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EDITORIAL

Estilhaço é o que resta depois de uma explosão. Alguém pode, porém, encontrar estilhaçadas as marcas dos impactos, reconstituir o ocorrido e até mesmo fazer dos fragmentos peças de uma nova construção. Tudo é possível para quem não recusa estilhaços. E se esse foi o nome que adotamos é por entender que, daqui para a frente, pensar exigirá estar atento às explosões – mesmo que tenham ocorrido, muitas vezes, contra nós. Enquanto revista brasileira, Estilhaço não se furta a admitir que este é um país de colapsos e, por isso mesmo, para dizê-lo em bom português, um ponto privilegiado para observar o mundo. 

No entanto, não se trata apenas de observar passivamente: essa é uma revista que se pretende de crítica e de intervenção para um país ainda a ser construído. Há quem se contente em se colocar à sombra dos “pensamentos críticos”, mas também há quem entenda que a crítica, quando esteve à altura de seu próprio conceito, sempre foi uma forma de intervenção, pois buscava definir e abrir campos de problemas, apontar contradições que muitos gostariam de negligenciar, fortalecer o desejo de agir, reordenar as condições de possibilidade da experiência. É nesse segundo grupo que nos colocamos. Por isso, aceitamos textos de múltiplas formas e estilos, mesmo porque não é hora de fazer o papel de guarda de fronteira e cercear a capacidade criadora do pensamento nas suas diversas expressões. Ao mesmo tempo, contudo, por ser formada por pesquisadoras e pesquisadores da Universidade de São Paulo, a revista não vê problema algum em acolher textos acadêmicos mais “tradicionais” e até se espanta diante de certo anti-intelectualismo que, muitas vezes, vem justamente daqueles que se dizem comprometidos com as lutas por emancipação. Sendo assim, não vê problema em acolher qualquer formato de texto que se mostre adequado a seus próprios fins. Estilhaço é a condição para a criação e circulação de novas formas.

Para este primeiro número, organizamos um dossiê intitulado "O que vem depois do fascismo?"; a ideia é escapar do "urgentismo salvacionista" que se estabelecerá no campo da esquerda daqui para a frente partindo de uma reflexão robusta acerca das consequências da ascensão da extrema-direita no cenário nacional. Entendemos ainda que esse movimento é global, visto que a extrema-direita brasileira não é um caso isolado, nem o Brasil é uma ilha autossuficiente. Por isso, chamamos pesquisadores e pesquisadores da América do Norte, da América Latina e da Europa para que a ressonância de experiências produza uma figura comum.

A esse respeito, seria interessante lembrar como o vocábulo mágico “fascismo” acabou eventualmente se impondo para descrever a extrema-direita brasileira, ainda que apenas nos últimos meses de forma mais acentuada. Durante anos, muitos foram os que lembravam que o bolsonarismo não era um ponto fora da curva, que ele era a realização consequente de uma tendência histórica brasileira cujas raízes se encontram no fascismo nacional. Ora, um país que, nos anos 1930, viu a Aliança Integralista Nacional chegar a 1.200.000 membros, sendo um dos maiores partidos fascistas fora da Europa, não pode imaginar que um presidente que assina seus discursos com o lema integralista “Deus, Pátria, Família, Liberdade” seja um ponto fora da curva; um país que foi o maior experimento necropolítico do escravismo mundial, encarnando como poucos a junção entre destruição colonial e progresso (ou melhor, acumulação primitiva do Capital) não poderia imaginar estar imune à ressurgência do fascismo no momento histórico global em que o neoliberalismo escancara suas matrizes autoritárias.

Mas eis que foi apenas nos últimos momentos do processo eleitoral que vimos setores da imprensa e da classe política falando de “fascismo” abertamente e associando-o ao bolsonarismo. Alguns afirmarão que essa tomada de consciência tardia teria sido efeito da patente escalada de violência – acompanhada de uma lógica de milícia civil – que marcou os últimos meses, mas haverá também aqueles que se perguntarão se essa virada não acoberta um outro discurso estratégico, qual seja, aquele em que impera a lógica do “todos contra o fascismo”, que pode muito bem significar “nenhuma contestação a partir de agora, pois todo questionamento pode fortalecer o retorno do fascismo”. Ao que responderíamos: “ao contrário, é nessas horas que a contestação consciente e o questionamento organizado demonstram ser a única arma possível contra o fascismo”, pois este não cresce apenas de regressões e repressões naturalizadas pela ordem social; cresce, de fato, a partir da exploração sistemática das nossas contradições. E de nada adiantará dizer que a análise de tais contradições deverá ficar para o futuro, pois o fascismo não é a “barbárie” que será vencida pela “civilização”; ele próprio é uma das figuras da “civilização”, figura sombria mas indelével.

Quando a Teoria Crítica apareceu como programa, no começo dos anos 1930 na Alemanha, ela representava uma maneira consciente e advertida de sustentar a crítica como fidelidade às exigências de transformação revolucionária das sociedades capitalistas. No entanto, entendia que a sustentação advertida de tal modelo crítico deveria levar em conta um fato novo, a saber, a emergência de uma contrarrevolução popular fascista, a tradução do desejo social de ruptura em uma contrarrevolução violenta. Ou seja: não há teoria crítica sem a consciência desperta do fascismo como latência de nossas sociedades, como o freio de mão das sociedades liberais, como estrutura de personalidade a assombrar as individualidades modernas e capaz de retornar a qualquer momento. Não há teoria crítica sem uma compreensão estrutural do fascismo, e não apenas uma compreensão histórica. É isso que, no limite, separa uma teoria crítica de uma teoria tradicional: a necessidade de uma abordagem interdisciplinar da junção entre violência e norma que faz do fascismo uma latência necessária do capitalismo diante de suas contestações.

Bem, parece desnecessário insistir em como tal horizonte crítico praticamente se perdeu no interior do pensamento estagnado que ainda se convenciona denominar Teoria Crítica atualmente. Assim, não acreditamos que exista outra alternativa para quem se encontra atualmente no Brasil a não ser retomar, de uma forma ou de outra, a exigência crítica de outrora diante de um fascismo que não desaparecerá após a derrota eleitoral. Daí a indagação: “o que vem depois?”.

Desse modo, trocar o urgentismo salvacionista pela verdadeira urgência de uma análise paciente e nuançada do fascismo tupiniquim foi nosso principal objetivo nesse número. Não se trata, porém, de um programa homogêneo: reunimos textos de intelectuais e ativistas dos mais diversos campos da esquerda e deixamos em aberto, inclusive, a possibilidade de discordância quanto à validade da categoria “fascismo” para caracterizar o bolsonarismo, pois existem também outras possibilidades de leitura igualmente interessantes e que de forma alguma minimizam o impacto da catástrofe dos últimos quatro anos. Afinal, se o bolsonarismo se aproxima em vários pontos do fascismo histórico dos anos 1920-1930, também se afasta em inúmeros outros; assim, a categoria “fascismo” não deve ser usada como guarda-chuva abstrato, mas como uma categoria analítica rigorosa que atravessa experiências presentes e passadas e toma corpo em um movimento com características e objetivos próprios.

Nesse sentido, não é por acaso que o outro eixo de nosso primeiro número seja o resultado de um trabalho coletivo de leitura e de interpretação de uma das obras mais relevantes para o horizonte crítico das últimas décadas, independentemente das afinidades e das aversões que mobiliza, a saber: O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Felix Guattari. Seria possível dizer que o intento era celebrar os 50 anos de sua publicação, o que conseguimos quase no apagar das luzes, mas havia também outra razão mais relevante: no momento em que a Teoria Crítica abandonava sua exigência de compreensão da migração das expectativas revolucionárias para uma contrarrevolução fascista, isto é, quando se tornava análise sistêmica dos conflitos sociais em direção à consolidação das potencialidades de consenso pretensamente presentes no Estado do Bem estar social, outras matrizes de pensamento preservavam tais exigências, embora à sua maneira. Tais fenômenos só podem ser observados da periferia, ou seja, do ponto de vista daqueles sem comprometimento prévio com quadros de referência pré-definidos.

REALISMO FANTÁSTICO (INTEGRALISTA), 1991-1994

Rosângela Rennó

Lanternas mágicas giratórias com negativos fotográficos sobre pedestais de madeira pintada
220 x 20 x 20 cm (cada)

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