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O SOM COMO DISPOSITIVO DE DOMINAÇÃO

RESENHA DE L'ORCHESTRATION DU QUOTIDIEN. DESIGN SONORE ET ÉCOUTE AU 21e SIÈCLE DE JULIETTE VOLCLER [1]

Frederico Lyra de Carvalho [2]

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L’Orchestration du quotidien. Design sonore et écoute au 21e siècle é o terceiro livro da pesquisadora independente francesa Juliette Volcler, no qual ela prossegue com sua pesquisa sobre o som. Após um primeiro livro sobre o uso do som como arma[3] e um segundo sobre os primórdios da manipulação sonora ainda no preâmbulo da segunda guerra mundial[4], a autora traça uma genealogia daquilo que é conhecido como design sonoro, isto é, a atividade de concepção do material sonoro como um produto de consumo (mas não apenas) como qualquer outro. O design sonoro e a orquestração do cotidiano são problemas fundamentalmente tecnológicos. Em uma época na qual o olhar crítico está totalmente voltado para os excessos de imagens que nos circunscrevem, não é um mérito menor conseguir deslocar os ouvidos do objeto visual para o sonoro. O som é, de certa forma, mais abstrato do que a imagem, mas nem por isso é menos material. De maneira geral, a sensibilidade que a audição desperta é mais discreta do que a visual, ela tende a ser deslocada para o fundo de uma situação e ser vivida de maneira muito mais discreta e inconsciente. O uso do som para além da música pode vir a ser fator de dominação, como Platão já havia notado na sua época. A ideia de orquestração do cotidiano não deixa dúvida, se trata efetivamente da organização sonora do dia a dia das sociedades tal qual ela é efetuada por indivíduos, empresas e governos ao redor do mundo. O design sonoro é o nome dado ao trabalho contemporâneo capaz de manipular digitalmente o som. Embora trace uma genealogia desde o século XIX, pensar o mundo contemporâneo é o que lhe interessa mais. O livro pensa sobretudo os excessos do mundo urbano. Se é verdade, como esperado, que a autora concentra as suas análises no caso francês, ao longo do livro fica evidente que no mundo ultra-tecnológico como o nosso a administração sonora do cotidiano é universal, praticamente ninguém escapa. O que muda na orquestração sonora quando passamos de uma metrópole de um centro decadente como Paris, para uma metrópole periférica de um país em desintegração, como no caso de São Paulo e, por que não, para uma metrópole colapsada da periferia da periferia como Recife? Uma pista pode ser encontrada em O Som ao Redor. Afinal, como sugere explicitamente o título, é precisamente disso que trata a primeira parte do já clássico filme de Kleber Mendonça.


Haveria um certo fetichismo próprio ao som, sugere Volcler, algo como um princípio religioso que lhe é inerente. A dominação através do design sonoro passa pela “crença na magia do som” (p. 142). Esse lado fetichista da dominação pelo som é fundamental para se entender a orquestração do cotidiano. “Aquelas e aqueles que querem fazer da escuta um meio de emancipação bem mais – ou tanto quanto – que de encantamento ou regulação terão compreendido que devemos primeiro enfrentar esse pensamento mágico do som no qual estamos imersos” (p.31). Volcler insiste que a orquestração do cotidiano “não atua como um marionetista com seus fantoches, mas se trata, pelo contrário, de uma proposta consentida, isto é, ao mesmo tempo uma relação cultural compartilhada ao som (nós entendemos o que é um ‘BRAAAM!’ fabricado em um filme e um ‘ploc’ em um smartphone) e de uma escolha de escuta (nós decidimos assistir Inception e nós selecionamos com um cuidado muitas vezes extremo o som dos nossos alertas)” (p. 17-18). A posição da autora é de insistir na possibilidade de haver um tipo de emancipação pela escuta que, por outro lado, passa pela possibilidade de emancipação da escuta como contrapartida ao feitiço do som. O problema central vem do fato de o design sonoro dar forma a uma subjetividade alienada que “se concebe como um modo de governo” (p.121). No limite, a possibilidade de emancipação enunciada se inverte no seu contrário e é anulada pela dominação social que efetivamente toma forma. Embora atravesse toda a obra, a autora não se colocou esse problema.


A autora chega a falar de uma “nova era do som” e afirma que com a instituição do design sonoro, “o capitalismo redescobre o som”. A era do som significa que a partir de um determinado momento passa a existir um mercado concentrado no disciplinamento pelo som. Apoiando-se em uma vasta bibliografia, ela identifica que a primeira virada em direção ao som se deu nas três primeiras décadas do século XX. O princípio da difusão em massa do rádio, de aparelhos reprodutores de disco e do telefone, assim como de microfones, do cinema, dos auto-falantes, dos canteiros de obra e dos carros materializam essa passagem. Adorno e Günther Anders foram dois autores que testemunharam nos seus escritos essa mudança radical na organização da escuta. “O som já carregava promessas de produtividade infinita, de eficiência, de desenvolvimento – som, isto é, o ‘som bom’ bem como o ‘ruído’, surge ao mesmo tempo que a matriz industrial” (p.30). O som não é sólido, mas mesmo assim se dissolve no ar. A explosão contemporânea de dispositivos que emitem sons e que são manipulados e consumidos individualmente, tendo no telefone portátil o seu paradigma, transforma o problema exponencialmente. O celular não é apenas um dispositivo tátil e visual. “Essas tecnologias nos levam a considerar o controle de nosso meio sonoro e do ruído dos outros como problemáticas individuais, quando na verdade uma dissonância social comum nos afeta todas e todos” (p.150).


Um dos pontos fortes do livro é notar como desde cedo as marcas mais diversas compreenderam que poderiam elaborar uma identidade sonora própria através da manipulação do som. Várias empresas possuem não apenas uma logomarca visual como também sonora. Ninguém menos que Bill Gates entendeu isso bem e encomendou ao designer Brian Eno a concepção de um som para o seu novo produto, o Windows 95. Este designer militava contra a música de ambiente em prol de uma música ambiente. Isto é, ao invés de deixar a música ou os sons como fundo sonoro, ele tenta elaborar uma estetização sonora do meio ambiente personalizando-o de acordo com as demandas de mercado. Obviamente o objetivo de tal deslocamento não poderia ser outro senão o de "despertar as consciências” (p.38). Depois de muita pesquisa, Eno chega a conclusão que nada melhor do que um acorde de dó maior sustentado por alguns segundos para servir de som de abertura do novo dispositivo que estava sendo colocado no mercado pelo ex-homem mais rico do mundo. Esse tipo de procedimento, nota Volcler, estabelece uma fusão de arte e ciência e, em seguida, do marketing. Embora seja com a informática que o design sonoro atinja o seu ápice, a pesquisadora encontra traços dessa fusão já no século XIX. Por exemplo, com o código morse criado em 1830 e com as primeiras máquinas de jogos de apostas que surgiram poucos anos depois. Ao longo dos anos todo tipo de som vai sendo sintetizado. Desde sinos, terremotos, bombas, até surgirem os primeiros videogames, várias marcas e empresas vão criando os seus próprios sons. Antes da informática foi no cinema que o design sonoro se desenvolveu de maneira mais aguda. A Disney é uma empresa cujo desenvolvimento do design sonoro data dos anos 1920 e que desde então se encontra na vanguarda do desenvolvimento de tal prática. Um outro aspecto fundamental que pôde se desenvolver no cinema e que reaparece depois nos videogames é a capacidade que o design dá ao som de narrar uma situação. O cinema permite que o som passe a corresponder a algo determinado criando uma força comunicativa e semiótica que induz e transporta o público para o lugar e o afeto desejados, bloqueando muitas vezes a crítica e ativando desde cedo o lado espetacularizado que tem o cinema. O cinema de massa não permite polissemia, incerteza, ambiguidade, ele tende a controlar o som tornando-o idêntico a ele mesmo, não deixando margem para interpretação. Os exemplos são vários, mas um filme clássico como Apocalypse Now é um marco nesse processo.


Outro dispositivo contemporâneo que recebe uma atenção especial da autora é o automóvel. Embora seja tecnologicamente possível silenciar absolutamente o carro, isto não é feito por medida de segurança. Caso o carro fosse silencioso a mortalidade no trânsito seria ainda maior pois, mais do que a visão, é o reflexo audível que protege os pedestres. Foi justamente essa restrição que serviu de desculpa para todas as indústrias de veículos – sobretudo os veículos de luxo – trabalharem na identidade sonora dos seus produtos, especialmente nos sons dos motores. Como lembra a autora, são os transportes, o carro em primeiro lugar, que ditam as regras de organização do espaço urbano, e isso não se restringe apenas à circulação, mas também à sonorização. É interessante notar que os exemplos paradigmáticos que ela encontra na França são de empresas que servem de certa forma como modelos para o resto do mundo por fornecerem serviços em parte públicos, cujo funcionamento nesse país é bem acima da média: SNCF e a RATP, respectivamente as empresas de trem nacional e do metrô parisiense. Os sons desenhados para identificar essas duas empresas estão entre os mais escutados e executados no país. Não é por fornecerem serviços essenciais e bons que deixam de ser empresas que buscam o lucro e funcionam sob a lógica da concorrência. Isso nos lembra que em um mundo onde as forças produtivas seriam partilhadas igualmente por todos, tais serviços coletivos não teriam nenhuma identificação para além do seu simples uso imediato. Os carros individuais seriam, evidentemente, abolidos.


A crítica ao urbanismo e a inspiração de Henri Lefebvre atravessa todo o livro, a começar pelo título. Volcler recupera uma descrição impressionante da paisagem sonora de Nova York que data de 1929: carros, gritos humanos, metrô, aviões a baixa altitude, apitos da polícia e canteiros de obras. Na época da Grande Crise da bolsa, um jornalista local notava que a civilização era “um Grande Barulho” (p.79) – com maiúscula mesmo. Por outro lado, a história das cidades é também a história do silenciamento de alguns sujeitos em prol de outros, observa a autora. “No final do século XVIII e ao longo do século XIX, indica o historiador Jean-Pierre Gutton, as grandes cidades ocidentais começam a enquadrar os profissionais barulhentos, proibindo-os de operar à noite ou de se instalarem em certas áreas”. Moinhos são transferidos para as periferias, assim como os ferreiros. Impõe-se o que alguns historiadores nomeiam de “silêncio concentrado da burguesia emergente” (p.80). Algo que vai repercutir, por exemplo, no silêncio absoluto que será exigido durante a apresentação de um espetáculo musical ou teatral, coisa que não era a regra até então. Não foram poucos os intelectuais e professores que se engajaram contra os trabalhadores e contra a ralé desocupada em prol do progresso que significava o disciplinamento sonoro das cidades. Ao longo do século XX, o processo de silenciamento se agravou até o ponto em que a rua, nas grandes cidades norte-americanas e européias, fosse dedicada exclusivamente à circulação, algo que não era de forma alguma o caso em épocas anteriores. Ao longo do século XXI nas assim chamadas “cidades inteligentes”, totalmente planejadas e policiadas, o silêncio tenderá possivelmente a ser absoluto.


“Do extrativismo sonoro e audível” é o título de um dos capítulos do livro. “O som registrado, como toda atividade fundada na tecnologia (este livro incluso), não escapa nem à industrialização, nem ao extrativismo, nem ao produtivismo” (p.95). A dificuldade da autora é como escapar de uma crítica moralizante ao design sonoro.  Do outro lado, no caso de alguns designers politicamente conscientes, a posição ambígua tende muitas vezes ao cinismo. O discurso da procura por um som supostamente natural que poderia ser alcançado e purificado por meio do uso da mais avançada tecnologia parece ser a saída escolhida por eles. É interessante notar que apesar de ser uma prática que se efetua pelo uso da tecnologia mais avançada da época, o discurso dominante prega a possibilidade de um contato imediato com o som purificado pelo design sonoro. Esse discurso ideológico ultratecnológico e purificador que funde estética e utilitarismo tende a se transformar em uma ecologia sonora reacionária, nota a autora. O extrativismo é da natureza e, sobretudo, do tempo de escuta dos indivíduos. “Quando captamos o som, não o inserimos apenas em um sistema de representação e de produção, mas de reprodução. Nós tomamos, na outra ponta da cadeia sonora (as orelhas dos ouvintes), a disponibilidade e o tempo de escuta” (p.101). Vocler sugere também que dessa maneira haveria “um design, não mais do som, mas da escuta” (p.104). Isso se dá, sobretudo, com a tentativa de induzir afetos através do som. O design sonoro não é apenas uma concepção de um produto, como também de um prazer estetizante. Por exemplo, os “bips” ou mesmo músicas emitidos por máquinas como um micro-ondas, por exemplo, passam a regular a percepção e o uso do aparelho. A função que o dispositivo exerce, nesse caso a de esquentar comida, passa a ser ela mesma estetizada pelo som que a máquina produz.


É interessante notar como os dispositivos mudam a escuta dos ouvintes. “O pós-guerra não difundiu apenas tecnologias, mas também uma cultura específica do som” (p.43). Os ouvintes passam a ser fiéis não só à música como aos aparelhos de reprodução e de criação de sons. Alguns mais fanáticos deslocam totalmente a sua escuta em direção aos ruídos das máquinas. Há uma inversão que vai na direção contrária do esforço de John Cage que foi o de incluir os ruídos na música. “Mais do que o som, os audiófilos querem escutar a tecnologia ela mesma” (p.44). Um dispositivo importante no agravamento da alienação da escuta é o fone de ouvido. O uso necessariamente individualizado de tal dispositivo é uma maneira de bloquear os ruídos ao redor do indivíduo que escuta algo, como também de impedir que aquilo que é escutado seja compartilhado pelos outros em um ambiente comum. A alienação materializada pelo fone de ouvido “separa o que queremos escutar daquilo que não queremos escutar” (p.149). Não é raro que em um escritório contemporâneo estejam todos trabalhando com fones de ouvidos tendo o seu ritmo de trabalho ditado objetivamente por aquilo que escutam de maneira individualizada, pouco importando aqui que seja um bom podcast, uma boa música ou um bom debate político.


Uma passagem interessante é aquela em que Volcler discute a rivalidade entre compositores e designers. Haveria uma nova divisão do trabalho onde uns seriam responsáveis por compor música enquanto os outros fabricariam sons. Alguns indivíduos encarnam totalmente essa nova divisão do trabalho musical e sonoro ganhando a sua vida com o design e sendo compositores nas horas vagas. Não por acaso, nota a autora, a centralidade do design sonoro materializa a passagem do leitmotiv wagneriano para o jingle. A redução a um objeto que não é mais uma música mas não é simplesmente um som é uma das características principais do design sonoro. Essa nova prática comum ao capitalismo contemporâneo é associada à ultramodernidade, à precisão, ao controle, aos novos meios tecnológicos, à emoção. No limite, o som passa a ser autorreferente, é sempre o mesmo, pois não se trata de uma busca por novos sons, mas da criação artificial de sons existentes ou reconhecíveis. É uma das faces do processo de reificação tecnológica do real. Há uma ruptura com o que é vivo e com qualquer ideia artesanal para a materialização de um novo tipo de produção industrial encarnado no indivíduo que realiza o design sonoro. “O design instituiu um presente eterno do som, uma repetição sem degradação nem evolução, um loop sem passado nem futuro” (p.28). “O cotidiano se encontra orquestrado há muito tempo, nem tanto por grupos de homens, ou por um punhado de empresas, ou por algumas técnicas e tecnologias e sim, mais fundamentalmente, pelas relações sociais, econômicas e políticas” (p.45). Resta pensar essa constelação de problemas do ponto de vista da periferia.

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NOTAS

1. Volcler, Juliette, L’Orquestration du quotidien - Design sonore et écoute au 21e siècle, Paris, La Découverte, 2022.
2. Frederico Lyra de Carvalho é doutor em  filosofia da arte pela Université de Lille. Possui mestrado em  filosofia pela Université de Paris 8 e em musicologia pela Université Paris IV. Faz parte do comité editorial das revistas Passages de Paris, Sinal de Menos e Jaggernaut. Atualmente é pós-doutorando no departamento de filosofia da USP. 
3. Volcler, Juliette, Le son comme arme : les usages policiers et militaires du son, Paris, La Découverte, 2011.
4. Volcler, Juliette, Contrôle : comment s'inventa l'art de la manipulation sonore, Paris, La Découverte/La rue musicale, 2017.
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