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APONTAMENTOS CRÍTICOS SOBRE A DISCUSSÃO DA ARTE NO ANTI-ÉDIPO
Paulo Sampaio

A arte atravessa o Anti-Édipo de cabo a rabo. Logo de saída somos apresentados ao Lenz de Georg Büchner e ao Molloy de Samuel Beckett, que servem de exemplo do passeio do esquizofrênico. Nas próximas cinco páginas já temos contato com versos de Antonin Artaud e passagens de D. H. Lawrence e de Henry Miller, além de alusões a Jean Dubuffet, Henri Michaux, e ao quadro Boy With Machine, de Richard Lindner. Essa galeria de artistas e obras não para de aumentar, e logo abarca também figuras que vão de Maurice Ravel a Man Ray, de Chaplin a Cage, de Tatlin a Turner, de Schwitters a Shakespeare, de Poe a Picabia, de Mozart a Moholy-Nágy, de Klee a Kerouac, entre muitos e muitos outros, de todos os períodos, estilos e linguagens imagináveis. E essa presença da arte, além de exuberante, parece ser de grande importância para a elaboração teórica dos autores. Basta pensarmos, para além dos mencionados passeios esquizofrênicos, na relação entre o Corpo sem Órgãos e Artaud, entre a máquina celibatária o grande vidro de Duchamp, ou entre a totalidade ao lado e a mesa esquizofrênica de Michaux.


Ao final da leitura, porém, fica-se com a impressão de que essa profusão de referências é acompanhada por certa indiferença em relação às questões específicas das obras. Do mesmo modo, aquilo que à primeira vista parece ser uma permeabilidade do discurso filosófico à prática artística passa a sugerir o oposto, a saber, uma mobilização de obras como meras ilustrações dos conceitos. Neste pequeno comentário, procuro explorar essas questões, apresentando algumas críticas ao modo como Deleuze e Guattari lidam com a arte e, ao final, arriscando uma hipótese acerca daquilo que os levou a tal abordagem.


1.

A elaboração mais extensa sobre a arte no Anti-Édipo encontra-se na seção IV.5.11 - Arte e ciência. Trata-se de um comentário sobre a passagem do estilo bizantino à pintura renascentista. Esse é, como se sabe, um momento crucial da formação da noção moderna de arte autônoma, da promoção das artes plásticas do mero ofício a algo vinculado ao espírito e ao intelecto e, por conseguinte, do surgimento da figura do artista como um indivíduo dotado de prestígio social considerável e claramente separado do artesão. Para esclarecer esse processo de autonomização - ou de descodificação dos fluxos, para usar a linguagem dos nossos autores -, pode ser útil descrever em linhas gerais a arte bizantina. Podemos dizer, grosso modo, que nessa produção encontramos uma iconografia fixa, por meio da qual os artistas deveriam expressar, de modo absolutamente impessoal, determinadas ideias religiosas. A produção era praticamente toda de mosaicos e afrescos, os quais, além de anônimos, eram fortemente padronizados. A disposição das figuras em cada imagem, assim como a disposição das imagens pela arquitetura das igrejas, era totalmente determinada pela liturgia. As figuras humanas eram representadas de modo chapado e frontal, sempre com o mesmo rosto inexpressivo e em posições codificadas, contra um fundo neutro, muitas vezes folheado em ouro.


Na passagem para a pintura renascentista, as normas rígidas da iconografia são abaladas. Temos uma "descodificação dos fluxos da pintura", a partir da qual as cores "passam a remeter tão somente às relações que elas mantém entre si e com as outras", ao invés de se reportarem a preceitos litúrgicos (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 489). Também as formas se emancipam, como podemos ver com maior clareza no tratamento que os pintores passam a dar ao corpo de cristo, que se torna um "lugar de enganche de todas as máquinas de desejo, lugar de exercícios sadomasoquistas onde ressalta a alegria do artista" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 489). As cores e as formas explodem na tela à medida em que se libertam do jugo dos investimentos coletivos hierarquizados, à medida em que rompem os códigos que bloqueavam a emergência plena da matéria pictórica. Se antes o conteúdo litúrgico subordinava a matéria a suas exigências, agora, em obras de um pintor como El Greco, a liturgia serve de pretexto para a exploração da potência da matéria.





























































Segundo os autores, o surgimento dessa nova forma de arte está relacionado à  dinâmica desterritorializante do capital na Veneza dos séculos XV e XVI. Ainda assim, não se trata, para eles, de uma forma especificamente moderna de arte, mas da abertura da possibilidade de manifestação da essência mesma da arte. O que se insinua na passagem da arte bizantina para o Renascimento seria a própria essência esquizorrevolucionária da arte, já que a descodificação moderna da arte é capaz de "libertar o que já estava presente na arte de todos os tempos" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 492). O artista capaz de dar vazão à liberdade da matéria pictórica é o gênio, "que já não é de escola alguma, de tempo algum" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 490), e que por isso mesmo é capaz de rasgar todo tipo de ordenamento convencional e historicamente situado do fenômeno estético, deixando entrar o caos da pura intensidade sensorial.


Se essas palavras parecem inadequadas para descrever a pintura do Renascimento, isso se deve ao fato de que nesse período a arte não conhecerá ainda sua plenitude, que precisará esperar pelas vanguardas do início do século XX para entrar em cena. Ao invés de uma emancipação de fato das cores e das formas, temos um exemplo da dinâmica dupla de desterritorialização e reterritorialização própria do capitalismo. Ao mesmo tempo em que a pintura se liberta do código bizantino, novas territorialidades a capturam, bloqueando o devir da arte como puro processo, como experimentação e abertura para o indeterminado - no sentido atribuído ao termo cinco séculos mais tarde pelo compositor John Cage e assumido como critério pelos nossos autores. Vemos, portanto, que o Renascimento também produz uma "axiomática propriamente pictural que estrangula a fuga, fecha o conjunto sobre as relações transversais entre linhas e cores, e o assenta sobre territorialidades arcaicas ou novas (por exemplo, a perspectiva)” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 490). Na leitura dos autores, a perspectiva é a primeira das artimanhas da “grande máquina de soberania castradora" que faz com que a arte se afaste de sua essência esquizo, encobrindo-a com “conjuntos molares estéticos” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 490). É por conta dela que a matéria, conforme se livra das antigas funções simbólicas, torna-se presa de novas funções composicionais ou estruturais, ao invés de existir em sua singularidade puramente sensorial.


Em certo sentido, os autores sugerem que, ao invés de uma pintura livre, passamos da não-liberdade tradicionalista para a não-liberdade racionalista. No código da iconografia pictórica tínhamos elementos díspares, como que pertencentes a castas diferentes - o tamanho, a posição e a disposição na tela de cada figura dependia de seu status mais ou menos nobre. Já na axiomático pictórica, temos uma equivalência geral entre os elementos da pintura, que são reduzidos a um quantum sensorial abstrato - isto é, temos cores e formas, sem mais. A princípio, parece tratar-se de uma pintura da pura intensidade, sobre a qual deslizam dados pictóricos que se aglomeram em diferentes graus de densidade. No entanto, devido a mecanismos como a perspectiva, ainda temos partes postas em relação e subordinadas a um ordenamento geral, mesmo que aqui as relações assumam um caráter diferencial ou 'econômico' ao invés de qualitativo. Os fluxos não são mais regidos por códigos sociais, mas nem por isso deixam de ser racionalizados.


A nosso ver, o procedimento dos autores é marcado aqui por certo apriorismo filosófico. Eles já sabem o que a arte é - puro processo - e o que ela faz - "cria cadeiras de descodificação e de desterritorialização que instauram, que fazem funcionar máquinas desejantes” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 489) - antes de se confrontarem com qualquer obra de arte. O conceito de arte não é tensionado com a experiência de obras particulares, que poderiam eventualmente transformá-lo ao longo do tempo. É vedada ao particular 'obra' a possibilidade de retroagir sobre o universal 'arte'. Com isso, o critério para a crítica das obras torna-se algo externo a estas. O risco disso reside no comprometimento da própria experiência das obras, na aplicação da filosofia à arte e na elaboração de uma filosofia da arte em sentido tradicional. Parece-nos que algo desse apriorismo está presente no modo como os autores abordam em bloco toda a pintura que usa a técnica da perspectiva. É insuficiente definir o que a perspectiva é - uma nova territorialidade pictural - e o que ela faz - interrompe os fluxos e as linhas de fuga - em abstrato, sem examinar como ela opera no contexto específico de uma determinada obra.


Um breve olhar sobre a produção artística revela que cada pintor se vale da técnica da perspectiva à sua maneira. A perspectiva aérea e panorâmica de Pieter Bruegel, por exemplo, é indissociável do 'tom' de sua obra, de seu voyeurismo elitista e pessimista, que condena do alto a desordem e a profanidade da vida popular. Já em Tintoretto, a perspectiva acelerada é usada para produzir efeitos dramáticos e distorções grotescas nos corpos. A instabilidade de suas telas contrasta com a serenidade de Piero della Francesca, que se vale da perspectiva em seu estudo sobre como o comportamento da luz determina nossa percepção do espaço. Reduzir todos os diversos usos da perspectiva a uma mesma ideia pode nos levar a pensar a arte a partir de cima. Mesmo a crítica geral à perspectiva precisaria partir de um exame de como essa técnica tornou-se problemática na produção posterior, e de como a prática artística buscou superá-la. Nesse caso, seria preciso investigar as causas da obsolescência histórica da perspectiva - em outras palavras, não discutir o que a é a perspectiva, mas o que ela foi em um dado momento e o que passou a ser em outro.
































































Em uma obra como o Anti-Édipo, é compreensível que não haja discussão detida de nenhuma das numerosas obras citadas. Mesmo em escritos integralmente dedicados à arte, porém, encontramos uma abordagem um tanto esquemática. Afinal, uma vez que já se sabe o que a arte é, resta apenas examinar em que medida as obras correspondem ao ideal normativo proposto, para então hierarquizá-las segundo seu grau de proximidade em relação ao ideal. Em seu estudo sobre Kafka, por exemplo, Deleuze e Guattari (2017) repartem a obra do escritor em três níveis: no topo, temos a desterritorialização perfeita realizada pelos agenciamentos maquínicos dos grandes romances (O Castelo, O Processo e América); depois, temos a desterritorialização imperfeita realizada pelos devires-animais das novelas (A Metamorfose e A Colônia Penal); e, por fim, a desterritorialização ainda mais comprometida realizada pelo pacto diabólico das cartas (a Carta ao pai e a correspondência com as namoradas). Os romances apresentam de modo exemplar a essência esquizorrevolucionária da arte, ao passo que o restante é maculado por um grau maior ou menor de edipianização. Também em sua leitura de Beckett, Deleuze (2010) separa as obras em três níveis. Aqui, temos as peças para televisão como momento de produção de singularidades puras, seguido pelas peças de teatro e pelos romances, marcados ainda por resquícios de significação.


2.

Nas passagens do Anti-Édipo em que discutem obras literárias, os autores apresentam interpretações que nos parecem marcadamente conteudísticas. Esse é o caso das menções ao Lenz de Büchner e aos romances de Beckett. Logo no início do livro, por exemplo, os autores discutem uma passagem de Molloy em que o narrador descreve seu sistema de chupar pedras sem voltar a chupar uma mesma pedra antes de tê-las chupado todas. Um pouco mais adiante, retornam a Molloy, comentando a passagem que ele é interrogado por um policial e não sabe dizer seu nome nem o de sua mãe, parando para pensar se Molloy seria ele, ela ou ambos. No primeiro caso, interessa aos autores descrever o passeio do esquizofrênico e estabelecer que nele tudo é máquina, máquina boca, máquina pedra e máquina bolso (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 12). No segundo, eles descrevem como o esquizofrênico reage ao ser interpelado pela triangulação de Édipo - no caso, pelo policial que pergunta "qual é seu nome, quem é seu pai, quem é sua mãe?" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 27). Não há aqui qualquer diferença no tratamento dado às personagens dos romances e a um caso clínico como o de Schreber, por exemplo. Ações feitas por uma personagem assumem o mesmo estatuto de exemplo de comportamentos esquizofrênicos que ações descritas em um texto não literário. De certo modo, supõe-se que no contexto de um romance as palavras operam no mesmo registro comunicacional que assumem em contextos extra-estéticos, na vida cotidiana. Os elementos da obra são examinados isoladamente, dando pouca atenção ao fato de que eles, ao serem retirados da realidade empírica e transpostos para o campo da aparência estética, passam a participar de um contexto de significação determinado pela historicidade do material artístico e das formas.


Gostaríamos de sugerir que essa literalidade com que Deleuze e Guattari abordam as obras literárias os coloca na inusitada companhia da crítica de Lukács às vanguardas. Afinal, também Lukács (1969, p. 54) encontra em Beckett a "simples descrição da patologia". Mas a partir daí, eles seguirão caminhos diametralmente opostos: de um lado a literatura de vanguarda é vista como um elogio da doença mental e da perversão sexual, servindo de protesto moral contra o mundo burguês da razão instrumental. Lukács condena a sexualidade "anormal" e o "anti-humanismo" na estaria presente na visão de mundo de autores como Beckett, para os quais o sexo com animais apareceria como "um regresso triunfal à natureza, como a libertação da verdadeira natureza humana, que escaparia assim à servidão deformadora das convenções sociais" (LUKÁCS, 1969, p. 55). De outro lado, a literatura de vanguarda é entendida como criação de linhas de fuga, de devires-animais e agenciamentos maquínicos por meio dos quais a produtividade do desejo flui como um processo sem objetivo, na forma de um sexo não-humano que não se deixa capturar por Édipo, não almeja um novo socius nem investe libidinalmente o socius existente. Para ambos, as vanguardas exaltam o patológico e o anti-humano em um protesto contra a civilização. Mesmo partindo do campo oposto, parece-nos que Lukács poderia subscrever diversas formulações de Deleuze e Guattari, tais como: "Gregor torna-se barata, não apenas para fugir a seu pai, mas, antes, para encontrar uma saída lá onde seu pai não soube encontrá-la, para fugir ao gerente, ao comércio e ao burocrata, para atingir esta região onde a voz apenas zumbe” (Deleuze & Guattari, 2017, s/p). Sem fazer coro com a crítica de Lukács ao suposto irracionalismo moderno, podemos ver que há um espelhamento sugestivo entre esse tipo de condenação e esse tipo de elogio da arte de vanguarda.


Comentando os ensaios de Lukács contra a vanguarda, Adorno (1991) ressalta o fato de que em sua crítica o filósofo húngaro demonstra perda de sensibilidade às questões específicas da arte, e praticamente abandona a análise dos problemas imanentes de obras individuais. Isso se manifesta sobretudo como desatenção à apresentação, isto é, como um exame do que é dito que desconsidera como isso é dito. Em uma argumentação que pode ser transposta diretamente para a crítica ao tratamento da arte do Anti-Édipo, Adorno sustenta que ao invés de serem vistas como descrições de comportamentos esquizofrênicos, as ações das personagens de Beckett precisam ser lidas à luz do destino das categorias fundamentais das formas literárias burguesas. O romance e o drama, cujas categorias formais têm como pressuposto o conceito de indivíduo surgido no contexto do capitalismo liberal, sobrevivem, no contexto do capitalismo monopolista, como exposição de sua própria impossibilidade. O romance não é possível quando as personagens não são indivíduos, mas meros restos da dissolução histórica do sujeito, vivendo em latas de lixo e balbuciando frases feitas para fazer o tempo passar. Em uma peça como Fim de Partida, segundo Adorno (1991, p. 260): "Os constituintes do drama aparecem após sua morte. Exposição, complicação, ação, peripécia e catástrofe retornam como elementos decompostos de uma autópsia da forma dramática". Visto por esse ângulo, o desfazimento da linguagem que encontramos na obra de Beckett não seria o advento da pura sensação, mas um modo de registrar as tendências sociais que levam ao desaparecimento da subjetividade. A tendência à aniquilação do indivíduo não é exposta como tema em um romance ou em um drama convencional, e sim comunicada através da própria incomunicabilidade das obras, através da negação sistemática das categorias formais da arte burguesa. Podemos ver isso em Molloy: ele não é o narrador enquanto indivíduo, que integra os acontecimentos de sua vida em uma totalidade dotada de sentido, mas o narrador pré- ou pós-indivíduo, que interrompe fluxo narrativo para uma minuciosa descrição de um sistema de chupar pedras, que não sabe se seu nome é seu ou de sua mãe, que mente, que  no meio de uma frase se esquece do que estava dizendo etc.


A crise da linguagem que se manifesta nas obras de arte de vanguarda, quando não é compreendida a partir da crise das formas burguesas sob o capitalismo, aparece ora como "multiplicidade pura, não polêmica e inocente" (ADORNO, 1991, p. 257), ora como irracionalismo e decadência, a depender da visão de mundo do crítico. A falta de mediação com a história das formas faz com que autores vanguardistas - como Deleuze e Guattari - e anti-vanguardistas - como Lukács - se concentrem no conteúdo apresentado nas obras, sem investigar a intenção por trás de sua apresentação. A chave de leitura proposta por Adorno, porém, é impensável para os autores do Anti-Édipo, uma vez que é devedora da noção de contradição entre as relações burguesas de produção e as forças industriais de produção. Ou seja, é dado destaque ao modo como as expectativas emancipatórias inerentes à arte burguesa - sua promesse du bonheur - são revertidas sob o capital. Deleuze e Guattari, por sua vez,  rejeitam a noção de contradição entre relações de produção e forças produtivas, assim como a ideia de que a revolução burguesa em sentido amplo possui qualquer relação com a emancipação humana. Contra a "estranha ideia de que a burguesia foi revolucionária em um dado momento"[1] (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 529), os autores enfatizam o caráter revolucionário da própria máquina desejante capitalista. Essa máquina capitalista, produzida pelo encontro aleatório entre "o capital como riqueza desterritorializada e a força de trabalho como trabalhador desterritorializado”, seria baseada na ligação de elementos pela ausência de liames, que é característica do desejo (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 531). Ou seja, capital variável e capital fixo, homem e máquina, coexistem como elementos múltiplos ligados sobre o corpo pleno do socius, como peças que se relacionam por meio de sua própria diferença. Essa multiplicidade característica da produção desejante não pode ser apreendida do ponto de vista da “insípida dialética evolutiva” de Marx (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 62), de modo que "os pressupostos dialéticos impedem-no de atingir o desejo como partícipe da infraestrutura" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 532).


3.

Assim como a arte em geral é vista sob o prisma das vanguardas, de modo que a pintura do Renascimento é avaliada a partir da noção de indeterminação presente na obra de John Cage, também as vanguardas são vistas por um prisma específico. As obras que traduzem mais adequadamente as noções favorecidas pelos autores são, de modo geral, ligadas ao dadaísmo, e baseiam-se em procedimentos de colagem e montagem. Não poucas vezes, ao se ler as descrições feitas pelos autores de obras de escritores tão alheios ao dadaísmo como Kafka e Beckett, tem-se a impressão de que se está diante da descrição de um poema sonoro de Hugo Ball ou Kurt Schwitters. A centralidade do dadá torna-se mais explícita no 'Balanço-Programa' apresentado ao final do livro:


Por volta da guerra de 1914-18, defrontaram-se as quatro grandes atitudes em torno da máquina: a grande exaltação molar do futurismo italiano, que confia na máquina para desenvolver as forças produtivas nacionais e produzir um homem novo nacional, sem pôr em causa as relações de produção; a do futurismo e do construtivismo russos, que pensam a máquina em função de novas relações de produção definidas pela sua apropriação coletiva (a máquina-torno de Tatlin ou a de Moholy-Nagy, exprimindo a famosa organização de partido como centralismo democrático, modelo espiralado com ápice, correia de transmissão, base; as relações de produção continuam a ser exteriores à máquina, que funciona como “índice”); a maquinaria molecular dadaísta, que, por sua vez, opera uma subversão como revolução de desejo, porque submete as relações de produção à prova das peças de desterritorialização para além de todas as territorialidades de nação e de partido; finalmente, um antimaquinismo humanista, que quer salvar o desejo imaginário ou simbólico, voltá-lo contra a máquina, correndo o risco de assentá-lo sobre um aparelho edipiano (o surrealismo contra o dadaísmo, ou então, Chaplin, contra o dadaísta Buster Keaton) (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 534).


Deleuze e Guattari apresentam diversas formulações que procuram justificar essa defesa da superioridade do dadaísmo em relação ao futurismo, ao construtivismo e ao surrealismo. Vejamos brevemente como isso se dá, começando por aquilo que colocaria o dadaísmo acima do futurismo. Parece-nos que aqui podemos remeter à diferença entre os dois tipos de fantasmas de grupo. No primeiro tipo, ligado ao futurismo, a libido investe o campo social existente, de modo que as máquinas desejantes são apreendidas em sua organização molar, agregadas na máquina social técnica. No segundo tipo, ligado ao dadaísmo, percorremos o caminho inverso, por meio de um contrainvestimento do campo social que faz com que  "as máquinas sociais sejam relacionadas às forças elementares do desejo que as formam” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 48). Tendo em vista que as máquinas desejantes e as máquinas técnicas não possuem naturezas distintas, mas apenas se organizam em regimes diferentes, trata-se de saber se a arte orienta o desejo para o campo social existente, ou promove "um desinvestimento ou uma "desinstituição" do campo social atual, em proveito de uma instituição revolucionária do próprio desejo" enquanto processo sem fim (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 48). Em outras palavras, temos de um lado a "exaltação molar" da "máquina desejante fascista", e de outro a subversão desejante da "máquina molecular dadaísta". No dadaísmo, trata-se de subverter o regime de funcionamento das máquinas técnicas, de criar “fantasmas de grupo que curto-circuitam a produção social com uma produção desejante, e introduzem uma função de desarranjo na reprodução social de máquinas técnicas (...)" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 49).


Para diferenciar o dadaísmo do construtivismo, podemos pensar na diferença entre os grupos sujeitados, em que “o desejo se define ainda por uma ordem de causas”, e os grupos sujeitos, que "têm como única causa uma ruptura de causalidade, uma linha de fuga revolucionária” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 500). No caso dos grupos sujeitados, podemos ter uma política revolucionária no nível do pré-consciente, e no entanto paranoica no nível dos investimentos libidinais inconscientes. Na vanguarda paranoica do construtivismo, o desejo trabalha no sentido da construção de um novo socius, e a partir dessa meta estabelece uma causalidade. Já no dadaísmo temos uma dinâmica esquizo, que busca "a irrupção de desejo que rompe com as causas e as metas e que leva o socius a voltar-se sobre sua outra face" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 500). Os dadaístas, que são os menos envolvidos com a política no nível dos interesses pré-conscientes, que não estão em partidos e não afirmam uma totalidade presente nem uma por vir, discretamente atuam no sentido da verdadeira revolução, calcada na política do inconsciente desejante.


Por fim, para diferenciar o surrealismo e o dadaísmo podemos recorrer à diferença entre a teoria dos sonhos na psicanálise e na esquizoanálise. Para os autores, a associação livre, comum à psicanálise e ao surrealismo, toma o sonho como "sonho-teatro" ou "sonho-tela", ou seja, somente como "objeto de uma interpretação molar" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 519). O sonho é visto, desse ponto de vista, mais como associação de lembranças do que como produção de delírio. As associações de natureza memorial-biográfica, que são sempre edipianizantes, são reafirmadas e assentadas, ao invés de serem destruídas. A esquizoanálise, por sua vez, enfatiza o aspecto delirante-produtivo do sonho, e procede, tal qual o dadaísmo, por meio do princípio do corte, da técnica de montagem. Trata-se de produzir choques entre fragmentos arbitrariamente selecionados, para romper as associações presentes no sonho e impedir que novas se formem. Essa dissociação produz a multiplicidade, um sistema em que puras singularidades se unem pela ausência de liame. Ao invés de fechar ainda mais o sonho em uma interpretação, o corte "fornece novas conexões ao phylum maquínico do sonho", reanimando a produtividade do delírio do "sonho-máquina" ou do "sonho-fábrica" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 519).


De maneira geral, portanto, são os dadaístas - melhor dizendo, os artistas transformados em dadaístas na abordagem dos autores - que correspondem à figura ideal do artista como gênio que faz jus à essência da arte como um "processo sem objetivo" (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 490), como deriva infinita do desejo. São eles os artistas que, assim como os videntes e os revolucionários, sabem que a falta é introduzida no desejo pela sua organização molar, e conseguem percorrer o caminho inverso, reintroduzindo o caos e a indeterminação nas máquinas técnicas (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 44). Essa arte subversiva está para além de qualquer intelectualização, e fora do tempo. Ela não representa nem projeta nada, mas somente promove uma recorrência maquínica que produz “estados intensivos organizados: nem forma nem extensão, nem representação nem projeção, mas intensidades puras e recorrentes” (DELEUZE & GUATTARI, 2010, p. 516).


A nosso ver, essa valorização da arte como micropolítica de libertação do desejo corre o risco de tornar-se uma consolação. Na interpretação de Deleuze e Guattari d'O Processo de Kafka, por exemplo, a burocracia não aparece como o inferno, como um "criptograma da fase final e resplandecente do capitalismo" no qual vemos o "colapso total da consciência alienada", a trajetória da desumanização em que o indivíduo, através do aprofundamento do princípio de individuação, retorna à condição de coisa (ADORNO, 1998, p. 252). Pelo contrário, a burocracia aparece como uma máquina técnica que pode ser subvertida proveitosamente. Não há catástrofe iminente, e em hipótese alguma tudo estará perdido, pois sempre é possível fazer com que o socius se volte sobre sua outra face, em um lance que transforma a máquina técnica mais terrível na mais potente máquina desejante. É nesse sentido que, uma vez que a burocracia é ela mesma um agregado molar de máquinas desejantes, K. é capaz, em sua práxis micropolítica, de desarranjar seu funcionamento e transformá-la em pura multiplicidade molecular. Como todo o resto, a "burocracia é desejo", há um "Eros burocrático" a ser ativado (DELEUZE & GUATTARI, 2017, s/p). Assim, os escritórios contíguos pelos quais o senhor K. perambula podem ser transformados em uma série binária e infinita de conexões, pelas quais flui o desejo. K. consegue essa façanha ao optar pela moratória ilimitada ao invés da alternativa entre absolvição e condenação. Com isso, ele instaura um processo sem fim no interior da máquina burocrática, indo indefinidamente de um escritório a outro, assinando papéis, colecionando carimbos, conversando com funcionários etc. Nessa deriva infinita pelos meandros da burocracia, ele vai desmontando as peças da máquina burocrática e criando novos agenciamentos maquínicos.


4.

Paulo Arantes (2021, p. 56) acerta quando afirma que o "surrealismo em clima festivo de fim de linha" que dá o tom da obra de Deleuze e Guattari assinala de modo particularmente claro a oposição frontal que existe entre as posições da teoria crítica frankfurtiana e as do chamado pós-estruturalismo. No caso da discussão estética, podemos dizer que ali onde Adorno e nossos autores estão mais próximos - a saber, na ideia de que a crise da linguagem e do sentido em geral é um aspecto crucial da arte de vanguarda - torna-se mais evidente a diferença entre as respectivas abordagens. Essa crise fornece o contexto comum para ambas as reflexões - não é por acaso que de ambos os lados encontramos referências constantes a Kafka e Beckett.


Obras como as de Beckett, que desarticulam a linguagem até à incomunicabilidade, podem ser vistas ou como um elogio da degradação máxima da subjetividade ou como um alarme que busca despertar o leitor para o fato de que uma tal degradação está em curso. Diante desse tipo de obra, "[n]ão há norma fixa para decidir se um artista que elimina a expressão por completo tornou-se porta-voz da consciência reificada ou porta-voz da expressão muda, da expressão inexpressiva que denuncia a consciência reificada" (ADORNO, 2002, p. 117). É justamente aqui que a crítica deve cumprir seu papel, pois somente a análise detida da obra permite identificar a posição da obra diante da crise do sentido. A tarefa da crítica é "saber se o sentido é inerente à negação do sentido na obra de arte, ou se a negação se conforma ao status quo; saber se a crise do sentido é refletida nas obras ou se ela permanece imediata e, portanto, alheia ao sujeito" (ADORNO, 2002, p. 154).


Partindo de uma visão neodadaísta sobre a arte, Deleuze e Guattari positivam a ausência de sentido na vanguarda enquanto emergência da essência esquizorrevolucionária - e atemporal - da arte. Eles tendem a dividir as obras entre aquelas que conseguiram desarticular por completo a linguagem convencional, tornando-se com isso fenômenos puramente sensoriais, e aquelas que ainda se apegam a associações edípicas. Em um momento em que potencial crítico das vanguardas artísticas, o qual dependia de sua relação - ainda que bastante indireta - com a vanguarda política do socialismo internacional do início do século XX, encontra-se em refluxo, nossos autores operam uma reanimação artificial do ímpeto revolucionário da produção artística. Essa operação só é possível quando é realizada à revelia das obras, a partir de um projeto filosófico já delineado.


Ao verem nas obras não mensagens engarrafadas que testemunham o bloqueio da práxis transformadora, mas sim um substituto para tal práxis, Deleuze e Guattari abrem mão das obras de vanguarda como meios privilegiados para a experiência da não-liberdade. Em lugar da interpretação da ausência de sentido como uma cifra do colapso da subjetividade e do potencial emancipatório da sociedade burguesa sob a pressão crescente do capital, ficamos com uma celebração da ausência de sentido. Nessa dinâmica de identificação com o agressor, aquilo que se apresenta como anti-capitalista e revolucionário pode muito bem ser, na realidade, uma forma elaborada de conformismo.

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