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O DILEMA DEMOCRÁTICO DO TETO
André SingerFernando Rugitsky[1]

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Uma polêmica que rondava o cenário brasileiro desde 2021 ganhou voltagem no início de junho passado. Com a prévia do plano governamental de Lula enviada aos seis partidos aliados ao PT, a saber, PSB, PC do B, PV, PSOL, Rede e Solidariedade, estes teriam que se pronunciar sobre a proposta de revogar o teto de gastos, que constitui, segundo o documento, o jeito de “recolocar os pobres e os trabalhadores no orçamento”.[2] Adiantando-se ao parecer das agremiações coligadas, no dia em que as diretrizes petistas vazaram, a Bolsa caiu e o dólar subiu, reagindo ao que o mercado denomina “aumento do risco fiscal”. O confronto entre a necessidade social do dispêndio público e a desconfiança que esta causa aos investidores privados constituirá o centro da encruzilhada democrática no provável terceiro mandato do ex-presidente. Este artigo pretende mostrar por que o assunto é crucial nesta etapa em que livrar-se do neoliberalismo, não só no Brasil, parece ser condição de sobrevivência da democracia.


Não por acaso, em meados de abril, o Financial Times (FT), uma das bíblias dos capitalistas internacionais, havia sintetizado o desacordo de fundo. Reportagem assinada por Bryan Harris, correspondente do jornal inglês em São Paulo, apresentava de maneira resumida o duelo entre formuladores do PT (Partido dos Trabalhadores) e economistas vinculados aos mercados financeiros. Nela, falando pelo PT, Guilherme Mello, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), defendeu a substituição do teto por regras fiscais compatíveis com as necessidades de investimento por parte do Estado brasileiro. O regramento estabelecido em 2016 gerou “mais pobreza, mais miséria, mais inflação e mais fome”, disse Guilherme. Defendendo as cores do dinheiro, Sergio Vale, economista-chefe da MB associados, argumentou que aumentar o investimento público e social sem um forte ajuste no resto do orçamento agravaria o quadro econômico. “Abolir o teto seria bom apenas se houvesse uma regra melhor”, afirmou Sergio, “mas isso não parece provável”.[3]


Com o passar do tempo, a divergência vai-se tornar a chave do próximo período. Claro que vencer a eleição e superar as ameaças golpistas que Bolsonaro copia de Trump não será fácil e vai requerer capacidade estratégica redobrada das forças democráticas. Os desafios, porém, estão longe de terminar na almejada posse pacífica do vencedor. A disputa sobre a política econômica, enraizada em diferentes perspectivas de classe, colocará um dilema para a jovem e instável democracia brasileira.


O busílis está no destino da Emenda Constitucional (EC) 95, que conteve de maneira draconiana o gasto público até 2036. Como se recorda, promulgado pelo Congresso Nacional durante o consulado de Michel Temer, o chamado teto de gastos foi uma das consequências estruturais do impedimento de Dilma Rousseff. Item principal do opúsculo Uma ponte para o futuro, programa oficial do MDB para o golpe parlamentar, a EC bloqueava por pelo menos duas décadas qualquer tentativa de recolocar o Brasil na trilha do desenvolvimento. Juntamente com a reforma trabalhista e a da Previdência (alavancada pelo atual presidente), representaram, na prática, uma pinguela para o abismo.[4] Bolsonaro, que simboliza o poço sem fundo em que caímos, aduziu a autonomia do Banco Central como contribuição própria para salgar a terra de modo que o desenvolvimentismo nunca mais ousasse erguer a cabeça por aqui.


Dentre as quatro leis sagradas do atraso, a do teto é a pedra de toque. Com frequência descrita como mero instrumento para conter o aumento supostamente explosivo do gasto público, forçando uma discussão de prioridades, é bem mais do que aparenta. A regulamentação paralisa, em termos reais, o montante de recursos que o Executivo pode empenhar, destoando das mais rigorosas regras impostas a nações atacadas de austeritite. O congelamento significa que, caso a economia cresça, o percentual do PIB que caberá ao orçamento cairá, pois este estancou nos limites de 2016, devendo ser reajustado apenas pela inflação.


Estimativas de Esther Dweck, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, publicadas no livro Economia Pós-Pandemia, sugerem que os gastos primários (isto é, descontando-se o pagamento de juros da dívida pública) ameaçam cair de cerca de 20% do PIB, em 2017, para pouco mais de 13%, em 2036.[5] No macabro sonho neoliberal não cabem o SUS, as universidades federais e tantas outras instituições que visam garantir os direitos inscritos na Carta de 1988.


Pior. A EC 95 não se restringe a reduzir o tamanho do Estado. Possui destacado efeito macroeconômico de curto prazo. Ao comprimir o dispêndio público, faz com que um dos principais motores do crescimento no capitalismo contemporâneo passe a funcionar como freio, travando o PIB e dificultando a criação de empregos e a elevação da renda do trabalhador. Cálculos da Instituição Fiscal Independente do Senado indicam que entre 2017 e 2019, no triênio inicial da EC e antes do choque provocado pela pandemia, a gestão fiscal reduziu o crescimento do PIB, enquanto entre 2003 e 2014 ela o acelerava.[6]


Em 2020, o teto foi flexibilizado por conta da COVID-19 e a orientação fiscal assumiu, transitoriamente, caráter expansionista. Mas em 2021, o bloqueio voltou a se impor. Mantida a baliza neoliberal, a economia tenderá a andar de lado, sem produzir os postos de trabalho e os salários indispensáveis para consolidar a opção democrática que a maioria do eleitorado, a julgar pelos sinais que se acumulam nas pesquisas de intenção de voto, deverá fazer nos próximos dias 2 e, quiçá, 30 de outubro.


O IMPASSE NORTE-AMERICANO

No mundo todo, o árido debate fiscal adquiriu centralidade política, com os gastos públicos passando a assumir lugar prioritário entre as armas para combater a ascensão da extrema-direita. Nos Estados Unidos, cujo caso nos interessa de perto, Joe Biden, logo que assumiu, propôs um conjunto audaz de planos para reconstruir o país, ao custo de 7 trilhões de dólares. Perspicaz, o presidente norte-americano, quadro de origem sabidamente convencional, colocou na equipe econômica gente que criticava a austeridade. Queria sinalizar a urgência das medidas a serem tomadas. A sua agenda de dispêndio estatal era tão avançada que foi vista como o fim do neoliberalismo. O “fundamentalismo de mercado [...] está sendo substituído por algo muito diferente”, escreveu Dani Rodrik, laureado professor de Harvard.[7]


As propostas de Biden foram, de início, divididas em três: o American Rescue Plan (plano de resgate), o Jobs Plan (plano de empregos) e o Families Plan (plano das famílias).[8] Até o momento em que escrevemos (julho de 2022), as duas primeiras foram aprovadas, mas a terceira estancou. Em conjunto, destoavam do receituário propagado pelos neoliberais, principalmente por dois motivos. Primeiro, visavam a aquecer deliberadamente a economia para permitir que a classe trabalhadora tivesse condições de barganhar melhores salários. Segundo, colocavam-se na contracorrente da tendência de mercantilização da reprodução social, ao focar na economia do cuidado e definir como metas o acesso gratuito e universal às creches e a gratuidade dos community colleges. O economista francês Cédric Durand (2021) chegou a argumentar que se tratava de um choque Volcker às avessas.[9] Em 1979, Paul Volcker, então presidente do Fed, determinou uma elevação súbita e drástica dos juros, passo significativo na implantação do neoliberalismo.


Infelizmente, Rodrik e Durand se precipitaram. A ousadia de Biden era verdadeira, mas as resistências que encontrou o colocaram num impasse amargo e parecido ao dos antecessores. A recuperação que se seguiu à crise de 2008, nos EUA, não foi capaz de oferecer alívio suficiente à população e os sinais de mal-estar multiplicaram-se. Vale lembrar que no mandato inaugural de Barack Obama (2009-2012), os benefícios da recuperação econômica foram distribuídos de forma extraordinariamente concentrada. Incríveis 95% do aumento da renda foi apropriado pelo percentil dos mais ricos.[10] Era o resultado não apenas da socialização de perdas representada pelo socorro às instituições financeiras, mas também da fragilidade das classes trabalhadoras, incapazes de conquistar para si uma fatia maior do bolo.


Tal precariedade trabalhista, por sua vez, era a combinação de décadas de enfraquecimento que se assentava em transformações como o declínio da sindicalização, o deslocamento da indústria para a Ásia e a polarização da estrutura ocupacional entre um pequeno segmento bem-sucedido e uma vasta parcela carente. Tais transformações de fundo combinaram-se, então, com o choque conjuntural resultante da crise que eclodiu em 2008. Em pouco mais de um ano, a taxa de desemprego dobrou (de cerca de 5% para 10%) e o subemprego, isto é, a situação das pessoas involuntariamente em turnos parciais e as que desistiram de procurar trabalho, elevou-se de cerca de 4% para 7%.[11]


A penúria não se distribuiu de maneira heterogênea pelo território. Concentrou-se nos chamados rustbelts, as comunidades decadentes em torno dos antigos polos industriais que foram o palco principal do uso de opioides e da epidemia das chamadas “mortes por desespero”.[12] Em caráter inédito nas nações ricas, alguns grupos -- em particular os homens brancos sem diploma universitário -- viram a expectativa de vida declinar por mais de uma década.


Obama foi incapaz de fazer frente às múltiplas demandas. Após um breve parênteses keynesiano, em 2008 e 2009, com o qual logrou evitar o colapso, a lógica da austeridade voltou a prevalecer. Até 2015, a orientação fiscal foi contracionista, levando os dois mandatos obamistas inteiros para que a taxa de desemprego retornasse ao patamar anterior a 2008. O subemprego, no entanto, inclusive no ano de 2016, persistia em patamar superior ao do pré-crash.


Reeleito em 2012 apesar de 8% de desemprego, Obama deixou o abacaxi da precariedade para a candidata Hillary, na eleição seguinte. O eleitorado tinha dado um voto de confiança ao presidente que, em 2009, conseguira manter viva a indústria automobilística, simbolizada pela continuidade da General Motors, mas a paciência se esgotara. A questão é, embora o segundo mandato de Obama terminasse com a taxa de desempregados em 4,7%, que os postos criados foram, sobretudo, no setor de serviços, concentrados nas áreas urbanas populosas e com salários relativamente mais baixos.[13] As indústrias localizadas no interior, que forneciam empregos estáveis e de boa qualidade, continuaram a fechar ou a se mecanizar – processo acentuado pela chamada mini-recessão de 2016.[14] Por isso, o apoio a Trump, em boa parte mantido na eleição de 2020, veio dos homens brancos de cidades não-metropolitanas.[15]


O tema da desindustrialização ganhou prioridade e, no seio do mainstream, a ideia de estagnação secular passou a ser discutida acaloradamente. Para combatê-la, Trump autorizou aumento do déficit público, mas o fez cortando impostos para os mais ricos. Como é típico dos governos republicanos desde Reagan, a política fiscal expansionista concentrou renda e teve impacto reduzido sobre a atividade econômica, ainda que o desemprego tenha seguido sua trajetória de queda.


Os menos atentos às condições subjacentes podiam deixar-se levar pela impressão de que os EUA andavam bem, até a pandemia, com taxa de desemprego reduzida, inflação baixa e crescimento do PIB há cerca de uma década. Ocorre que o processo, vagaroso, não oferecia um horizonte de superação das mazelas que afligiam a sociedade. A agenda levantada por Biden tinha precisamente como objetivo responder a esse desalento. Lembrando-se que não era a sobrevivência da máquina clintoniana que estava em jogo e sim a do regime democrático.


As resistências que algumas das medidas propostas por Biden vem enfrentando por parte de setores conservadores têm restringido o efeito da guinada que se esperava, comprometendo, inclusive, a superação de Trump. A parte em execução permitiu a retomada parcial das atividades depois do shutdown pandêmico, para usar a expressão de Adam Tooze. Houve criação de empregos e até certo fortalecimento de segmentos da classe trabalhadora. Mas a sabotagem, em particular ao American Families Plan, que teria efeitos potencialmente estruturais e duradouros, tem contribuído para a sobrevivência do trumpismo, que pode até prevalecer nas eleições midterm em novembro próximo. Em suma, o caso norte-americano ensina que se os democratas do mundo não forem capazes de entregar com rapidez o que prometeram, o autocratismo tende a recrudescer.


Por outro lado, a aceleração da alta de preços, turbinada desde o início da Guerra da Ucrânia, em fevereiro, acentuou a perda de popularidade por parte de Biden. Para uma parcela dos analistas, em geral os mais conservadores, elevação advém não apenas do aumento do petróleo e da desorganização das cadeias de suprimentos, como do excesso de gasto público. O argumento é que a inflação resulta do expansionismo fiscal que se iniciou com a pandemia e foi intensificado por Biden. Em particular, apontam para um superaquecimento do mercado de trabalho como vetor, por meio dos salários, do círculo inflacionário.


Em outras palavras, os neoliberais têm se aproveitado da inflação para defender a volta da austeridade. As evidências, no entanto, sugerem que a aceleração dos preços tem outras causas e enfrentá-la com cortes tende a aprofundar os problemas.[16] Após décadas de avalanche neoliberal e do estreitamento do horizonte de alternativas, o desafio do campo democrático é formular instrumentos que estejam à altura da novidade fascista.


A inflação, que é um relevante fator eleitoral, reforça, aliás, a importância do “American Families Plan” bloqueado no Congresso. Concentrando o núcleo mais avançado, em termos sociais, da agenda de Biden, ele ajudaria as camadas populares a atravessar a onda inflacionária, atenuando os efeitos da alta dos preços sobre seu poder de compra. Por isso, o senador Bernie Sanders tem defendido que o partido reapresente no Congresso as propostas bloqueadas. “Está na hora de mostrar de que lado estamos”, escreveu no The Guardian em meados de junho.[17] Se a opção, ao contrário, for a de jogar o país na recessão para conter os preços, o resultado pode ser a volta de Trump em 2024, “com aspirantes a autocratas de todas as partes do mundo” com “carta branca para fazer o que quiserem”, conforme assinalou o colunista do Financial Times, Martin Wolf na hipótese de tal retorno acontecer.[18]


A extrema-direita pós-factual, para usar uma expressão de Wolfgang Streeck, que nasceu com o Brexit em 2016 e se estendeu para o mundo pelas mãos de Trump e Steve Bannon, veio para ficar, como revela a recente competitividade da candidatura de José Antonio Kast, no Chile, e Rodolfo Hernández, na Colômbia. Se as coalizões democráticas não produzirem medidas efetivas, acabarão sem argumentos para provar aos setores populares que o jogo democrático vale a pena, adubando o solo de onde brota o autoritarismo.


URGÊNCIA BRASILEIRA

De maneira análoga, no Brasil, não é o futuro do lulismo, mas os alicerces da democracia que se encontram em questão. Em 2018, milhões de eleitores nas periferias das metrópoles escolheram Bolsonaro, revoltados pela piora das condições desde 2015. O voto de esperança que a chapa Lula-Alckmin receberá em outubro precisa ser respondido com atendimento às demandas emergenciais dos setores populares. Como vemos, o neoliberalismo não acabou, mas a natureza do embate se alterou com a entrada em cena de componentes fascistas, exigindo uma postura audaz e rápida dos que apostam no regime democrático.


Na economia global, prevalece a incerteza sobre consequências de médio prazo da guerra da Ucrânia. Não se sabe a velocidade de recomposição das cadeias de suprimento, ainda chacoalhadas pela pandemia. É plausível que a continuidade inflacionária nas nações ricas reduza a liquidez no mundo e piore a situação brasileira, com uma eventual desvalorização cambial, empurrando o BC a subir ainda mais os juros e, em consequência, reter o crescimento.


No entanto, mesmo se a inflação mundial ceder, puxada pelos preços dos produtos manufaturados, e as commodities exportadas pelo Brasil seguirem em alta, a situação local será delicada. Vale lembrar que nos primeiros quatro meses de 2022 ocorreu um boom de commodities como não acontecia há meio século, conforme indicam os economistas Bráulio Borges e Ricardo Barboza.[19] É possível, portanto, que o país se encontre, coincidentemente, em situação similar à que permitiu a ascensão do lulismo a partir de 2004. No entanto, naquela ocasião, a bonança das exportações aumentou as receitas e permitiu acelerar o crescimento e a geração de empregos sem reduzir o superávit primário. Isto é, foi viável expandir a ação do Estado porque havia mais dinheiro entrando nos cofres do tesouro, sem incrementar a dívida.


Com a emenda 95, contudo, mesmo com uma eventual majoração de receitas, o montante disponível seguirá limitado, pois o regime fiscal isola a economia dos eventuais impulsos positivos vindos de fora. No fundo, sejamos claros, o teto foi criado para evitar que, em circunstâncias favoráveis, outro “milagre” lulista de reduzir a pobreza sem confrontar o capital pudesse se produzir. Ao mesmo tempo, retira do Executivo instrumentos para lidar com impulsos negativos vindos de fora. Eventuais bonanças são desprezadas, enquanto as tempestades são acolhidas de braços abertos.


Se um eventual boom de commodities não pode ser aproveitado e as turbulências dos ciclos capitalistas não têm como ser combatidas, as melhorias tão aguardadas, e com as quais Lula é identificado, se inviabilizam. O resultado político não se faria esperar: a alternativa democrática enfrentaria enfraquecida o bolsonarismo nas nossas midterms, as municipais de 2024.


Vê-se ainda que a pressão do capital no sentido do corte de gastos tende a aumentar, como acontece, por reação quase automática, às liberalidades que o Executivo adota em ano de pleito presidencial. Tome-se como exemplo o subsídio de até 46 bilhões de reais para o consumo de combustíveis, energia elétrica, comunicações e transportes, decidido em junho e que deveria aliviar os contínuos aumentos da gasolina e do diesel. Até as pedras sabem que se trata de mais uma das medidas voltadas a favorecer o desempenho de Bolsonaro nas urnas eletrônicas (que ele, aliás, despreza), como foram o Auxílio Brasil, a liberação do FGTS, a anistia do FIES etc. A cada uma delas, sobe a expectativa do capital por um corte correspondente nas despesas do Estado no ano que vem.[20]


Afinal, para os capitalistas, a estabilidade das contas públicas vem antes de qualquer consideração política ou social. Segundo Lula, os banqueiros e empresários com os quais se reúne só querem saber de responsabilidade fiscal, perguntando se ele “vai manter ou não o teto de gastos”.[21] Com efeito, o mantra do equilíbrio orçamentário, cuja inviolabilidade, aliás, foi o centro da pregação histórica de várias personagens agora cogitadas para formular o programa definitivo da chapa democrática, volta a figurar no âmago da avaliação do mercado.


Sob a rubrica de “consolidação fiscal”, a defesa do teto funciona como chantagem: caso não se dê garantias, os capitais ficarão nervosos e irão embora. Sergio Vale já avisou no FT que, a seu ver, a situação fiscal hoje é pior do que a que Lula herdou em 2003. “Vamos terminar o ano com uma dívida ao redor de 84% do PIB, um déficit primário acima de 1% do PIB e juros muito altos. Não adianta o governo querer gastar, se não existe espaço para isso”, declarou.


No entanto, espaço existe, como mostrou o auxílio emergencial adotado em 2020. Naquela ocasião, a flexibilização do teto não apenas atenuou a queda do PIB como, também, contribuiu para que o aumento da relação dívida/PIB fosse contido, segundo cálculos do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo.[22] O exemplo revela o fundo ideológico da defesa da austeridade. Se a preocupação fosse mesmo o endividamento, seria possível travar uma discussão técnica sobre as alternativas disponíveis – várias delas menos custosas, econômica e socialmente, do que a inscrita na EC.


A defesa teimosa da austeridade assenta-se, como notou Michal Kalecki (1899-1970), no interesse em reduzir o tamanho do Estado, abrindo fronteiras para a apropriação privada de lucros e fortalecimento do controle do capital sobre a dinâmica macroeconômica. O economista polonês notou, no clássico artigo “Aspectos políticos do pleno emprego” (1943), que os capitalistas resistiam ao alargamento da ação estatal para manter seu “poderoso controle indireto sobre as políticas do governo”. As propostas liberais são, segundo a interpretação dele, uma forma de disciplinar a democracia pelo mercado: “tudo que pode afetar o nível de confiança precisa ser cuidadosamente evitado porque pode causar uma crise econômica”.[23]


Convencionalmente, o clamor por austeridade tende a ser atendido em inícios de mandatos presidenciais. Premido pela necessidade de ganhar votos, o Executivo solta as rédeas do Tesouro no período em que as urnas são acionadas e faz um ajuste fiscal no início da fase seguinte. A academia norte-americana deu ao fenômeno o nome de political business cycle, vinculando à dinâmica eleitoral o conflito desvelado por Kalecki.


Lula sofreu a pressão correspondente quando assumiu a Presidência em 2003, levando-o a cortar na carne, sob a forma de um ajuste considerado duríssimo. Dilma fez um segundo ajuste, quando chegou à cadeira presidencial em 2011. Ocorre que, agora, se Lula não aproveitar a potência que trará dos sufrágios amealhados para romper a camisa de força fiscal, perderá um tempo nevrálgico. O risco é alto, uma vez que não revogar o teto implicaria assumir o ônus de impor a austeridade a uma população desamparada e desiludida pelos próximos quatro anos. O respiro democrático precisa que o teto seja revogado logo no primeiro semestre de 2023, quando a coalizão vitoriosa terá força máxima no Congresso. Depois, o inevitável desgaste de administrar uma sociedade arrebentada pela década perdida (mais uma) cobrará o preço em matéria de apoio e negociação partidária.


Como as bases fiscais do Estado foram deterioradas pela estagnação que começou em 2014 e segue (tendo de permeio a recessão de 2015-2016), será necessário combinar a revogação do teto com uma repactuação tributária que permita conferir progressividade ao sistema e cobrar dos mais ricos que contribuam para a saída da crise. Diversas pesquisas têm mostrado que parte da explicação para os níveis extraordinários de desigualdade que assolam a América Latina deve-se à excessiva dependência da região de impostos indiretos, que geralmente recaem desproporcionalmente sobre os mais pobres, e à timidez da tributação direta, sobre a renda e o patrimônio. Taxar a distribuição de lucros e dividendos – cuja isenção é uma verdadeira jabuticaba que data de 1995 –, aumentar as alíquotas dos impostos sobre a herança, aprofundar a progressividade do imposto de renda: há muitas alternativas disponíveis para evitar que, uma vez mais, a conta da crise seja entregue para as classes populares.[24]


Com tal repactuação tributária, a capacidade de gasto poderá ser compatibilizada com uma trajetória estável para a dívida pública, evitando um engessamento da concentração de renda pela canalização do fundo público para os detentores da dívida e a fragilização do Estado diante dos rentistas. A alternativa de substituir a regra atual, simplesmente, por alguma austeridade atenuada, impossibilitando o poder público de agir no curto prazo, representaria mais do mesmo.


A posse de Lula não desarmará, por si só, a ameaça autoritária e não desarticulará em um passe de mágica a base militante e organizada da extrema-direita. Fazer frente ao autocratismo exigirá melhorar as condições de vida deterioradas, recuperando a criação de empregos e aumentando a renda. Não há como conciliar tal tarefa com o atendimento das demandas por austeridade.


Austeridade, aliás, que não entrega o que promete. O golpe parlamentar e a aprovação do teto lograram recuperar os índices de confiança e os preços das ações negociadas na Bolsa de Valores, mas a população segue esperando os frutos da estratégia. O teto não é apenas uma emenda constitucional: trata-se de um mecanismo de sabotagem que visa desconstruir o pacto de 1988 e abre uma avenida para o bolsonarismo. Voltamos a Kalecki: “a luta das forças progressistas pelo pleno emprego é ao mesmo tempo uma maneira de prevenir o retorno do fascismo”.[25]


Se para derrotar a ameaça autocrática impõe-se a conformação de uma aliança interclassista, tal como a que ocorreu nos EUA para tirar Trump da Casa Branca, deve ter-se claro os termos da respectiva negociação interna. Nos EUA, graças ao levante do Black Lives Matter, em junho de 2020, o peso relativo de Bernie Sanders e do DSA (Democratic Socialists of America) cresceu. Não por acaso o pacote apresentado por Biden em abril de 2021 foi considerado por Sanders, se aprovado, como o maior avanço em favor da classe trabalhadora desde o New Deal de Franklin Roosevelt, presidente entre 1932 e 1944.


Sua implementação, contudo, segue sofrendo resistências no interior do próprio Partido Democrata, para não falar do Republicano. No Brasil, como de hábito, o jogo é mais duro e a pressão para inibir a necessária ousadia futura começou antes mesmo do pleito. Trata-se de um conflito que recoloca questões de classe no núcleo do combate ao autocratismo de viés fascista. O desfecho do dilema balizará a reconstrução da democracia brasileira.

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NOTAS
1. Versão modificada de texto publicado no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, em 19/06/2022. Enviado para Estilhaço em meados de julho de 2022.
2. “Diretrizes para o Programa de Reconstrução do Brasil, Lula 2023-2026”, junho de 2022, p. 10, disponível em: https://download.uol.com.br/files/2022/06/526198909_2022.06.06_diretrizes-programa-CC-81ticas_texto-base.pdf.
3.
 Bryan Harris (2022). “Adviser to Lula’s party urges overhaul of fiscal rules to raise spending in Brazil” Financial Times, 10/04/2022, disponível em: https://www.ft.com/content/f6b1c1e7-eefd-4965-bdee-ccd207326b45?emci=a8ca2018-a3b9-ec11-997e-281878b83d8a&emdi=836f6a2c-a4b9-ec11-997e-281878b83d8a&ceid=5568133. Tradução livre dos autores.
4. Adaptamos o título de Leda Paulani. “Uma ponte para o abismo” In I. Jinkins et allii (Orgs.) Por que gritamos golpe? São Paulo, Boitempo, 2016.
5. Esther Dweck. “Por que é imprescindível revogar o teto de gastos?”. In: E. Dweck, P. Rossi e A. L. M. de Oliveira (Orgs.). Economia Pós-Pandemia: desmontando os mitos da austeridade fiscal e construindo um novo paradigma econômico. São Paulo, Autonomia Literária, 2020, p. 85.
6. IFI, Estudo Especial número 17, 22 de dezembro de 2021, gráfico B1, página 19.
7. Dani Rodrik. “Lições dos experimentos americanos”. Valor (13/09/2021). Em:  https://valor.globo.com/opiniao/coluna/licoes-dos-experimentos-americanos.ghtml/.
8. Sobre as propostas, ver Fernando Rugitsky. “Jogo aberto: a economia política do interregno” e André Singer e Hugo Fanton. “Pandemia e ‘great reset’ capitalista: uma janela no interregno?”, ambos em André Singer, Cicero Araújo e Fernando Rugitsky (Orgs.). O Brasil no Inferno Global: capitalismo e democracia fora dos trilhos. São Paulo, FFLCH (acesso eletrônico aberto), 2022.
9. Cédric Durand. “1979 in reverse”. Sidecar/NLR, 01/06/2021.
10. Emmanuel Saez. “Striking it richer: the evolution of top incomes in the United States”, RealWorld Economics Review, 65, 120-128, 2013.
11. Dados disponíveis em: https://fred.stlouisfed.org/.
12. Ver a respeito Anne Case e Angus Deaton. Deaths of Despair and the Future of Capitalism. Princeton, Princeton University Press, 2020.
13. Ver Lance Taylor e Ozlem Omer. “Race to the bottom: low productivity, market power, and lagging wages”, International Journal of Political Economy, 48 (1), 1-20, 2019, e Lance Taylor e Ozlem Omer. “Where do profits and jobs come from? Employment and distribution in the US economy”, Review of Social Economy, 78 (1), 98-117, 2020.
14. Ver Adam Tooze. “Janet Yellen and Mario Draghi have one last job”, Foreign Policy, 01/04/2021, disponível em: https://foreignpolicy.com/2021/04/01/janet-yellen-mario-draghi-italy-united-states-technocrats-capitalist-democracy/.
15. Ver Eduardo Porter (13/12/2016). “Where Were Trump’s Votes? Where the Jobs Weren’t”. New York Times (13/12/2016), disponível em: https://www.nytimes.com/2016/12/13/business/economy/jobs-economy-voters.html.
16. Apesar do coro sobre o retorno da temida espiral salários-preços, que estaria na base da inflação dos anos 1970, os salários reais estão crescendo bem abaixo da inflação nos EUA e o aumento dos preços tem sido puxado por uma elevação extraordinária das margens de lucro – que se soma ao choque dos preços dos combustíveis. Ver entre outros Josh Bivens. “Corporate profits have contributed disproportionately to inflation: how should policymakers respond?”, disponível em: https://www.epi.org/blog/corporate-profits-have-contributed-disproportionately-to-inflation-how-should-policymakers-respond/.
17. Bernie Sanders. “Democrats risk a crushing defeat this year: they must change course now”, The Guardian, 16/06/2022.
18. Martin Wolf. “Sobrevivência da democracia nos EUA”. Valor, 12/05/2021, disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/a-sobrevivencia-da-democracia-nos-eua.ghtml.
19. Ricardo Barboza e Bráulio Borges. “O PIB commoditizado”. Valor, 17/05/2022, disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-pib-commoditizado.ghtml.
20. Quando este artigo já estava concluído, o Congresso passou a discutir nova PEC, apelidada de Kamikaze, autorizando Bolsonaro a gastar mais de 40 bilhões de reais às vésperas da eleição para ampliar de 400 para 600 reais o Auxílio Brasil e aumentando o número de famílias contempladas para quase 20 milhões. Além disso, a medida elevava o valor do Vale-gás e beneficiava caminhoneiros, taxistas, idosos e agricultores familiares.
21. Victoria Azevedo. “Lula diz que PSBD ‘acabou’ e ironiza ‘golpe’ de Bolsonaro”. Valor, 01/06/2022, disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2022/06/01/lula-diz-que-psdb-acabou-e-ironiza-golpe-de-bolsonaro.ghtml.
22. Marina Sanches, Matias Cardomingo e Laura Carvalho. “Quão mais fundo poderia ter sido esse poço? Analisando o efeito estabilizador do Auxílio Emergencial em 2020”. Nota de Política Econômica no. 007, MADE/USP, 08/02/2021, disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/quao-mais-fundo-poderia-ter-sido-esse-poco-analisando-o-efeito-estabilizador-do-auxilio-emergencial-em-2020/.
23. Michal Kalecki. “Political aspects of full employment”. The Political Quarterly, 1943, p. 325. Tradução livre dos autores.
24. Ver, entre outros, Sérgio Gobetti e Rodrigo Orair. “Progressividade tributária: a agenda negligenciada”. IPEA Texto para Discussão, no. 2190, 2016, disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2190.pdf.
25. Michal Kalecki, op. cit., p. 331.
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