risco de se tornarem meramente performativas, ressentidas e até mesmo violentas.


A última versão do Black Lives Matter pode assim ser vista como uma instância de um padrão geral que tem caracterizado o acúmulo global de não-movimentos. As manifestações, motins e ataques a monumentos que varreram os EUA a partir de 26 de maio de 2020 representam uma tremenda confusão de elementos até então separados e até mesmo opostos. Dentro deste amálgama, as divisões internas proliferam, tanto na linha de identidades pré-existentes, quanto de novas identidades criadas pela luta. Na rebelião de George Floyd podemos apontar a divisão entre o "dia" e a "noite", correspondendo a mais protestos pacíficos da classe média e mais atos proletários de tumultos e saques [99]. Poderíamos também falar das divisões entre "violento" e "não-violento", ou da divisão entre grandes cidades e pequenas cidades, muitas das quais viram suas primeiras manifestações neste momento. Mas o mais marcante, talvez, tenha sido a composição racial destes protestos.


Há poucas dúvidas de que os proletários negros abriram o caminho, tanto no motim inicial em Minneapolis quanto em casos posteriores de saques seletivos em Chicago e na Filadélfia. Na grande maioria dos protestos, e mesmo em muitos tumultos, no entanto, os participantes identificados como "brancos" parecem ter constituído a maioria das pessoas nas ruas [100]. Isto é visível nas pesquisas de opinião que perguntaram se as pessoas protestaram, nas pesquisas de opinião realizadas por sociólogos, na maioria dos relatórios de prisão divulgados pela polícia e até mesmo na análise da atividade de telefones celulares de alguns locais de tumulto [101]. Este fato é frequentemente ignorado tanto pela esquerda como pela direita, presumivelmente porque perturba seus próprios sensos de identidade. E, no entanto, é precisamente a mobilização em massa da "América branca" que marcou este levante como distinto de outros movimentos comparáveis, como o Black Lives Matter em 2015, assim como a onda de motins que varreu as cidades americanas na década de 1960 [102].


É possível ler isto como uma traição em massa à branquitude, o que corresponde a uma contínua redução gradual de atitudes racistas, especialmente entre os jovens americanos. Mas se "antirracismo" era a palavra de ordem universal do movimento, é importante esclarecer que significava coisas diferentes para pessoas diferentes. No efeito dominó do movimento através da cultura, podemos ver um notável aumento do antirracismo performativo, organizado em torno de pretensões individuais de representação racial e de virtude antirracista. Vemos isso não apenas nos contextos habituais de discussão on-line e universitária, mas também na política parlamentar e, até certo ponto, nas ruas, onde às vezes foi facilitado por variedades residuais de nacionalismo que estão mais do que dispostas a policiar as fronteiras raciais. Pode-se facilmente identificar exemplos: Políticos democratas ajoelhados em tecido Kente, cristãos brancos lavando simbolicamente os pés de pastores negros, e o número sempre crescente de "instrutores de diversidade" e "líderes negros" que parecem sempre dizer aos brancos de classe média o que querem ouvir: se coloquem em segundo plano, fiquem na sua, permaneçam não-violentos, retirem-se para fazer exercícios individuais de expiação de culpa e redenção [103].


Entretanto, é importante reconhecer que esta não foi a forma dominante de antirracismo que se instalou depois de 26 de maio. Vimos, ao invés disso, algo muito mais próximo da "política identitária" que descrevemos neste artigo: uma política daqueles que sabem que as divisões segundo as linhas raciais devem ser ativamente contestadas se quiserem continuar sendo uma força contra a polícia (e a política que está por trás dela). Expressões de unidade interracial foram amplamente vistas em faixas e ouvidas em cânticos, mas foram materializadas por uma ação concertada em direção a um objetivo comum, seja cercando uma delegacia, derrubando uma estátua ou defendendo a multidão de ataques policiais. Quando ativistas em tais situações tentam segregar racialmente a multidão (ou verificar a boa-fé racial das pessoas a fim de estabelecer o nível desejado de diversidade) eles frequentemente acabam sendo vistos, e com razão, como auxiliares do trabalho da polícia e dos fascistas ao dividir e enfraquecer o movimento.


De fato, pode-se ver o levante como uma revolta desta forma pragmática de antirracismo contra a anterior, de tipo performativo. Afinal, os desordeiros visavam principalmente as administrações municipais lideradas por prefeitos liberais, muitos dos quais tinham construído suas carreiras com base em performance antirracista fraudulenta. Esses prefeitos, um número notável deles mulheres negras, estavam agora protegendo policiais assassinos, supervisionando a repressão brutal de manifestantes e - no caso de Chicago - levantando as pontes levadiças para fechar o acesso de um proletariado predominantemente negro ao centro rico da cidade. Seu discurso de diversidade e inclusão não dissuadiu os proletários negros de queimar e saquear as cidades que administravam; e sequer foi eficaz em convencer a América branca a ficar em casa e "seguir com a vida". Em vez disso, centenas de milhares (talvez milhões) de brancos se levantaram contra esses prefeitos liberais, negros ou POC e, na maioria dos casos, foram capazes de lutar ao lado de seus vizinhos negros, e sem condescendência alguma [104].


Mas se a rebelião de George Floyd representou assim uma "traição à branquitude", não foi exatamente uma traição do tipo uma vez defendido pela revista Race Traitor. Não foi uma traição estratégica que teve como alvo o poder da classe trabalhadora, mas sim uma traição espontânea de sujeitos neoliberais, alimentados pela raiva e repugnância, que se recusaram a ser o que são e por um breve instante provaram, na confusão da luta, o que poderiam ser. Este é o sentido positivo do que estamos chamando de "confusão". Também pode ser observado quando os islamitas entraram na praça Tahrir, ou quando os partidários da Frente Nacional se juntaram aos bloqueios de rotatórias, ou ainda quando os chilenos de classe média desceram às ruas para lutar contra a polícia ao lado de anarquistas e ultrarradicais. Tal confusão entre linhas políticas, culturais e raciais é mais comum e menos complicada do que a imaginação liberal antirracista é capaz de sonhar (especialmente para os proletários que têm menos a perder, ou quando a ordem meritocrática é abalada).


No entanto, embora esta fusão seja possível, e até mesmo fácil, no calor da luta, ela raramente perdura [105]. E, embora a confusão dos não-movimentos seja muitas vezes baseada em uma traição ao que somos, eles raramente nos permitem deixar nossa antiga vida para trás. Nós nos revoltamos contra uma condição de solidão (uma solidão que só foi exacerbada pelo distanciamento social e pelo lockdown), mas as revoltas raramente satisfazem a fome de comunidade que as trouxeram à existência [106]. Alguns ativistas se encontram, e muitas pessoas se tornam ativistas pela primeira vez, mas não existe uma comunidade de táticas, apenas uma afinidade temporária entre as identidades políticas e táticas: Gilets Jaunes, milícias, antifa, frontliners e "líderes comunitários" - um mundo de tribos, gangues, rackets [107]. Os não-movimentos têm geralmente lutado para produzir assembleias de bairro ou construir vínculos duradouros com as organizações dos locais de trabalho. Mas, em vez disso, acabam por interromper abruptamente a vida cotidiana e impor um ritmo próprio, como os "atos" numerados do Gilet Jaunes, ou as manifestações de massa às sextas-feiras no Chile, quando as pessoas se reúnem em números sem precedentes para expressar sua fúria e depois se dispersam imediatamente, seja para retornar a suas vidas individuais ou a suas várias tribos identitárias.


Esta falta de coerência não é sequer uma vantagem tática ou estratégica. Foi a escala e o alcance das mobilizações, mais do que sua diversidade de táticas, que dominou a polícia - e foi a brutalidade inicial da polícia que muitas vezes foi responsável por sua escala e alcance. Todos os participantes podem ver que, para além de um certo ponto, a confusão da mobilização e sua falta de suporte organizacional são obstáculos para a extensão da luta. Contudo, ao confundir a identidade de seus participantes, os não-movimentos representam um crisol no qual podemos ver a formação de um novo tipo de humano, menos apavorado ou domesticado do que Agamben e outros temiam. Argumentamos que os não-movimentos estimulam e radicalizam mudanças na reprodução da existência cotidiana e, logo, da vida humana. Mudanças que tornam possíveis as explosões nas ruas que temos visto na última década. Nossa aposta é, portanto, que esta mudança antropológica continuará após as lutas nas ruas serem esmagadas pela repressão, ou desaparecerá por falta de organização ou energia, uma vez que os não-movimentos são expressões da lógica antiformista de nossa era.


Hoje, a confusão de identidades é a condição de possibilidade de revolta, mas também um limite que precisa ser superado. A curto e médio prazo, esperamos que seja cada vez mais problematizada, tanto no sentido prático como teórico. Este limite pode indicar a necessidade de um novo tipo de organização, como disse recentemente um amigo (referindo-se a um grupo underground de hip hop): uma Organized Konfusion [Confusão Organizada] [108]. Pode-se até chamar isso de "partido comunista", embora, como alguns camaradas argumentaram recentemente, teria que parecer muito diferente dos partidos de antigamente [109]. Precisaria, de maneira específica, apelar para um proletariado não mais interpelado pelos restos do movimento operário, e que é forçado a unir-se junto com setores marginais da população e estratos médios rebaixados em revoltas contra o empobrecimento generalizado. Assim, um partido tão invisível teria que apelar também para aqueles grupos rebeldes, sejam eles lumpen ou pertencentes à classe média desprivilegiada, que saíram às ruas em números sem precedentes, em ondas que expressam a volatilidade de nosso período. Pode até mesmo precisar apelar para aqueles segmentos da classe que estão atualmente mobilizados contra os não-movimentos, a fim de quebrar a inimizade que fortalece a polícia e empurra as lutas em direção à lógica da guerra. No entanto, dado que os não-movimentos são, como argumentamos repetidamente neste texto, os signos subjetivos da estagnação do capitalismo, talvez sua tarefa mais importante seja tomar consciência desta condição latente e orientar-se para o fim potencial de um sistema que já está em declínio crônico. Os não-movimentos sinalizam que o proletariado não tem mais nenhuma tarefa romântica [110]. Ele não pode mobilizar um povo nem lutar pela hegemonia. Pelo contrário, ele só pode superar nossa ordem cambaleante - que de certa forma já está desfazendo os fundamentos da sociedade de classes - ao continuar resistindo a todas as tentativas de rejuvenescer o mundo da política.


Os primeiros passos trôpegos para fora de nossa era anárquica residem nas confusões de identidade que os não-movimentos testemunham em sua fome por uma comunidade humana. Esta fome até agora não foi saciada por vitórias, nem se deixou abater pela repressão, e é por isso que pensamos que nosso período continuará marcado pela acumulação de revolucionários sem revolução. Os famintos se vestem de amarelo e usam a linguagem fragmentada da identidade em vez da classe, porque toda a estrutura da esquerda entrou em colapso. Se um antirracismo pragmático superou o antirracismo performativo durante a revolta de George Floyd, isto se deve ao fato de que a pragmática da revolução já não retira sua poesia do mundo morto das ideologias. A revolução do século XXI deve deixar os mortos enterrarem seus mortos para alcançar seu próprio conteúdo. Assim, a tarefa de uma ciência contemporânea da espécie é ler novamente as runas de nosso tempo, a fim de compreender como os próprios não-movimentos revelam a tendência antiformista de nosso período, e como, em sua confusão, podemos identificar o eclipse das formas sociais que chamamos de capital, estado e classe. Como o comunismo é o verdadeiro não-movimento que suprime estas formas sociais, dizemos às massas que se confrontam com a nossa ordem cambaleante - avanti barbari! - avante bárbaros.