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OS VAGA-LUMES DA COLÔMBIA OU SOBRE AS LUZES DA RESISTÊNCIA
Natalia López Rico [1]
Tradução Guilherme Medeiros

Em Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011), um belo e pequeno livro dedicado a Pasolini, Didi-Huberman se pergunta por que o escritor e cineasta, grande amante do povo e do proletariado italiano – povo que vira brilhando como vaga-lumes, em sua fragilidade, inocência e vocação para a sobrevivência -, desistiu de seu encanto a ponto de decretar seu desaparecimento. Uma virada que ocorreu em apenas duas décadas: do amor pelo povo professado em seus textos dos anos cinquenta e em seus filmes dos anos sessenta (Accattone, Mamma Roma e Uccelani e Uccelini), à total desilusão em meados dos anos setenta. Aparente rendição que ocorreu diante da estridência dos holofotes imposta por um fascismo triunfante, desdobrado, segundo Pasolini, em sua forma mais sofisticada: uma indústria cultural – genocídio cultural, nas palavras precisas do diretor – que teria dispensando os desfiles nas grandes avenidas, ou a exibição de mãos levantadas diante do líder, mas que, como o fascismo histórico, representava seu êxito em tomar para si as almas, a linguagem, os gestos e o corpo do povo, aniquilando assim seu desejo e sua capacidade de resistência, extinguindo qualquer mínima luminosidade possível, mesmo que o brilho fosse um último impulso de natureza instintiva.


1.

Didi-Huberman então censura Pasolini (e também Agamben, por tomar em Infância e História a crise da experiência como um apocalipse latente que bane e descarta os conflitos do presente) por seu desespero político traduzido em paralisia, ao confundir a extinção de seu próprio desejo com a extinção de sua capacidade de ver as aberturas do possível, do que se mostra e aparece “apesar de tudo”. Ele termina se perguntando: para que parte da realidade a imagem dos vaga-lumes pode ser dirigida? Ou, caso tenhamos que aceitar [o apocalipse], significaria que os vaga-lumes desapareceram?


2.

Este não é o momento de questionar como algumas formas de mitologia do povo e do popular, com sua configuração e constituição estética particulares, sofreram um golpe mortal e irreversível, mas talvez seja o momento de pensar que se trata de um golpe necessário para que novas formas do povo e do popular surjam em outros campos políticos e sociais. Uma operação que não precisa decretar a destruição radical para que algo como uma revelação ocorra, mas sim pensar em formas de destruição ou de fim inacabadas, não encerradas, porque não é uma questão de sobrevivência após a morte; é um “apesar de tudo” que reafirma a vida sobre a política de morte e destruição que sempre pairou sobre os povos e seus territórios na América Latina. Esta parece ser para alguns a face mais inesperada, e para outros a mais óbvia, da recente transformação política da Colômbia. O fato de Gustavo Petro, ex-guerrilheiro do M19 – uma guerrilha com a qual o Estado colombiano assinou um acordo em 1990 – ter se tornado o primeiro presidente de esquerda da história do país, e Francia Márquez, uma mulher, líder ambiental e afrodescendente, ter conquistado a vice-presidência, nos fala não apenas sobre o êxito futuro dos processos de desarmamento, diálogo e paz, como também das formas de emergência popular que, embora à primeira vista pareçam incomuns, foram forjadas ao longo de décadas de lutas frente ao esquecimento, à cegueira do Estado e à uma deriva fascista de violência.


Em um país onde o debate político, acadêmico e histórico têm metodicamente evitado falar do fascismo para se referir ao fenômeno da violência que o tem caracterizado nos últimos sessenta anos, e que se baseia na imagem institucional de ser a ‘democracia mais antiga e sólida do continente”, valeria a pena lembrar que se Petro é o primeiro presidente de esquerda não é porque outros candidatos da mesma ala, ou meramente liberais, não tenham tentado antes. Ele é o primeiro a ser eleito sem ser assassinado em sua campanha presidencial, um destino que Jorge Eliécer Gaitán não desfrutou em 1948, Jaime Pardo Leal em 1987, Luis Carlos Galán em 1990 ou Carlos Pizarro no mesmo ano. Menos afortunada foi a Unidad Popular (UP), um partido político que surgiu de um acordo fracassado com as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colômbia (FARC-EP), em 1985, e do Acordo de Paz com o M19, reunindo amplos setores da esquerda colombiana e seletivamente dizimado à soma de 4.616 assassinatos e 1.117 desaparecidos, sem contar os deslocados e exilados. Um genocídio político perpetrado, segundo a Jurisdicción Especial para la Paz, por “paramilitares e agentes do Estado, que agiram de forma maciça, generalizada, sistemática e seletiva contra estes coletivos”. E nenhuma sorte tiveram os líderes sociais, ambientais, camponeses, indígenas, afrodescendentes e membros desmobilizados das FARC-EP, que nos últimos seis anos, desde a assinatura do Acuerdo de Paz em 2016, e especialmente sob o governo de Iván Duque, foram assassinados às centenas. Portanto é necessário lembrar de duas coisas aqui: primeiro, que uma das formas de perpetuação e reencarnação do terror é quando ele não é nomeado, sendo que uma das faces do terror vivido na Colômbia é chamada de fascismo, um termo que não reduz sua compreensão – como muitos temem – mas expande e dá as dimensões legítimas de um dos modelos estratégicos de violência na Colômbia em grande parte do século XX até o presente momento do século XXI, cuja maior expressão têm sido a eliminação sistemática de seus oponentes. E, segundo, que a continuidade jurídico-institucional de nossas democracias pode coexistir com uma longa e profunda tradição autoritária, que de forma geral têm se manifestado na utilização de mecanismos de estado de exceção que suspendem a garantia de direitos (“exceção estatal como regra” , diria Benjamin) ou no recurso à forças paraestatais, demonstrando como essas supostas democracias talvez não só subsistam apesar de, mas também graças aos mecanismos e estratégias autoritárias de poder e violência que fincam suas bandeiras em montanhas de corpos, cadáveres, desaparecidos e exilados.


Diante dessas estratégias sem rosto aparente, como uma força espectral ameaçadora, um fascismo oculto mas decisivo em suas manifestações, como a criação, estigmatização e eliminação do inimigo interno, sendo este último o “castro- chavismo" inventado pelo ex-presidente Uribe, ou a negação da própria existência do conflito armado que animou parte da direita e da extrema direita na Colômbia – demonstrando até que ponto sua validade depende da perpetuação da guerra. É diante disso, dizemos, que surge o projeto político emancipatório e democrático do Pacto Histórico, que tem Francia Márquez como uma de suas principais referências.


3.

Francia Márquez nasceu em 1981 no sudoeste do país, em Suárez, Cauca, uma das regiões mais empobrecidas e afetadas pelas várias formas de violência que devastaram a Colômbia: violência colonial, violência política partidária, violência guerrilheira, violência paramilitar, a violência do narcotráfico, a violência do extrativismo, a violência da exclusão racial e a violência patriarcal. Na sua luta pela defesa do território contra o garimpo ilegal e a mineração em grande escala feita pelas multinacionais e suas práticas necropolíticas e de espoliações, Márquez têm sido até hoje constantemente alvo de ameaças de morte, e até mesmo de atentados perpetrados dos quais escapou ilesa (o último deles em 2019). Por sua férrea defesa da preservação territorial, vital para a permanência dos povos que a habitam, Francia tornou-se uma liderança ambiental fundamental não só para sua região, mas para todo o Pacífico colombiano, povoado majoritariamente por comunidades indígenas e afrodescendentes, palenqueras e raizales. Em outras palavras, um território historicamente habitado por comunidades que estavam ali muito antes da chegada dos colonizadores, muito antes do Estado, e por escravos que fugiram das mãos sádicas de seus senhores para fazer das densas selvas do Pacífico colombiano seu refúgio, contrariando o persistente imaginário fomentado pelo Estado de que se trata de um suposto território “desolado”, aberto à exploração desenfreada de seus ricos solos e águas. Um imaginário que transformou esta região no maior teatro de guerra entre 1995 e 2005.


Ainda assim, nas últimas décadas ficou claro, pelo menos para a Colômbia, que depois de centenas de anos de negação, exclusão e violência institucional as comunidades do Pacífico desenvolveram seus próprios modos de vida e epistemes para garantir a manutenção da vida – como na prática da obstetrícia ancestral – e uma rica cultura que é parcialmente reconhecida (e apreendida) pelos decretos de Patrimônio Imaterial da Humanidade da música da marimba ou da Festa de San Pancho. Mas agora não só a Colômbia mas o mundo inteiro sabe que se tratam de povos indígenas e afrodescendentes que não foram simplesmente escondidos ou paralisados pela violência. O que as eleições de junho passado na Colômbia demonstraram é como da criação de uma grande zona de sobrevivência –ou de um suposto território vazio– derivam as mais variadas formas de resistência e defesa, colocando-se não aquém, mas além do Estado, numa relação com o território como motor da sua luta e emancipação. Nas palavras da própria Márquez, pela potência de liberdade de seu território, e por sua resistência, essas comunidades aprenderam que não foram escravos, mas "povos livres que foram escravizados", uma simples mudança de fatores gramaticais que não só altera o produto como também redobra sua força.


Com a entrada de Márquez no campo da política institucional – primeiro como candidata presidencial dentro do Pacto Histórico e depois como vice-presidente de Petro –, comunidades que nunca antes se sentiram convocadas a fazer parte da política elitista e tradicional pela primeira vez viram nas urnas um espaço de luta e legitimidade, o que foi demonstrado no histórico aumento de 58% na participação do segundo turno das eleições presidenciais (a maior participação em meio século), com um aumento exponencial de participação na zona do Pacífico, como também em regiões onde o empobrecimento e a violência assolam há décadas: Tumaco, Barbacoas, El Tambo, La Chorrera, La Macarena são apenas alguns dos nomes de municípios onde a votação em geral atingiu máximas nunca antes vistas,  sendo também nomes que se referem a grandes marcos de violência devido a massacres, desapropriações e deslocamentos forçados. Um dado que deveria nos dizer algo sobre o que está em jogo na representação política em sua forma complexa de política de presença, e como isso se baseia, em uma parte mais que considerável, em quem ocupa os lugares de representação e suas demandas. O que ocorre quando a representação é expressão da luta e a força popular é capaz de reinventar a linguagem, os sentidos e os conceitos da política, uma política que neste caso invoca a força ancestral dos velhos, que convoca os ninguéns apagando noções identitárias de um sujeito votante de posse e pertencimento, criando um grande corpo genérico sustentado por uma noção sinestésica de uma vida digna, porque a vida pela qual lutam esses ninguéns, que não tiveram sua parte na distribuição do sensível e do habitável, é a vida que se saboreia e se sente no paladar. O que os ninguéns querem é “viver com gosto”, e viver com gosto é viver sem medo. Este é, segundo as investigações da antropóloga Natalia Quiceno, um modo de vida que os povos afro-colombianos forjaram para estabelecer seu próprio horizonte ético e estético de relações entre corpos, alegrias e desejos em meio à contradição e ao conflito. E é também um slogan que interfere na gramática melancólica da esquerda colombiana, em particular, e da esquerda latino-americana, em geral, sempre disposta a assumir a derrota e exercer oposição.


Ao contrário do “bom viver” como um modo de vida erguido pelas comunidades ameríndias andinas que responde a noções de comunidade, território, saberes ancestrais e subjetividades neles enraizadas, “viver com gosto” integra um aspecto fundamental dos corpos: o movimento (Quiceno). Um movimento marcado pela própria fluidez de um território atravessado por rios, onde a criação de laços e encontros depende de um constante embarcar-se para viver, escapar da morte ou regressar, ou seja, um movimento como expressão de uma liberdade radical para também lidar com o risco, o perigo e o conflito. Nesta vida que depende, como todas as outras, dos fluxos e dos rios, criaram-se novos territórios de existência, uma espécie de vida anfíbia que apela menos à ideia de território como algo pré-existente e fixo e mais a uma “zona em constante fabricação” e transformação que exige uma defesa inflexível. Defesa que fez do Rio Atrato o primeiro corpo d'água reconhecido na América por uma corte constitucional como entidade sujeita a direitos.


Muito além da eficácia eleitoral de um slogan de campanha, o "viver com sabor" que os povos do Pacífico colombiano nos mostra é então oferecido como um novo horizonte de vida digna para todo um país, contra as modalidades fascistas e disciplinares de gestão do movimento que impõe o controle, a paralisação, o corte de fluxos e a categorização dos corpos, no reconhecimento de que “todos somos regressos”, que sempre chegamos ou partimos.


4.

Durante uma de minhas estadas na Colômbia, em março de 2020, visitei uma área montanhosa onde me reencontrei com a beleza inesperada dos vaga-lumes, que não via desde a minha infância. Ao lado da minha sobrinha de 4 anos, que os via pela primeira vez, revivi a alegria da infância de encontrar essas luzes na escuridão mais profunda e tentar seguir o seu piscar, tentar descobrir, nos segundos do seu desaparecimento, em que ponto daquele espaço escuro e vazio haveria um lampejo de luz. E eles sempre brilhavam em lugares que não esperávamos, sendo que a cada aparição soltávamos em uníssono um grito lúdico e jubiloso: Lá estão eles, lá estão eles!


E embora não possamos descartar completamente o aviso de Pasolini em sua última entrevista, e esquecer que "estamos todos em perigo", parece que estamos mais bem preparados para enfrentá-lo e reverter sua sentença a tempo. Porque agora na Colômbia o povo está aí, o povo já não falta, o povo dos ninguéns brilha com sua luminescência singular, fazendo da intermitência de sua frágil luz uma comunidade incandescente de vaga-lumes em resistência.

REFERÊNCIAS
Didi-Huberman, Georges. Survivance des lucioles. Paris: Les Éditions de Minuit, 2009. (Trad. A sobrevivência dos vaga-lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011).
Quiceno, Natalia. Vivir Sabro
so. Luchas y movimientos afroatrateños, en Bojayá, Chocó, Colombia. Bogotá: Universidad del Rosario, 2016.
Notas Natália
NOTAS 
1. Pesquisadora e acadêmica. Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Universidade do Chile. Agradeço a Alejandra Bottinelli e Mary Luz Estupiñán por seus comentários e contribuições a este texto.
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