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A VIOLÊNCIA ERÓTICA DO CORPO SEM ÓRGÃOS
Camila Geoffroy

Gilles Deleuze e Félix Guattari, em seu trabalho colaborativo nos livros O anti-Édipo (1972) e Mil Platôs (1980), constroem o conceito do corpo sem órgãos, sendo este uma noção essencial para se pensar a esquizoanálise. Deleuze e Guattari, em ressonância com o conceito de Trieb da psicanálise freudiana, veem o corpo como um potencial disruptivo, já que este seria um núcleo de atravessamento energético anterior à organização social, o qual nos coloca em um fluxo de mudança e experimentação constantes, transbordando e rompendo as definições firmes do eu. É essa dimensão energética de mudança insubmissa que é descrita através do corpo sem órgãos, onde


Em contraste com a neurose obsessiva do pensamento ético, com sua tentativa fútil de consolidar um princípio transcendental de justiça a partir desse triste fantoche dos códigos de negociação contratual trabalhista conhecido como 'o agente', a esquizoanálise compartilha da deliciosa irresponsabilidade de tudo anárquico, inundante e rudemente impessoal. (Land, 2011, pp.264-265)


Mas o que seria um corpo sem órgãos? Talvez a melhor forma de descrevê-lo não seria um corpo sem órgãos, mas um corpo sem organização. O CsO é um campo aberto de produção e fluxo de intensidades. O desejo nele não se representa, mas se presentifica. Ele é povoado por forças, ele é um plano de imanência, matéria intensa, que só é vivenciado na experimentação, não sendo esgotado em significações.


O CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não são os órgãos. O inimigo é o organismo.(...) O organismo não é o corpo, o CsO, mas um estrato sobre o CsO, quer dizer um fenômeno de acumulação, de coagulação, de sedimentação que lhe impõe formas, funções, ligações, organizações dominantes e hierarquizadas, transcendências organizadas para extrair um trabalho útil. (Deleuze & Guattari, 1980, p.196)


O CsO estaria anterior e para além da estratificação que dá significação ao sujeito, como uma materialidade aberta às experimentações múltiplas capazes de perpassar e desarticular os estratos, cujos bloqueios mais diretos são “o organismo, a significância e a subjetivação” (Deleuze & Guattari, 1980, p.197). A plasticidade múltipla, promíscua e nômade dos fluxos energéticos do corpo criaria sempre novas articulações, passagens, conexões, rearranjos de intensidades que desarticulam o organismo. Lá os órgãos demandam a perda de suas funções regulares criando uma zona de intensidades que funda e afunda todo organismo, o qual falha em sua constância, localização, função, nos levando a  “uma experimentação inevitável”, fazendo com que o desejo se presentifique como fluxo insubmisso a qualquer identidade. Essa repulsão dos órgãos a qualquer organização específica, aparece como um estranho movimento de dissidência, que não é dado pelo sujeito, mas pela carne.  “O corpo asfixiado pela subjetivação” é corroído pelo CsO, que o penetra e desarticula, colapsando o campo social estratificado em múltiplos fluxos.


Ao ler Deleuze e Guattari, as palavras de Georges Bataille sobre o erotismo reverberavam em mim, e a pergunta que seguia me atravessando era: seria o corpo sem órgãos um corpo de violência sagrada? Um corpo erótico?


Nas orelhas da edição brasileira do livro Mil Platôs vol.3 (1996), Jean-Clet Martin sussurrou “Fazer conceitos é questão de devir (...) um encontro entre devires (...) fluxos que, ao se encontrarem, modificam seu movimento e sua estrutura (...) chocam e se penetram.” Essas palavras em defesa de uma intelectualidade promíscua me instigaram, convidando-me a me colocar em uma escrita desejante entre minhas experiências, o erotismo de Georges Bataille e o corpo sem órgãos de Deleuze e Guattari. Entretanto uma desterritorialização precisa ser admitida aqui. Existe um desencaixe entre o erotismo de Bataille e o texto Como criar para si um Corpo sem Órgãos, de D&G, em Mil Platôs. Lá, Deleuze e Guattari nos pedem “injeções de prudência” para a vivência do corpo sem órgãos, o que me parece incoerente, já que o texto trás o CsO visto como uma “realidade intensiva” de “intensidade pura”. Ademais, duas entidades poéticas, as quais não parecem ter passado pelas tais injeções de prudência, são convocadas a todo momento: Antonin Artaud e referências a ele brotam (inclusive no próprio título “corpo sem órgãos”, termo cunhado por Artaud) e citações do avassalador livro autobiográfico Naked Lunch, de William Burrough, são salpicadas durante o texto. Mas mesmo trazendo nomes tão disruptivo, D&G insistem na torção moral do texto, nos alertando contra a liberação precipitada do corpo de forma incessante, onde a desterritorização do corpo é


tratada como suspeita, a dissidência se encontra no papel conservador de regenerar uma faculdade de censura moral, ocupando um espaço de acusação.(...) o pacto de mau gosto entre o pré-consciente e o superego (...) seria reintegrado no coração de um - agora totalmente espúrio - neonomadismo esquizofrênico.(…) [que] ameaça mutilar e domesticar toda a massiva conquista da obra conjunta de Deleuze e Guattari.(Land, 2011, p.280)


Em determinado momento de Mil Platôs, a vacina de prudência de Deleuze e Guattari se torna uma prudência em nível de bioterrorismo. Sobre a liberação do corpo, os autores nos ameaçam:


Liberem-no com um gesto demasiado violento, façam saltar os estratos sem prudência e vocês mesmos se matarão, encravados num buraco negro, ou mesmo envolvidos numa catástrofe, ao invés de traçar o plano. O pior não é permanecer estratificado — organizado, significado, sujeitado — mas precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre nós, mais pesados do que nunca. (Deleuze & Guattari, 1980, p. 199)


Sendo assim, como estou envolvida com Bataille, será necessário arrancar de Deleuze e Guattari o medo da parcela “da queda suicida demente” e os “perigos de uma desestratificação imprudente” que contaminam Mil Platôs, para retornarmos a apreciação da potência e contingência do O anti-Édipo. Em realidade, o que é perceptível é que, entre os escritos do O anti-Édipo e Mil Platôs, a conceitualização do corpo sem órgãos parece ter sofrido uma contenção dos fluxos. No Prefácio da edição Italiana de Mil Platôs, Deleuze e Guattari escrevem: "Mil platôs (1980) se seguiu ao Anti-Édipo (1972). Mas eles tiveram objetivamente destinos muito diferentes. Sem dúvida por causa do contexto:  a época agitada de um, que pertence ainda a 68, e a calmaria já absoluta, a indiferença em que o outro surgiu." E terminam o prefácio com as seguintes palavras: "O pássaro de Minerva (para falar como Hegel) tem seus gritos e seus cantos; os princípios em filosofia são gritos, em torno dos quais os conceitos desenvolvem verdadeiros cantos."(Deleuze & Guattari, pp.VI-VII, 1995) Entretanto Bataille, assim como os surrealistas de sua época, não pareciam estar interessados no canto da filosofia, mas sim nos berros e gemidos que não se rendem à conformação de um cântico. O interesse de Bataille estaria em fazer o caminho contrário, encontrar o grito gutural e animalesco naquele que se submete a melodia da civilização. Lembremos que em O anti-Édipo, D&G escrevem: “O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inengendrado, o inconsumível (...) sem forma e sem figura. Instinto de morte é o seu nome (...) Porque o desejo deseja também isso, a morte, pois o corpo pleno da morte é seu motor imóvel” (Deleuze & Guattari, 2010, p. 20). Aqui o CsO aparece como a exuberância imponderada da vida impessoal que tem como seu motor a morte, sendo ela aquilo que engendra o processo contínuo de modificação do ser. Nick Land, em seu texto Making it with Death: Remarks on Thanatos and Desiring Production (2011), faz uma crítica ao giro moral de Deleuze e Guattari, argumentando que a proposição revolucionária encontrada no O anti-Édipo, vem de um movimento de dissolução subjetiva impulsionada pela força impessoal que transborda o ser, e que “Qualquer política que tenha que se policiar perdeu todo o ímpeto esquizoanalítico e se reverteu à triste reforma baseada em grupos de interesse.” (Land, 2011, p.280). O trabalho de Land é animado pela dissolução de todos os idealismos do que nomeamos de humano. Inspirado por Nietzsche, Freud, Bataille e o livro O anti-Édipo, Land aceita exuberantemente o excesso do humano manifestado em uma economia de dispêndio e excesso libidinal. Sua cosmologia ateológica se alinha com a concepção atual do universo como um aparente oceano de energia e matéria escura em movimento, impulsionando o ápice do niilismo ativo para além dos limites do humano. Seu livro A Thirst for Annihilation: Georges Bataille and Virulent Nihilism (1992) é descrito como o primeiro livro de um filósofo inglês a dialogar com os escritos de Bataille, onde o caos, violência, dissolução e a morte são celebrados como parte que agitam o ser e o cosmos. Assim, para Land, as proposições temerárias em Mil Platôs acabam por ameaçar a revolução com um desdobramento da neurotização familiar. Sobre o medo que D&G tentam nos injetar, Land escreve:


No final, isto não é nada menos do que a cidadela contemporânea de Édipo: se você não obedecer ao papai, você vai virar um nazista. (…) A moralidade se tornou o sussurro complacente de um padre triunfante: é melhor você manter pressionada a tampa do desejo, porque o que você realmente quer é genocídio. Uma vez que se aceita isto, não há limite para a ressurreição dos neoarcaísmos prescritivos que voltam rastejando como um baluarte contra o inconsciente de coturno: humanismo liberal, paganismo aguado e mesmo as relíquias fedorentas do moralismo Judaico-Cristão. Qualquer coisa é bem-vinda, contanto que odeie o desejo e reforce o policial na cabeça de cada um.(Land, 2011, p.280)


Rejeitando o “humanismo liberal” e “paganismo aguado”, encontramos Georges Bataille, retorcendo as relíquias do moralismo Judaico-Cristão, para encontrar uma outra forma de sagrado, que se manifesta através do heterogêneo social, capaz de engendrar violência e dissolução, em um impulso cego de transgressão da realidade dada. Bataille retoma a palavra sagrado em sua origem,   do latim antigo sacer, que significa tanto algo sagrado, santo, dedicado (a uma divindade), consagrado, santificado, divino, celestial, devotado (a uma divindade para sacrifício), quanto algo destinado à destruição, perdido, amaldiçoado execrável, detestável, horrível, infame; criminoso, ímpio, perverso, abominável, amaldiçoado.[1] Assim encontramos o “Duplo sentido de sacer, sujo e santo” (Bataille, 1985, p.102). No espaço do sagrado, estamos em uma desterritorização divina, mas também amaldiçoada, execrável. O sagrado seria aquilo que estaria sempre para além de um horizonte homogêneo social, estando fora da vida ordinária da organização do trabalho, sendo justamente aquilo que colapsa qualquer horizonte funcional e utilitário do humano, fazendo-nos deparar com nossos impulsos que nos parecem inumanos, os quais se mostram tanto divinos quanto animalescos. Bataille defende que nossa forma de economia capitalista “destruiu o mundo sagrado, o mundo da consumação improdutiva e entregou a terra aos homens da produção, aos burgueses (...) cuja realização é a humanidade econômica.”(Bataille, 2016, p.122) A moralidade da autoconservação e do investimento contínuo em nosso narcisismo moldado pelo ideal do homem de interesses, forjado pelo capitalismo, o qual transforma a si mesmo em um modo empresa, nada mais é para Bataille do que uma tentativa moralizadora de autolegislação que nos afasta da força disruptiva do sagrado.


Michel Foucault, em o Nascimento da Biopolítica (1978-1979), examina a moral do neoliberalismo, percebendo como o sistema nos transformou em empreendedores e consumidores em todas as esferas da vida social e íntima. Como tal, ele argumenta que nossa economia trabalha como uma racionalidade coletiva baseada em uma ideologia de condutas e teorias econômicas, que penetra e se entranha em nossas práticas subjetivas, a qual permeia nossos sistemas educacionais, saturando a cultura de massa e dominando diferentes discursos, inclusive a pretensa neutralidade da ciência, formando modos de percepção e ação que estruturam nossas esferas íntimas. O culto a valorização do capital molda nossa maneira de perceber o mundo, nós mesmos e nossas relações, como um sistema econômico e político, que é antes de tudo um sistema moral, o qual está em toda parte e, assim, em lugar nenhum. De forma invisível e onipresente, o neoliberalismo aparece como uma espécie de culto latente, possuindo uma doutrina e rituais criados e disseminados por uma subjetividade alicerçada no sujeito de interesse, que é o homo oeconomicus. “O Homo oeconomicus é um empresário, um empresário de si mesmo. Isso é verdade na medida em que, na prática, a aposta em todas as análises neoliberais (…) [O homem] é para si seu próprio capital, é para si seu próprio produtor, é para si a fonte de seus ganhos”. (Foucault, 2008, p.226) Na época do capital humano, Foucault percebe a emergência de uma subjetividade que se manifesta construindo ontologias utilitárias e individualistas. A autoflexão neoliberal coopta todos os aspectos da vida em uma paisagem constrangida à lógica de acumulação e valorização incessante do capital, transformando a existência e o ser em um produto utilitário e funcional, nos ditando padrões de saúde e socialização que atendem as demandas do mercado. Consequentemente, quando o humano se depara com aquilo que é disruptivo e que corrompe a lógica utilitarista neoliberal, o sujeito se vê horrorizado pela violência e insubmissão inerente a vida. Entretanto, o horror não consegue apagar a nossa fascinação pelo disruptivo.


Bataille em seus escritos escancara a parcela do humano que não se esgota nos parâmetros de saúde e moralidade do neoliberalismo, apontando que é a angústia e o êxtase que revelam a persistente desarmonia existente entre regulação social e o ser, expondo a parcela insubmissa e refratária que anima constantemente os corpos. Para o filósofo, é preciso pensar o ser e a política para além do hommo oeconomiccus, pois o discurso moral de autopreservação e autolegislação, o qual nos forma, parece querer apagar a violência que está no âmago da existência. Assim, Bataille passa a pensar o humano para além das regras sociais de uma economia restrita do mercado e desenvolve seu pensamento ao redor de uma economia geral. Em seu livro A Parte Maldita, ele nos apresenta reflexões sobre a economia geral para compreender a economia libidinal psíquica do humano. Refletindo sobre a circulação de energia no globo terrestre para se aproximar da circulação de energia nos corpos, ele observa que o excesso é o cerne do ser que desestrutura as identidades sociais. Para Bataille somos crias da energia solar, a qual tudo atravessa, doando em excesso, tornando-nos irredutíveis aos processos de simples reprodução e conservação. Ele observa a humanidade como um fenômeno energético cósmico, trazendo para o centro do seu pensamento filosófico o princípio de que na vida “sempre há excesso, porque a irradiação solar, que está na origem de todo crescimento, é dada sem contrapartida: O sol dá sem nunca receber (...) uma energia que só pode ser desperdiçada na exuberância e na ebulição.”(Bataille, 2016, p.12) A parte maldita é algo inerente e imanente a matéria, fruto do excesso de energia que circula no globo, o que impulsiona a criação de novas formas de existência. Somos crias cósmicas, em uma dinâmica de dispêndio de energia solar, banhados por luzes de estrelas que colapsam, envoltos em uma galáxia orbitando ao redor de um buraco negro. Somos crias de uma terra que manifesta seu excesso interior, a qual movimenta suas placas tectônicas e derrama seus vulcões, consumindo e renovando sua superfície. Somos filhos das tempestades, do oceano misterioso e impetuoso, das enchentes que tudo engolem, deixando a terra ainda mais fértil pós catástrofe. Nós não somos seres isolados e independentes das interações cósmicas e terrestres, somos crias do excesso avassalador de energia, sendo nosso corpo e psique manifestações dessa energia universal. Nós somos filhos do Sol, crias de um centro de energia pulsante que tudo atravessa, que tudo agita e transforma, em uma dinâmica inquieta que tudo alimenta em excesso. O Sol não conhece moderação, contenção ou economia, ele é puro excesso deslumbrante. Observe o centro da vida do nosso planeta e deixe que seu esplendor ilumine sua visão, queime suas retinas, revelando que o que funda o humano não se reduz a humanismo.


A construção limitadora do sujeito em uma lógica de saúde capitalista, que nos exige constante afirmação de autodomínio e autolegislação, sustentando o princípio empreendedorista do mundo do trabalho, é escancarada por Bataille, onde ele introduz uma crítica à economia libidinal do capitalismo, defendendo que a racionalidade mercantil não abarcaria o gozo dos excessos do ser, já que o mercado tudo reduz a uma lógica restrita de produção. Em A Parte Maldita, Bataille nos diz:


A atividade humana não é inteiramente redutível a processos de reprodução e de conservação, e o consumo deve ser dividido em duas partes distintas. A primeira, redutível, é representada pelo uso do mínimo necessário para os indivíduos de uma dada sociedade, à conservação da vida e ao prosseguimento da atividade produtiva: trata-se, portanto, simplesmente da condição fundamental desta última. A segunda parte é representada pelos dispêndios ditos improdutivos: o luxo, os enterros, as guerras, os cultos, as construções de monumentos santuários, os jogos, os espetáculos, as artes, a atividade sexual perversa (isto é, desviada da finalidade genital) representam atividades que, pelo menos nas condições primitivas, têm em si mesmas seu fim. (Bataille, 2016, p.21)


Uma saída do mundo objetivado do capitalismo é, segundo Bataille, o erotismo. A definição que Bataille propõe de erotismo é, por sua vez, bastante singular. É claro que ele vê o erotismo nos fenômenos que despertam o desejo sexual em nós, mas, muito mais significativamente, ele relaciona ao erotismo tudo o que promove a quebra do "eu" em favor do ser. O erótico é aquilo que nos afasta do nosso eu criado no tempo determinado pela lógica da produção, aquisição e acumulação. Para ele, a manifestação erótica é um tensionamento corporal e psíquico para além da repetição organizacional, onde os atores sociais são levados a escapar às normas da esfera do ordinário. Em outras palavras, para Bataille, o erótico é o que interrompe o tempo do trabalho, é o que nos afasta do mundo estruturado pela racionalidade instrumental. Eros traria o momento onde os excessos e dispêndios do ser se manifestam irremediavelmente.


Desta forma, para o filósofo, o tempo do trabalho e o tempo do gozo disruptivo não seriam o mesmo. O mundo profano seria o mundo ordinário da organização do trabalho, tendo como paisagem uma ideia utilitária de vida, onde toda ação é realizada tendo como objetivo uma expectativa futura. Esse mundo de cálculos utilitários seria homogêneo, performando funções estabilizadoras através de instituições como o Estado, a moral, a família, o indivíduo, e todas as convenções regulatórias. O sagrado seria o que foi expulso do mundo funcional social, seria o heterogêneo em todo seu esplendor e catástrofe, marcado pelo que excede a razão social. O sagrado estaria nas formas de experiência que não podem ser julgadas dentro dos parâmetros únicos da utilidade, estando sempre para além da visão instrumentalista de vida, nos colocando em uma dinâmica de excesso e risco. Pensar qualquer revolução social excluindo a parcela violenta e insubmissa dos seres seria um erro pueril, uma vontade covarde de tentar reduzir o humano a algo “bom”. Afinal, seríamos “bons” para quem? Para qual sistema? Bons em qual função? Bataille escreve, “O proletariado não pode realmente limitar-se a si mesmo: ele é, de fato, um ponto de concentração para cada elemento social dissociado que foi banido para a heterogeneidade”(Bataille, 1985, p.157). O ser não se esgota em sua nomeação e predicados, o ser não se esgota em um ideal homogêneo. Os oprimidos carregam a manifestação de tudo aquilo que a moral econômica sufocou. A violência, a busca pelo impossível, o frenesi, a morte, são aqui a revolução, e não suas consequências.


O sonho de uma sociedade equilibrada e reconciliada, sem excessos, sem violência, sem destruição, aparece no horizonte batailliano como uma mera fantasia concebida pela moral de um temeroso garotinho cristão. Porque o que os escritos de Bataille defendem é a conscientização da manifestação de uma outra forma de economia, onde o humano é visto em uma paisagem mais ampla, uma paisagem universal. Em seus escritos, Bataille transparece a insatisfação com a filosofia que se confunde com a moral, onde, para ele, a moralidade é uma tentativa de falsificação do mundo, em que perdemos a capacidade de colocar a força do real como algo constituinte. Freud, em “Por que a guerra?” (1932), sua carta à Einstein, deixa claro que é da ação intrincada da pulsão de vida e da pulsão de morte que a existência floresce, de modo que Eros e Tânatos caminham juntos. A pretensão de Mil Platôs em submeter a pulsão de morte a padrões de saúde e autocontrole racional, parece querer esquecer as observações de Freud após o Além do Princípio do Prazer (1920), em que “A pulsão de morte é o belo relato de Freud de como a criatividade ocorre sem o menor esforço, como a vida é impulsionada em suas extravagâncias pelas mais cegas e mais simples das tendências, como o desejo não é nem um pouco mais problemático do que a busca de um rio pelo mar.”(Land, 2011, p.283)


Até mesmo o psicanalista Jacques Lacan, em seu retorno estruturalista a Freud, também agrega a sua teoria a percepção dessa lacuna no humano, onde dor e prazer se encontram em um tensionamento psíquico que excede a autoconservação do sujeito. Em Lacan, todo sujeito vivenciaria o constante e estranho desejo de ultrapassar o princípio do prazer em direção a um excesso irrepresentável pela identidade, esse impulso de quebra narcísica ele nomeia de gozo, “o caminho para a morte”.( Lacan, 1991. p.17), onde ele chega a afirmar “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”. (Lacan, 1998. p.863) Entretanto o nosso sistema econômico e político sufoca o gozo que não se adéqua à estrutura, arrancando-lhe a potência destrutiva e transformadora. “Assim como o trabalho não é novo na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova.(...) é ela que constitui o senhor, o qual pretende fazer dela o princípio de seu poder  (…) uma função da renúncia ao gozo sob o efeito do discurso.”(Lacan. 2008, p.19) O gozo percebido como um agente disruptivo seria, na realidade psíquica do sujeito da sociedade do trabalho, fundamentalmente insalubre, perigoso, transgressor, não obstante, transformador. Entretanto, o gozo seria a deriva inevitável das pulsões (Lacan, 1985, p.153), onde sua contenção simbólica, é assim, paradoxalmente, impossível.


Feita a crítica a torção moralizante de autolegislação do corpo em Mil Platôs, podemos agora nos permitir flertar com a morte, me deixando voltar a pergunta que agitou esta escrita: seria o corpo sem órgãos o corpo possuído pelo erotismo sagrado? Mas por que associar o heterogêneo, o sagrado, ao erotismo? Em seu livro O erotismo(1957), encontramos a resposta de Bataille: a experiência pragmática do sagrado é o erotismo.


Hartmann (2016) argumenta que o pensamento de Bataille, é excitado pelo processo de dissolução radical do eu, um desejo que nos impele às experiências limítrofes, embebido por uma morte que pode ser transitoriamente penetrada no ápice do erotismo, marcado pela transgressão do corpo imaginário, simbólico e real dos amantes. Na perda erótica, o estranho não-eu intrínseco ao amante, funda uma zona de comunicação com a opacidade do amado. Aqui o erotismo não está obrigatoriamente ligado apenas a uma sexualidade de encontro genital, manifestando-se nos textos do autor na forma do êxtase corporal em uma paisagem ampliada e mística, onde o corpo entra em perturbações e excitações que transcendem a subjetividade. Bataille defende exaustivamente em seus escritos a materialidade do erotismo como aquilo que rasga o véu da racionalidade e colapsa nossos cálculos de prazer e desprazer, agindo em nós como um momento de queda das representações, revelando o que não é integrado no simbólico, mas que constitui o ser.

Bataille nos diz que “o princípio de esquecer a sensualidade em relação ao estado místico é contestável.” (Bataille, 2020b, p.161), pois “a relação do místico e do sexual se deve a esse caráter abissal, a essa obscuridade angustiante” (Bataille, 2020b, p.145), onde “nela o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” (Bataille, 2020b. p.13). Assim sendo, a expressão erotismo sagrado “é, aliás, ambígua, na medida em que todo erotismo é sagrado.” (Bataille, 1987, p.13). Bataille aproxima o sexo a uma ritualística sacrifical, posto que “o que o ato de amor e o sacrifício revelam é a carne”(Bataille, 1987, p.61), no qual “o erotismo sagrado, que diz respeito à fusão dos seres com um além da realidade imediata, retoma o sentido do sacrifício.” Da mesma forma, os amantes estariam “um e outro, durante a consumação, se perdendo na continuidade estabelecida por um ato inicial de destruição.” (Bataille, 1987, p.13)


Antes de adentrarmos no erotismo do corpo sem órgãos, façamos uma pequena preliminar sobre a dimensão revolucionária que reside no potencial de conturbação social que emana do corpo, deste modo, ficaremos mais à vontade para fazer a violência de nossos fluxos se encontrarem. Afinal, é impossível tentar se afastar do perigo para Bataille, pois, para ele, o humano é cria de um cosmos violento e glorioso, em constante destruição e criação, onde nossos corpos e psiques são tão complexos quando a existência universal que é “ilimitada e, portanto, inquieta: ela não fecha a vida em si mesma, mas a abre e a lança de volta na inquietação do infinito, criando e destruindo seres finitos particulares”. (Bataille,1985, p.201) O poder disruptivo e transformador do erotismo nos vínculos sociais é sensível. Me permitam retornar um pouco no tempo, buscando uma longa, mas intensa fala, de um filósofo que escreveu sobre o amor, o qual influenciou tanto Lacan quanto Bataille, mesmo que indiretamente, através de seu eco nos escritos de Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche. Em, Metafísica do Amor, Arthur Schopenhauer escreve:


Habituamo-nos a ver os poetas fazerem da sua principal ocupação, a de descrever o amor. (...) Porque é impossível conceber [o amor] como sendo um sentimento estranho ou contrário à natureza humana, ou como sendo uma pura fantasia aérea, aquilo que o gênio dos poetas não se cansa de pensar, nem a humanidade se fatiga de acolher, (…) pode, sob o império de certas circunstâncias, crescer e ultrapassar pela sua violência todas as outras paixões, afastar todas as considerações, vencer todos os obstáculos com uma força e uma perseverança incríveis, a ponto de se arriscar sem hesitação a vida para satisfazer o próprio desejo, e mesmo até sacrificá-la(...)As pessoas que leem os jornais podem atestar a exatidão do que afirmo. Mas é maior o número daqueles a quem esta paixão conduz ao hospital dos loucos. Finalmente, observam-se todos os anos diversos casos, casos de suicídio duplo, quando dois amantes desesperados caem vítimas das circunstâncias exteriores que os separam.(...)Não é permitido, portanto, duvidar da realidade do amor, nem da sua importância. Em vez de se  admirarem ao ver que um filósofo procura também tratar desta questão, tema eterno para todos os poetas, mais surpresos deveriam estar ao perceber que tal questão, que desempenha um papel tão essencial na vida humana, tem sido até o presente desprezada pelos filósofos, e está aqui, a nossa frente, ainda como matéria nova(…)Todo enamorar-se, por mais etéreo que possa parecer, enraíza-se unicamente no impulso sexual(...)Quando, então, sem esquecermos disso, consideramos o papel importante que o impulso sexual desempenha, em todas as suas gradações e nuanças, não só nas peças de teatro e romances, mas também no mundo real, onde ele, ao lado do amor à vida, mostra-se como a mais forte e ativa das molas propulsoras(...)É ele a meta final de quase todo esforço humano, exercendo influência prejudicial nos mais importantes casos, interrompendo a toda hora as mais sérias ocupações, às vezes pondo em confusão por momentos até mesmo as maiores cabeças, não se intimidando de se intrometer e atrapalhar, com suas bagatelas, as negociações dos homens de Estado e as investigações dos sábios, conseguindo inserir seus bilhetes de amor e suas madeixas até nas pastas ministeriais e nos manuscritos filosóficos, urdindo diariamente as piores e mais intrincadas disputas, rompendo as relações mais valiosas, desfazendo os laços mais estreitos, às vezes tomando por vítima a vida, ou a saúde, às vezes a riqueza, a posição e a felicidade, sim, fazendo mesmo do outrora honesto um inescrupuloso, do até então leal um traidor, entrando em cena, assim, em toda parte como um demônio hostil, que a tudo se empenha por subverter, confundir e pôr abaixo; - quando consideramos tudo isso, somos levados a exclamar: para que tanto barulho?! Para que o ímpeto, o furor, a angústia e a aflição? (Schopenhauer, 2000[1844], pp.7-8)


As observações de Schopenhauer, nos levam a uma pergunta de Lacan: afinal, até quando “Caberá a nós camuflar Eros, o Deus negro, de carneirinho do Bom Pastor?” (Lacan, 1998. p.613)  Ao longo dos tempos o amor continua sendo um acontecimento intrigante, avassalador e complexo. Em Schopenhauer, o amor, o qual não aparece apartado do sexo e da paixão, afeta a todos, dissolvendo nossas ilusões de autodomínio e relações de poder. Ali, todos se perdem diante dessa vontade erótica, a qual se manifesta como um desespero democratizado. No amor sexual experimentaríamos a expressão da medula da existência, a Vontade em sua potência ostensiva. O erotismo em Bataille escuta o eco da Vontade de Schopenhauer, onde ela “estaria acima de todas as formas representativas, (…) sem conhecimentos. Por isso ela só pode ser essencialmente um impulso cego, sem repouso (…) sempre incontentável, faminta e devorando a si mesma” (Schopenhauer, 2000 [1844], p.30) Para Bataille, o tempo erótico, em que os seres são “tomados pela febre sexual são momentos de crise do seu isolamento. Nesses momentos, o temor da morte e da dor é superado”, ali o amante experimenta um jogo avassalador que toca “o sentimento de si, o sentimento de seus limites. Se esses limites mudam, ele é atingido nesse sentimento fundamental: esse golpe é a crise do ser que tem o sentimento de si.”(Bataille, 2020b, pp.122-123) Lá,


uma mudança crítica se opera no tempo da atividade sexual. Nesse momento, o outro não aparece ainda positivamente, mas negativamente, ligado à perturbadora violência da pletora. Cada ser contribui para a negação que o outro faz de si mesmo, mas essa negação não culmina de modo algum no reconhecimento do parceiro. Trata-se de um movimento interno que o obriga a estar fora de si. (…) sob o império da violência, associados pelos reflexos da conexão sexual, partilham um estado de crise em que um e outro estão fora de si. Os dois seres estão ao mesmo tempo abertos (Bataille, 2020b, pp.127-128, grifos do autor)


Não é porque algo é nomeado “amor” que ele perde o seu desejo de destruição: o amor é aquilo que mata o um, porque pede pelo menos dois. O amor é a impossibilidade da unidade, de alguém ser idêntico consigo mesmo. É de uma deposição do eu que se trata. Quando nos interessamos verdadeiramente pelo outro, em vez de ver nele um espelho, acontece que, felizmente, nós morremos um pouco. No erotismo “tudo se afoga” em uma “sede de comunicações mais perturbadoras”, já que entre “corações sem fôlego ou de impudente lascívia (...) chego ao extremo do possível (…) em que terei que queimar tudo – até o esgotamento do humano”(Bataille, 2020a, p.160).  O que proponho aqui é que o que vislumbramos na intensidade do erotismo é a presença do CsO, pois é sobre ele “que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos.” (Deleuze & Guattari, 1980, p.186)


As elaborações de Deleuze e Guattari sobre o CsO, como “uma experimentação inevitável”, efeito de forças imanentes em um desdobramento contínuo e dinâmico, nos aponta um plano de imanência pré-linguístico, revelando a importância da experimentação corporal na construção de novas formas de existir, nos levando a experimentações tateantes, cuja criação escoaria em vivências intensificadas e irrazoáveis. O CsO “é, conexão de desejos, conjunção de fluxos, continuum de intensidades” onde “não existe meu corpo sem órgãos, mas eu sobre ele, o que resta de mim, inalterável e cambiante de forma, transpondo limiares.” (Deleuze & Guattari, 1980, p.200). De modo parecido, Bataille nos diz que os elementos que nos compõe “São contágios de energia, de movimento, de calor (...) como uma corrente ou como uma espécie de fluxo elétrico. Assim, onde querias capturar tua substância intemporal não encontras mais do que um deslizamento, do que os jogos mal coordenados de teus elementos perecíveis.” (Bataille, 2020a, pp. 130-131)


Tanto em O erotismo, quanto em O anti-Édipo, encontramos uma ideia de vida imanente e impessoal, insubmissa, fluindo como uma torrente subterrânea que ambiguamente estrutura e corrói a existência humana, desafiando os limites da experiência da identidade e do corpo, nos impelindo em busca de uma continuidade sensível com a existência, para além das fronteiras reconhecidas e seguras, onde o ser estaria constantemente flertando com sua dissolução.


Mas, como se abrir à experiência desse corpo outro?


No próprio título do texto, Como criar para si um Corpo sem Órgãos em Mil Platôs, já somos convidados a refletir sobre uma ação, uma atividade de criação. Em outras duas partes do texto a questão é colocada explicitamente: “como fazer para nos descolar dos pontos de subjetivação que nos fixam, que nos pregam numa realidade dominante?” (Deleuze & Guattari, 1980, p. 198), “como chegar ao plano de consistência? Como cozer junto, como esfriar junto, como reunir todos os CsO?” (Deleuze & Guattari, 1980, p.195)


Assim, durante a leitura, a pergunta que me corroía era: em qual momento meu corpo se agita de forma tal que revela a intensidade do corpo sem órgãos, o qual sustenta e ultrapassa os estratos da minha identidade? Em qual momento meu narcisismo é deposto? Em que situação o corpo se revela em informidade, onde a funcionalidade do sistema-organismo cai? A resposta veio a mim, trazendo uma experiência humana inevitável: no apaixonamento.


Afinal, não seria o apaixonamento o movimento que revela a agitação geral do corpo, dos afetos, dos fluídos, em uma superabundância e excitação que nos leva a crise da individualidade?  "O que, desde o início, é sensível no erotismo é o abalo, por uma desordem pletórica, de uma ordem que exprime uma realidade parcimoniosa, uma realidade fechada."(Bataille, 2020b, p.129) No desejo erótico o corpo sofre uma força alheia que foge de sua legislação, sendo atingido por uma afecção que arranca o ser de seu autodomínio. Nesta queda somos arremessados desejosos em direção a um outro. No erotismo, o isolamento do ser deixa de ser proteção para se tornar infortúnio e impedimento. Um sistema que parecia fechado entra em desequilíbrio, os órgãos se bagunçam, a carne entra em convulsão. Paixão. Ansiedade. Volúpia. Desfalecimento. Entre sentimentos tão intensos que ofuscam a razão, emerge um profundo poder de transfiguração insubmisso, pois no erotismo o que “podemos em comum sentir é a vertigem do abismo”(Bataille, 2020b, p.37).


O erotismo e o CsO não se manifestam baseados em um cálculo de sóbria moderação dado pelo eu. Estamos no terreno do inconsequente, estamos na desterritorialização. Trata-se da irredutível excitação diante do outro, a qual embaralha as fronteiras do ser, descortinando a intensidade da vida que age em nós, em uma irredutibilidade do sensível que atravessa e corrói a lei da agência. A partir do momento que o outro gera paixão, ansiedade e desordem em mim, o que emerge é a opacidade em mim mesma. Se o mundo, na maioria das vezes, é foco de projeções e julgamentos do sujeito, o que o erotismo nos mostra é que o estranho fascínio, entre confusão, excitação e desespero que o corpo do outro nos provoca, nos põe diante de uma materialidade que não se harmoniza com o nosso sujeito do enunciado e homeostase psíquica. Drasticamente é nossa instância de autoconservação que colapsa diante de um sentimento que, no limite, nos arranca a vida. Mas percebam, assim como no estado do corpo erótico, o CsO não é inimigo da carne, mas inimigo do indivíduo, da racionalidade instrumental, da identidade, da operacionalização dos órgãos. Afinal, a carne é sempre insubmissa, desejosa, incoerente, múltipla. Aqui é a transgressão através do corpo que se impõe, mesmo que, muitas vezes, ela se manifeste na transgressão do corpo. Mas, afinal, o que seria o corpo?


Sinto meus dedos, estes dedos que digitam esse texto, em estranha simbiose com o teclado. Na realidade, estes dedos são múltiplos. Eles podem a qualquer momento se transformar, mudar de função, entrar em um devir entregue a experimentação. Afinal, o que são os dedos? Penso nos dedos que desenharam nas paredes de Lascaux. Dedos que esculpiram o êxtase de Santa Teresa D'Ávila. Dedos que tocam o som de um réquiem. Dedos que passeiam pela nuca dos parceiros de dança. Dedos que tocam outros dedos. Dedos violentos que marcam a carne. Dedos que acariciam o rosto do nosso amado. Dedos que acariciam meu interior e se molham de gozo. Dedos pesados ao redor do nosso pescoço, dedos que nos apertam a garganta arrancando-nos o ar e a consciência, fazendo com que nossos olhos se revirem vislumbrando a interioridade obscura, acéfala. O que são os dedos do carrasco? O que são os dedos do amante? O que são os dedos do escritor, do músico, do bailarino, da prostituta?


Penso nos dedos de Madame Edwarda, descrita por Bataille:


Uma voz, mais que humana, arrancou-me do meu embrutecimento.

A voz de Madame Edwarda, tal como seu corpo, era obscena:

- Você quer ver os meus trapos? dizia.

Com as duas mãos crispadas na beirada da mesa, virei-me para ela. Estava sentada, uma das pernas levantada, coxas afastadas: para abrir a fenda mais ainda ela puxava a pele dos dois lados, com as· mãos... Assim, os "trapos" de Edwarda olhavam para mim, peludos e rosados, cheios de vida como um polvo repugnante. Balbuciei docemente:

- Por que está fazendo isso?

- Veja, disse ela, eu sou DEUS … (Bataille, 1981, p.82)


Madame Edwarda abre seu corpo. Mas o que são os dedos de Edwarda? O que é o sexo de Edwarda? "O corpo sem órgãos não é Deus, antes pelo contrário. Mas divina é a energia que o percorre, quando ele atrai para si toda a produção e lhe serve de superfície encantada miraculante, inscrevendo-a em todas as suas disjunções." (Deleuze & Guatarri, 2010. p.26) Os dedos divinos de Edwarda abriram a carne para o corpo sem órgãos, rompendo a unidade do ser desejante. Na fenda de Edwarda, na qual interior e exterior se encontram, vislumbramos o êxtase do estar fora de si, deflagrados pela abertura por onde nossa vida se inicia – a origem do mundo.[2] Ali, o corpo dela se transforma em excesso, intenso, insubmisso.


Edwarda tinha mantido a sua posição provocante. Ordenou:

- Beija!

- Mas... - protestei - em frente de todo o mundo?

- É claro!

Eu temia: olhei-a imóvel, ela sorriu-me com tanta doçura que estremeci. Finalmente me ajoelhei, vacilante, e pousei meus lábios sobre a chaga em carne viva.” (Bataille, 1981, p.82)


O que seria o beijo? Uma junção de boca, língua, saliva, fôlego? Não, não apenas.


Podemos delimitar e conceituar o beijo. Podemos descrever, desenhar, fotografar, gravar um beijo. Mas nada disso é o beijo, nada disso aplaca nosso desejo pela experiência sentida do beijar. No movimento do beijo nos tornamos o impulso de beijar. As palavras invocam o beijo, mas no momento em que os lábios encontram a outra pele, todo conceito morre ali, na vivência. Na experiência inexplicável, ininteligível, no inumano atravessando o humano, encontramos o erotismo do corpo sem órgãos.  Ali, “na experiência, o enunciado não é nada, apenas um meio e, até, tanto quanto um meio, um obstáculo; o que conta não é mais o enunciado do vento, é o vento.” (Bataille, 2020a, p.45)


O CsO é impulso a um novo estado do corpo onde as intensidades e fluxos de desejos circulam arredias, escorrendo, rompendo, escapando a subjetivação. O desejo é cotidianamente esmagado por exigências de explicações, racionalizações, utilidades, teorizações, funcionalidades. Os estratos se organizam em significações e territorialização, mas subsistiria algo indomesticável em nós, o qual sempre restaria irredutível, escapando ao medo, a moralidade e ao horror do inesperado. Afinal, o que pode um corpo sem órgãos? Sua promiscuidade polimórfica é inimaginável. Não poderíamos compreendê-lo, e só o vivenciamos no limite da experimentação, “ele espera por você, é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em que você a empreende, não ainda efetuada se você não a começou. Não é tranquilizador, porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte.” (Deleuze & Guatarri, 1980, p.186) E eu me pergunto, o que pode um corpo erótico? Afinal, o que somos capazes de fazer, sofrer, abandonar, por amor? Quantas fronteiras foram ultrapassadas? Quantas vidas foram geradas e tiradas por esse arrebatamento? A humanidade se funda e se recria em erotismo. Muitas vezes o amor nos arrasta à morte real, mas mesmo que essa morte real não seja atingida, é inegável as mortes simbólicas que ele engendra. Ao toque de eros, não suportamos mais nos sentir tão fechados. Nossa sensibilidade se abre. Nas profundezas da nossa pele uma fome cresce por aquilo que está escondido por detrás das roupas e palavras. O erótico é um chamado à redescoberta dos sentidos, um chamado às zonas e buracos escondidos na carne e na psique, onde vida e morte se movem através de nossa angústia e êxtase. Atravessados pela gravidade da paixão, os caminhos do excesso nos levam aos momentos de dissolução, onde a chance de vivenciar a transgressão surge, quando encontramos um outro que nos leva aos limites de nossas fantasias. Ao entrarmos nessa dança apaixonada, somos pegos em um transe, em que o mundo pode morrer em uma única noite.


No Erotismo e no CsO, o que se revela é a quebra da estrutura, um movimento assintático, agramático, algo que faz o corpo mover-se, para fluir e romper em desejo. A intensidade de ruptura da paixão, levaria o ser individuado ao “limite extremo do possível”, onde “tudo cede”. O erótico é uma experiência que induz ao arrebatamento, revelando a “lacuna aberta” em que o sujeito e objeto se dissolvem. Ali “O transe dos órgãos bagunça um ordenamento, um sistema sobre o qual repousam a eficácia e o prestígio. O ser, em verdade, se divide, sua unidade se rompe desde o primeiro instante da crise sexual. Nesse momento, a crise pletórica da carne se choca contra a resistência do espírito.” (Bataille, 2020b, p.130) No Erotismo os sentimentos de risco e crise são inevitáveis. Existe um chamado subterrâneo para vivenciar o arrebatamento daquilo que nos arranca o julgamento. Na base do erotismo e do CsO está a violação do ser fechado, na qual toda identidade e representação são colocadas em jogo. Os fluxos do desejo anunciam a crise, o corpo pede para ser invadido, ele já não suporta sua Gestalt fechada, lá estamos implicados, participando em uma infecção compartilhada. O corpo se abre desejoso, expondo suas brechas, sensibilidades, vulnerabilidades. Nosso fluxo de energia corporal sofre um abalo quantitativo, que nos impele a mutações qualitativas. O que o movimento erótico nos mostra é o absurdo em nós, o desejo que não poderia ser cooptado por qualquer paisagem utilitária, uma vez que a atividade erótica não possui outra finalidade além dela mesma. O que os amantes vivem é o colapso do tempo e do propósito, onde o trabalho, a produtividade e a moralidade, são abandonados a favor dos corpos que se abandonariam dias, entregues a nudez e desejo de simplesmente existir no delírio de se liquefazer em seus fluxos compartilhados. O corpo erótico é um corpo sem órgãos. A carne se tornou lugar onde passam intensidades, aberta à experimentação. No enamoramento nossos corpos se reviram em funções outras, todo o organismo se entrega a um transtorno, onde “A beleza será convulsiva ou não será”.[3] Lá nossa respiração nos tira o ar, nossa língua se torna órgão de toque e carinho, nosso gemido inaugura uma outra linguagem, o gozo se torna néctar, o ânus lugar de desejo, o suor se torna banho, a saliva um brinde à embriaguez e conexão. Ali cada fragmento da carne do amante se torna polo de desejo, nos levando a um ponto de fascínio e frenesi, que nos arrasta ao ápice de uma estranha vontade de dissolução.


Nessa contestação das fronteiras da moral e do próprio corpo, passamos por uma modificação de sensibilidade de maneira tal, que o que se manifesta é o excesso, onde os próprios limites da vida são colocados em questão. O que o erotismo e o CsO exigem é a laceração do sujeito. Entrar nesses movimentos desestruturantes não é apenas um experimento do pensamento, mas envolve a verdadeira imersão do corpo em um processo de dissolução por meio da experimentação ativa dos encontros. Lembremo-nos das palavras de Bataille: “O ser, com frequência, parece dado ao homem fora dos movimentos da paixão. E eu direi mesmo que nunca devemos imaginá-lo fora desses movimentos.(...) Em geral, o erro da filosofia é se afastar da vida.”(Bataille, 2020 b, p.36). Também, em Deleuze e Guattari, os encontros ganham destaque, pois trazem “as disjunções, no sentido de que cada um, destituído da sua identidade pessoal, mas não das suas singularidades, entra em relação com o outro (...) sobre o corpo sem órgãos, cada um passa ao corpo do outro.” (Deleuze & Guattari, 2010, p.89)


A filosofia dos autores abraça com desejo a prática da experimentação e abertura ao outro. Eles não compreendem o afeto como um estado emocional ou mental de um indivíduo, mas, ao contrário, os afetos são forças materiais, sensações, que têm o poder de afetar e decompor corpos. Através da captura mútua que se dá entre os encontros, em um desencontro narcísico, os corpos são lançados sobre o mundo como armas de transfiguração. Os afetos envolvem o corpo e, portanto, têm o potencial de colocar não só a razão, mas o nosso fundamento em risco. Ali é a carne libidinosa estilhaçada que age, enquanto o eu se revela em fragilidade. “Do erotismo, é possível dizer que é a aprovação da vida até na morte.”( Bataille, 2020b, p.35). Eros nos traria em meio as suas consequências radicais, Tânatos, pois ele seria a expressão sensível de um excesso que não se acomoda nas coordenadas estruturais dos interditos que moldaram os indivíduos, arrastando-nos aos momentos de dissolução de fronteiras, nos despossuindo, sendo, ambiguamente, o movimento mais íntimo e mais exterior ao sujeito.


No hiato que sustenta esse texto, na angústia e paixão que movimentaram meus dedos sobre o teclado até agora, o desejo tenta se presentificar. Através dessa narrativa, algo em mim, que não me pertence, quer amar a loucura, a angústia e o êxtase da fragmentação que nos espreita afetuosa.  Aqui “O eu de nada importa. Para um leitor, sou o ser qualquer (...)[você] e eu somos, sem nome, saídos do ..... sem nome para este..... sem nome, como são para o deserto dois grãos de areia, ou, melhor, para um mar duas ondas se perdendo nas ondas vizinhas.” (Bataille, 2020a, p.84) Afinal, em meio as tragédias humanas, não nos é evidente que o desejo não se resume a autoconservação? Assim, me pergunto, e se o que mais desejamos for aquilo que nos ensinaram que deveríamos combater? E se o erotismo sagrado consistir precisamente em ir na direção contrária da autolegislação, preservação e cuidado? E se sucumbir ao mortífero não for um revés, mas uma aliança com uma revolução amorosa?


Em meio as experiências de enlace febril, sentimos que o erotismo caminha entrelaçado à morte. Talvez o sonho de uma sociedade baseada em amor, não se dê por uma batalha moral, mas sim a uma entrega violenta à potência insubmissa inevitável do ser. Às vezes nós agimos ingenuamente como se, quando o mundo sangra, nós pudéssemos nos esconder, controlar, escolher a violência que vai nos fascinar e aterrorizar nos encharcando até os ossos, e sairmos intocados, ilesos. Mas perceba, esse sangue que nos segue onde nós formos, que nos inunda, que nos agita, que nos chama, sinta, ele corre em nossas próprias veias, pedindo para jorrar. Queremos nos abrir, queremos nos tocar, nos extasiar, nos penetrar de todas as formas possíveis, não porque nós podemos tudo, mas ao contrário: porque nós não temos escolha. Desejamos ouvir vozes se desmanchando em gemidos e gritos, desejamos corpos em convulsão jorrando seus excessos. O abraço de nossas monstruosidades acontece a todo momento, nós de fato somos acariciados e atravessados continuamente por uma morte erótica, a qual nos abre linhas sagradas de fuga para fora do ideal humano, em um chamado da carne eterno e incessante. A saída? Entregue-se. Sim, será mortífero, é inevitável. Mas afinal, não é isso que todos nós estamos procurando, uma saída?

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NOTAS

1. Fonte: Oxford Latin Dictionary. Edited by P.G.W Glare. Oxford University Press, 2012. (pp.1845-1846).

2. Referência ao quadro A Origem do Mundo (1866) de Gustave Courbet, adquirido por Jacques Lacan em 1955.

3. Breton, André. Nadja (1928). Collection Folio plus (n°37), Éditions Gallimard, 1998. p.160

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REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. Visions of Excess. Selected Writings (1927–1939).Translated and edited by Allan Stoekl. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1985.  

BATAILLE, Georges. (1949/1975) A parte maldita, precedida de “A noção de dispêndio”. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2016.  

BATAILLE, Georges. (1953) A experiência interior: seguida de Método de Meditação e Postscriptum: Suma ateológica, vol.I/ Georges Bataille; tradução, apresentação e organização Fernando Scheibe – Belo Horizonte: Autêntica, 2020a. 

BATAILLE, Georges (1957) O erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.  

BATAILLE, Georges. (1957) O erotismo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2020b. BATAILLE, Georges. História do Olho seguido de Madame Edwarda e O Morto. Editora e Livraria Escrita Ltda. São Paulo, 1981. 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 3; tradução de Aurélio Guerra Neto. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996 

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix.O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia; tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010. 

FOUCAULT, Michel. The Birth of Biopolitics: Lectures at the College de France, (1978-1979) Editions du SeuiVGallimard. Graham Burchell, 2008.  

LACAN, Jacques. Le Séminaire. Livre 17. L'envers de la psychanalyse (1969-70). Ed. Jacques Alain Miller. Paris: Seuil, 1991. 

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 16: De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.  

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 20: Mais, ainda (1972-1973). 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.  

LACAN, Jacques. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998  

LAND, Nick. Making it with Death: Remarks on Thanatos and Desiring Production. Noumena_. Urbanomic, 2011.

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