top of page

O QUE VEIO ANTES DO FASCISMO? O RACISMO E A VIA COLONIAL DE OBJETIVAÇÃO DO CAPITALISMO BRASILEIRO
Deivison Faustino


PRELÚDIO COGITATIVO: O QUE VEM ANTES DO FASCISMO?

Como caracterizar, em termos sociológicos, o momento atual do Brasil? O tempo presente, indiscutivelmente marcado pela ascensão do bolsonarismo militante, desafia as definições políticas usuais e inspira novas nomenclaturas ou, pelo menos, a atualização das antigas ao colocar em evidência uma série de transformações e crises de diversas ordens. Um período marcado pela manipulação ufanista de amplos setores populares em torno de um projeto ornitorrinco que articula um liberalismo radical com um tipo particular de conservadorismo nos costumes, mobilizando, ao mesmo tempo, o nacionalismo entreguista e um fundamentalismo religioso, ávido pela eliminação das diferenças de credo. Um momento que agrega seitas evangélicas de inspiração sionista, frações do empresariado varejista e do agronegócio, milícias urbanas fortemente armadas, ligadas ou não à corporações militares, com grupos (neo)nazistas e integralistas.


Um processo peculiar para o qual, algumas das "velhas" categorias sociológicas parecem apresentar limites analíticos diante da óbvia constatação de uma rearticulação transnacional das forças políticas que defendem o status quo ou, pelo menos, reagem às possíveis ameaças - mesmo que simbólica -  à sua transformação. Assim, palavras como fascistas, neofascistas, neoconservadorismo, ultraliberalismo, nova direita, entre outras passam a permear o vocabulário político e midiático com vistas à uma possível delimitação do fenômeno em curso. E assim, vai se consolidando um esforço coletivo e necessário de nomear - e, quem sabe, exorcizar - alguns desses fantasmas que têm nos assombrados.


O grande paradoxo deste empreendimento é que, muitas vezes, o importante ato da nomeação pode ocultar aquilo que deseja revelar, justamente por deixar escapar aquilo que lhe é peculiar e intrínseco: a singularidade do objeto nomeado. Assim, neste artigo, mobilizado pela pergunta chave do presente Dossiê: "O que vem depois do fascismo?” problematizo o uso da categoria fascismo nas recentes explicações do contexto atual. Para dar conta desse objetivo, tomo a liberdade propor uma mudança no foco temporal da pergunta do depois para o antes, de modo analisar o período atual como resultado de um processo social mais amplo que remete à estruturação do capitalismo no Brasil, passando por um elemento, por vezes ignorado nos debates sobre o fascismo: o colonialismo.


1.ANTES DO FASCISMO: O PARADOXO LOCKIANO E A INFLEXÃO COLONIAL

O autoritarismo político amparado no fundamentalismo religioso, na violência sistêmica e na afirmação de uma identidade que exclui a diferença não é uma invenção dos regimes fascistas, observada na Europa do início do século XX. Séculos antes do fascismo se apresentar como alternativa autoritária  às crises do liberalismo e do cientificismo racionalista, o sistema mundo capitalista, em ascensão, viu emergir nas entranhas do mercantilismo, a placenta de enxofre que nutriu, a democracia burguesa e as suas aspirações universalistas e, ao mesmo tempo, a sua contraparte diferencialista e totalitária. Refiro-me ao colonialismo.


O sistema colonial foi um importante elemento da expropriação primária necessária ao desenvolvimento do modo de produção capitalista de produção. No capítulo 25, de O Capital intitulado, “A teoria moderna da colonização", K. Marx fala da importância das colônias para a universalização do Capital e, sobretudo, para o acesso das metrópoles europeias às matérias-primas necessárias ao desenvolvimento do capitalismo:


“O sistema colonial amadureceu o comércio e a navegação como plantas num hibernáculo [...] Às manufaturas em ascensão, as colônias garantiram um mercado de escoamento e uma acumulação potenciada pelo monopólio do mercado. Os tesouros espoliados fora da Europa diretamente mediante o saqueio, a escravização e o latrocínio refluíram à metrópole e lá se transformaram em capital. [...] Hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, ao contrário, é a supremacia comercial que gera o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenhava nessa época. [...] Tal sistema proclamou a produção de mais-valor como finalidade última e única da humanidade” (Marx, 2013: 835-850)


Há consequências importantes a se extrair dessa conclusão: a determinação reflexiva entre capitalismo e colonialismo e, sobretudo, a relevância do racismo para o desenvolvimento e consolidação do capital (Faustino, 2021c). Karl Marx, objetivando exemplificar o caráter social da produção de valor, afirmou, em outro lugar, que “um negro é um negro. Só em determinadas relações é que se torna escravo” (Marx, 1849: 161).


Frantz Fanon, porém, foi mais longe que o Mouro ao sugerir ser, apenas, em determinadas circunstâncias históricas que alguém é negro, ou seja, que é visto em termos raciais. Para ele, “é o branco que cria o negro (nègre)” (Fanon, 1968:32) no exato momento em que não reconhece a sua humanidade (Faustino, 2013). Esse não-reconhecimento foi peça fundamental para a emergência e consolidação da noção moderna de sujeito.


Sem a expropriação das terras indígenas e a escravidão colonial as relações capitalistas de produção nos países clássicos não teriam desenvolvido a ponto de concorrerem vitoriosamente com os antigos modos de produção e, com isso, criarem o caminho para a consolidação das noções de democracia, liberdade e igual dignidade como pressupostos humanos.  Entra em cena, aqui, um fenômeno que tenho nomeado como paradoxo lockeano.


O "paradoxo" expresso por Locke consiste na contradição implícita ao contratualismo liberal em sua coabitação harmônica, mas não assumida, com o tráfico escravagista. John Locke, considerado como um dos pais da democracia e do direito moderno, entendia a liberdade como atributo ontológico inerente a todos os homens. No entanto, não se furtou a fazer fortuna investindo em empresas holandesas traficantes de escravos. O aparente paradoxo – que na verdade é uma contradição – vem de uma pergunta nem sempre feita quando se estuda o liberalismo: como pôde este filósofo criticar a escravidão e defender a liberdade com tanto afinco e ainda assim, ser um entusiasta e beneficiário direto da escravidão?


A resposta dada pela classe social representada por Locke foi simples: o ser humano é livre por natureza e não pode ser escravo, mas o negro… não é humano (Faustino, 2021).  O escravo moderno não podia ser reconhecido como parte dessa comunidade de contratantes que estruturou o pacto social burguês, sob a pena de poder reivindicar para si o status a ela reservado e, com isso, desmantelar por completo as bases da expropriação originária que compõem a "assim chamada acumulação primitiva de capitais".


Desse modo, a burguesia iluminista seguiu defendendo a liberdade e a igualdade como atributos ontológicos humanos, a partir de uma crítica metafórica à escravidão, enquanto enriquecia assombrosamente com a escravidão real nas colônias. O colonialismo, necessário à consolidação do capital, é violência em estado bruto onde a exploração e a dominação adquirem características particulares não condizentes àquelas instauradas pela sociabilidade burguesa (Fanon, 2010).


Por essa razão, o status jurídico do colonizado foi colocado abaixo de um sujeito explorado na sociedade de classes. O colonizado sequer era visto como sujeito, uma vez que a sua condição é reduzida a mero meio de produção.  Foi na condição de objetos – ou, para sermos mais precisos, seres humanos objetificados − que os povos africanos e indígenas foram inseridos no contexto de universalização do capital, configurando aquilo que Mbembe destacou como homem-mercadoria, homem-meio-de-produção ou homem-moeda (Mbembe, 2014).


Esse ponto parece fundamental para pensarmos a gênese da sociedade brasileira pois a sua inserção particular no processo de desenvolvimento capitalista não apenas foi baseada no trabalho escravo, como a sua economia completamente estruturada para anteder necessidades coloniais. No entanto, a desumanização e despersonalização quase absoluta das pessoas escravizadas, nas relações de produção que se estabeleceram nesta socabildiade colonial, foi concomitante, e ao mesmo tempo, conditio econômica e social sine qua non à consolidação da sociedade burguesa e aos seus pressupostos jurídicos “universais”.  Aqui, o racismo e a racialização foram elementos ideológicos fundamentais que permitiu distinguir que tipo de ser foi ou não considerado humano.


A escravização dos povos africanos e indígenas foi possível mediante a destituição de seu status de humanidade a partir de uma diferenciação supostamente ontológica e natural. O negro, como coisa/objeto/mercadoria, é, portanto, uma criação reificada e fantasmagórica desse processo em que o desenvolvimento, expansão e consolidação do capitalismo no mundo, não poderia ser acompanhado da universalização das conquistas advindas do desenvolvimento da sociabilidade burguesa.


O racismo moderno é um fruto amargo dessa espécie de universalismo diferencialista. É universalista porque destrói ou antropofagiza tudo o que lhe é exterior, atuando para a conversão da produção de mais valor como "finalidade última e única de toda a humanidade" (Marx, 2013), mas é diferencialista porque se pauta pela invenção e imposição de diferenças – supostamente ontológicas – que inviabilizam a universalização das conquistas humanas alcançadas no interior da sociabilidade do Capital.


O racismo, portanto, não se resume a uma crença inferiorizadora, mas atua, sobretudo, como um decaimento ontológico (Faustino, 2021), um crivo supostamente de humanidade/animalidade, sujeito/objeto, propriedade/proprietário. Associada a esse decaimento, necessário à reprodução colonial-capitalista, encontra-se o fenômeno da racialização cultural e subjetiva. O debate sobre a racialização foi iniciado pelo psiquiatra martinicano Frantz Fanon (1925-61) para dar conta dos significados fetichizantes atribuídos a determinados grupos de seres humanos a depender dos lugares sociais a que foram relegados.


Não é o meu objetivo aqui, falar de racismo, mas enfatizar o quanto que as relações de produção no que viria a ser chamado Brasil, foram estruturadas a partir da desumanização absoluta. Violência total que marcou o conjunto da sociabilidade e da subjetividade.  Há, portanto, uma relação histórica entre capitalismo, colonialismo e racismo que marca a filogenia de sociedades coloniais como a brasileira e que, antecede em séculos a emergência do fascismo, mas seguiu atualizando-se na ontogenia do projeto nacional. Curioso é não falarmos nisso quanto pensamos uma crítica ao autoritarismo made in Brazil. Será que ao mirar o fascismo não estamos acertando a invisibilidade das verdadeiras raízes do nosso autoritarismo?


FASCISMO OU COLONIALISMO? EIS A QUESTÃO!

Não é de hoje que as expressões brasileiras do autoritarismo conservador são equiparadas ao fascismo diversos estudos apontaram a identidade fascista do integralismo brasileiro, identificando um mimetismo ideológico do modelo europeu (Chauí, 1978, Fernandes, 1979, Vasconcellos, 1979; Trindade, 1974, 1981). Posição distinta desta foi adotada pelo filósofo marxista José Chasin (1978) que embora reconhecesse as proximidades políticas e ideológicas de ambos os projetos (integralismo e fascismo) buscou "a captura de sua destinação histórica por seus significados internos, articulados à sua determinação social" (Rago Filho, 2008: 204) levando-o a constatar diferenças substanciais não apenas nas propostas, mas, sobretudo, no contexto histórico concreto em que emergiram. Mas que diferenças são essas e por que elas são importantes de ser retomadas no atual contexto?


A consolidação do capitalismo brasileiro guarda características econômicas e sociais particulares que o diferenciam tanto do caminho adotado pelos países capitalistas clássicos, como é o caso da França e da Inglaterra, quanto dos casos como o da Alemanha, Itália, Portugal e Japão, considerados como via prussiana. No primeiro caso, a relativa universalização dos direitos civis, políticos e sociais foi pensada, mesmo que abstratamente, como pressuposto para a consolidação da sociedade burguesa sob a antiga ordem social estamental. Por isso, como lembra Fanon,


Os estados europeus fizeram a sua unidade nacional num momento em que as burguesias nacionais tinham concentrado em suas mãos a maior parte das riquezas. Comerciantes e artesãos, funcionários e banqueiros monopolizavam, no quaro nacional, as finanças, o comércio e as ciências. A burguesia representava a classe mais dinâmica, mais próspera. Sua ascensão ao poder lhe permitia lançar-se em operações decisivas: industrialização, desenvolvimento das comunicações e, logo, procura de mercados para “além-mar” (FANON, 2010:116).


É verdade que as desigualdades estruturais que compõem o capitalismo, mesmo nesses países, impediam que as anunciadas liberdades e a igualdade fossem alcançadas substancialmente. Ainda assim, como dizia Fanon, foi “o suor e os cadáveres dos negros, dos árabes, dos índios e dos amarelos” em territórios externos à Europa permitiu que a exploração de classes tenha sido acompanhada por estratégias de controle e coesão, o que pressupõe, no mínimo, o reconhecimento da humanidade e relativo “bem-estar” dos explorados (Fanon, 2010, p.116-7). Por isso Fanon (2010) afirma inequivocamente que a Europa é, “literalmente a criação do Terceiro Mundo. As riquezas que a sufocam são as que foram roubadas aos povos subdesenvolvidos”. (Fanon, 2010, p.122).


O caminho para a consolidação do capitalismo brasileiro difere também, das experiências de desenvolvimento industrial tardio do capitalismo como a Alemanha, Itália, Japão, Portugal, entre outros - a chamada via prussiana -   em que o fechamento político autoritário, em seu apelo ultranacionalista e chauvinista, as restrições sistemáticas de liberdades individuais e a adesão teórica e filosófica ao irracionalismo, levou essas sociedades, sob a competição financeira-monopolista do imperialismo, ao fascismo e ao nazismo, no início do século XX.  Esse processo de agressiva competição externa e autoritarismo interno resultou em uma acumulação de capitais, tal que lhes permitiu disputar de forma mais ou menos bem sucedida, a liderança política e econômica da corrida capitalista na Europa, ou pelo menos, o alcance de elevado desenvolvimento econômico interno que não dissolveu nem mesmo após as derrotas da primeira e segunda grande guerra.


Em um caminho distinto, a caraterística particular da formação social brasileira é o fato de ter sido engendrada a partir, e em função, do colonialismo (Chasin, 1980) e de suas relações sociais de produção pautadas pela escravidão racializada (Moura, 1994). É a partir da colonização portuguesa - e não de necessidades internas de acumulação - que o Brasil se insere na dinâmica capitalista moderna mas, por conta disso, o faz, primeiramente, de maneira subordinada à interesses exógenos e, sobretudo, pautado por relações de produção, conformação social e dinâmica interna da luta de classes adequadas a esses fins (Moura, 1994).  É notável aqui o quanto que a descrição de Fanon a respeito das burguesias colonizadas se aproxima daquela diagnosticada pelos economistas e historiadores brasileiros (Fernandes, 1979; Moura, 1994 e Prado, 2000):


A burguesia dos países subdesenvolvidos é uma burguesia sem espírito. Não são nem o seu poder econômico, nem o dinamismo dos seus quadros, nem a envergadura das suas concepções que lhe garantem a qualidade de burguesia. [...]. Se o poder lhe deixar o tempo e as possibilidades, essa burguesia conseguirá constituir para si um pequeno “pé-de-meia”, que reforçará a sua dominação. Mas ela se revelará sempre incapaz de dar origem a uma autêntica sociedade burguesa, com todas as consequências e industrias que isso supõe (Fanon, 2010, p. 207)


Embora a experiência colonial, que deu origem ao capitalismo dependente no Brasil tenha sido engendrada a partir da expansão do capital mercantilista nas Américas, enquanto a experiência narrada por Fanon trate do colonialismo imperialista no Continente Africano, ambas se aproximam pelo caráter retardatário de suas economias, a fragilidade democrática e,  sobretudo, a subordinação econômica, política e cultural - mantida em ambas após as independências – às economias centrais capitalista.


Este processo, socioeconômico, de matriz econômica colonial, no entanto, foi possibilitado pela existência do racismo antinegro e anti-indigena. A eugenia, uma das vertentes do chamado racismo científico, vigorou hegemonicamente no Brasil até a década de 1940 (Góes, 2018). Não se trata de afirmar, aqui, que o racismo é uma particularidade das economias capitalistas periféricas, mas, sim, de reconhecer a sua gênese e função peculiar em uma sociabilidade onde “o novo paga sempre um alto tributo ao velho”, isto é, uma modernização que “condiciona e se alimenta da preservação de estruturas e dinamismos coloniais” (Fernandes, 1977, p. 13)


A conexão umbilical entre a escravidão e o desenvolvimento interno do capitalismo no Brasil resultou, por um lado, quando observamos o período posterior à escravidão, no engendramento de uma burguesia que não foi  “capaz de perspectivar, efetivamente, sua autonomia econômica, ou a fez de um modo demasiado débil, conformando-se, assim, em permanecer nas condições de independência neocolonial ou de subordinação estrutural ao imperialismo” (Chasin, 1980, p. 128) e, por outro lado, na conseguinte culpabilização racial dos “segmentos não-brancos oprimidos e discriminados, e do negro, em particular”, pela “inferioridade social, econômica e cultural” (Moura, 1988, p. 65)  que essa postura subordinada (colonial) resultou.  A combinação desses dois fatores ainda se faz presente na sociedade brasileira: de um lado, a composição de uma classe dominante frágil, congenitamente dependente do capital externo e pouco aberta às necessidades reais da população em geral e do outro, a manejo do racismo como possibilidade ideológica de transferir a responsabilidade das consequências dessas escolhas para as próprias vítimas.


José Chasin, ao diferenciar a experiência societária germânica, em sua busca por autonomia econômica, da brasileira em sua dependência congênita, afirma:


as burguesias que se objetivaram pela Via Colonial não realizam sequer suas tarefas econômicas, ao contrário da verdadeira burguesia prussiana, que deixa apenas, como indica Engels, de realizar suas tarefas políticas. De modo que, se para a perspectiva de ambas, de fato, é completamente estranha a um regime político democrático-liberal, de outro lado, a burguesia prussiana realiza um caminho econômico autônomo, centrado e dinamizado pelos seus próprios interesses, enquanto a burguesia produzida pela Via Colonial tende a não romper sua subordinação, permanecendo atrelada aos polos hegemônicos das economias centrais (Chasin, 1980, pp. 128-9).


Essa “via colonial de entificação do capitalismo” é marcada - mesmo nos casos em que o velho colonialismo fora superado pela nova universalização da contradição capital-trabalho como eixo da luta de classes, após a abolição da escravidão - por uma descolonização  “oscilante e superficial” (Fernandes, 1977, p. 13)  que não é capaz nem de absorver as necessidades e demandas das classes subalternas e nem de se colocar autonomamente na disputa econômica internacional (Chasin, 1982). Nela, a evolução nacional e o progresso social são excludentes (Chasin, 1989) e os privilegiados “não abrem mão de nenhuma partícula de privilégios e brandem, por qualquer coisa, as armas brancas de degola e suas bandeiras ‘sagradas’ que põem a propriedade e a iniciativa privadas acima de sua religião, de sua pátria e de sua família” (Fernandes, 1986, pp. 74-5).


A burguesia que emerge na via colonial é antidemocrática, como foi a prussiana, mas, diferentemente desta, incapaz, por iniciativa e força própria, de romper com a subordinação ao imperialismo (Rago, 2010).  Essa subserviência, embora tenha adquirido feições próprias em cada momento histórico, foi sempre a marca das classes dominantes e do Estado brasileiro diante do capital internacional, mas encontrou dimensões sem precedentes na postura do atual governo diante dos interesses estadunidenses. O vergonhoso incidente, em Dallas, no Texas, em que o Presidente Bolsonaro bateu continência à bandeira dos Estados Unidos foi apenas o prelúdio de uma série de escolhas comerciais, políticas e científicas que marcaram o seu ufanismo patriótico e chegaram a colocar em risco os interesses de alguns setores econômicos nacionais.


Para além disso, essa subserviência política, econômica e ideológica explica o fato de o governo Bolsonaro ter optado por seguir a retórica de Donald Trump de desprezar a capacidade destrutiva do vírus SarsCov2 ou afirmar que se tratava apenas de uma estratégia chinesa para exportar o comunismo, via Organização Mundial da Saúde.  No entanto, o ponto que eu gostaria de explicitar é que a relação de dependência que lhe fundamenta, embora tenha encontrado relativa restrição na era Lula, é anterior ao Bolsonaro e remete à origem do Estado brasileiro. Como vimos, a história do Brasil é marcada, desde o início por “transições transadas” (Fernandes, 2014, p. 127), isto é, conciliações pelo alto, entre o moderno e o arcaico: fomos inseridos na economia capitalista - e o próprio país, passou a existir, enquanto tal - a partir da colonização portuguesa via escravidão e genocídio indígena, e não por necessidades internas de acumulação.


Deixamos de ser colônia para se constituir em império independente, a partir de 1822, sendo que o poder continuou nas mesmas mãos e ainda, sem romper com a escravidão. A ausência de uma revolução, de baixo para cima, que provocasse o fim da escravidão resultou em uma abolição sem reparações e um ano depois, o regime republicano substitui o imperial a partir de um golpe militar. Depois disso, a oscilação burguesa entre os “diversos graus de bonapartismo e da autocracia burguesa institucionalizada, como toda a nossa história republicana evidencia”. (Chasin, 1982, p. 11).


Em todos esses períodos, as demandas populares, em sua maioria oriundas de trabalhadores negros precarizados, foram sempre negligenciadas ou secundarizada pelas classes dominantes e os seus representantes políticos no Estado. Como lembra Fanon (2010) – mas também, Marine (2000) e Mészaros (2002), a democracia e, posteriormente, o Welfare State nos centros capitalistas foram garantidos através da superexploração da força de trabalho na periferia. Esse processo teve, no Brasil, o racismo como um grande sustentáculo que representou, a seu termo, tanto a naturalização das relações sociais quando a culpabilização das próprias vítimas pelos resultados de escolhas que lhes eram alheias.


O QUE VEM DEPOIS..., SE O ANTES SEGUE INSOLÚVEL?

E aqui estamos nós, no início de 2023, vagando meio perdidos em algum lugar entre o gozo ressentido de alegria pela prisão de milhares de militantes bolsonaristas que atentaram contra os prédios públicos e a alegada defesa da democracia. Quando forças políticas da extrema direita assumem sectariamente o discurso de ruptura da ordem instituída e da própria performance democrática, parece ter restado às forças de esquerda a defesa da ordem e das instituições, além da esperança de que limitem um inimigo voraz e bem pago pouco disposto à respeitar as regras do jogo.


O pacto de transição que viabilizou a candidatura do Terceiro Governo Lula aglutinou diferentes atores sociais em torno da chamada "defesa da democracia", um grito historicamente necessário que colocou FIESP, Rede Globo,  CUT e MST do mesmo lado do espectro de horizontes.


Mas quando observamos que a democracia burguesa nunca foi antídoto para o colonialismo e, nem mesmo para a escravidão, o que permitiu, na prática, que os franceses revolucionários, ainda com as mãos manchadas pelo sangue da nobreza guilhotinada, combatessem a gloriosa revolução do Haiti; quando constatamos que que a luta das nascentes elites nacionais pela independência do Brasil não resultou em um questionamento da escravidão e que o fim da escravidão, não resultou em qualquer tipo de reparação material ou simbólica aos ex-escravos mas sim, a atualização e sofisticação  do racismo antinegro e anti-indígenas para outros termos, somos obrigados fica fácil entender porque, mesmo em tempos de oscilação "democrática" brasileira, a democracia jamais chegou à periferia, aos povos indígenas, sem teto, sem terra,  ribeirinhos e quilombolas.


A democracia não chegou, sequer, à parte significativa da classe trabalhadora que - mesmo nos períodos áureos que hoje são mobilizados com saudosismo - só pôde ampliar o seu acesso ao consumo mediante o endividamento perpétuo que atualmente lhe cobra a conta. Ainda assim, as diversas lutas dos últimos 40 anos alcançaram vitórias importantes, que não podem ser negadas e que, atualmente, têm sido atacadas com virulência inconteste.


O ponto que interessa pensar é que, com o advento da crise estrutural do capital no final do século XX (Mészaros, 2002) e as novas configurações produtivas e sociais dela advinda, o lugar do Brasil na divisão internacional do trabalho foi reconfigurado sem grandes rupturas com os seus traços constitutivos. Assim, o encerramento da via colonial de entificação do capitalismo representou, justamente, a sua consolidação (Sobrinho, 2019). Assistiu-se, embora com nuances e diferenças em cada governo, à consolidação da inserção subordinada do país via interiorização da mundialização (via ampliação do IED), especialização do país na produção de commodities e liberação do sistema financeiro. Tudo isso, a partir da manutenção, sempre intocada, da superexploração da força de trabalho, no plano econômico produtivo, e do racismo anti-negro e anti-indígena, no plano político e ideológico e social. Assim, violência colonial, expressa em Les damnés de la terre, seguiu expressando-se através de uma ordem social extremamente desigual.


Embora as duas gestões anteriores do presidente Lula (2003-2012) tenha representado uma exceção simbólica - e, talvez até política - à vaga neoliberal advinda da já mencionada crise estrutural - na medida em que proporcionou um relativo atendimento governamental às demandas assistenciais e populares em geral, em especial, dos movimento negros (Ribeiro, 2014) - a institucionalização de tais demandas veio acompanhada pelo desenraizamento, burocratização e tendente enfraquecimento dos movimentos sociais de base brasileiro. No entanto, a própria natureza conciliatória deste pacto impedia que as reivindicações dos diversos segmentos da classe trabalhadora fosse estruturalmente enfrentados, tornando frágil as importantes conquistas obtidas no período.


Com o golpe jurídico-parlamentar à presidenta Dilma – sucessora escolhida de Lula – e a posse ilegítima de Michel Temer (2016-2018), mas sobretudo, devido ao enfraquecimento dos movimentos populares e de esquerda que pudessem lhe fazer oposição, assistiu-se à intensificação dessa agenda de austeridades e ataque à direitos anteriormente conquistados.


A ascensão de Bolsonaro à presidência, no entanto, elevou essas medidas a níveis sem precedentes. As políticas de austeridade foram conduzidas pelo Ministro da Fazenda Paulo Guedes, discípulo extremista da chamada Escola de Chicago e apologista das políticas econômicas implementadas no Chile, durante a ditadura de Pinochet. A precarização, terceirização, uberização e ampla diminuição de postos de trabalho, impostos pela quarta revolução industrial, mas também, pelas reformas trabalhistas, sindicais e as segregações sociais daí decorrentes, criaram um ambiente de crescente vulnerabilidade social.


Como se não bastasse, o Governo Bolsonaro sustentou essa política de morte através de um aparelhamento militarizado e miliciarizado do Estado e de funções públicas estratégias, ameaçando instituições democráticas e suscitando a ruptura com a ordem social através de consignas ufanistas, religiosas e supostamente nacionalistas. Uma vez derrotado nas urnas, mobilizou a sua base para se insurgir contra as instituições públicas em um roteiro já assistido no Capitólio estadunidense. Violência, militarização, ufanismo, conservadorismo religioso, uso de tecnologias de comunicação em massa, foram alguns dos elementos presentes na resistência bolsonarista à transição governamental. Mais uma vez, as proximidades políticas e ideológicas com o fascismo e o neofascismo são evidentes e preocupantes, mas, novamente, cabe-nos a pergunta impertinente: mas será mesmo fascismo? Fale-me mais sobre isso!


Mesmo na Europa do século passado, a suposta oposição entre totalitarismo e democracia, difundida pela escola do totalistarismo, converteu-se em tiro no pé que igualou nazismo e estalinismo mas se calou sobre as violências (neo)coloniais  na África, Ásia e Américas que sustentaram o Welfare state e a democracia europeia  (Yeros e Jha, 2020). Ao que parece, atualmente, as fronteiras geográficas que separam o "nós" (west) e o "eles" (rest) ocidental foram flexibilizadas pela internacionalização e desenvolvimento ampliado do capital e - ainda que pessoas continuem sendo barradas - o livre trânsito de capitais resultou também na dificuldade de exportar a miséria e a violência, tal como nos períodos gloriosos do colonialismo.


Agora, há favela na frança e sem teto nos EUA, assim como bilionários sul-africanos ou ministros europeus de origem indiana, mas o racismo continua sendo empregado não apenas nos territórios coloniais, mas também dentro dos grandes centros capitalistas, permitindo uma certa gestão, via xenofobia racializada (Faustino e Oliveira, 2021), da crise social provocada pelo atual estágio de acumulação capitalista. A democracia nunca chegou na favela e, agora, a ausência dessa senhora desconhecida provoca a volta do Brasil ao mapa da fome e da miséria… agora, até a FIESP concorda que o atual governo - outrora útil - passou a ser um problema para seus interesses e assina uma carta em defesa da democracia. Todos contra o fascismo, avante camaradas! Mas e depois, a democracia? Para quem?


Mas e o colonialismo que a nutriu e ainda evitou que ela saísse do controle e caísse em mãos erradas tanto nos tempos de crise como nos tempos de fartura? Esquece, isso é coisa do passado, preocupemo-nos com o que vem depois!

REFERENCIAIS

AZEVEDO, C.,. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das Elites - Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987

ANTUNES, Ricardo: “Pandemia Desnuda Perversidades do Capital Contra Trabalhadores”. [2020.  Entrevista online]. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/27/ricardo-antunes-pandemia-desnuda-perversidades-do-capital-contra-trabalhadores [Acesso em: ].

BILHEIRO, Ivan. A legitimação teológica do sistema de escravidão negra no Brasil: congruência com o estado para uma ideologia escravocrata. CES Revista, [S.l.], v. 22, n. 1, p. 91-101, abr. 2016. ISSN 1983-1625. Disponível em: <https://seer.cesjf.br/index.php/cesRevista/article/view/713>. Acesso em: 13 jan. 2021.

Chasin, J. O integralismo de Plínio Salgado. Forma de regressividade no capitalismo híper-tardio. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humans, 1978

CHASIN, J., As máquinas param: germina a democracia. Revista Escrita/Ensaio. 1980. [online]. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/chasin/1979/mes/maquinas.htm [Acessado em: 01 de julho de 2020].

CHASIN J., “¿Hasta Cuando?” A propósito das eleições de novembro. Revista Escrita/Ensaio. 1982.  [online]. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/chasin/1982/10/hasta.pdf [Acessado em: 01 de julho de 2020]. 

CHASIN J., A sucessão na crise e a crise na esquerda. São Paulo: Ensaio, n. 17/18, 1989..

CHASIN J.,. As vias prussiana e colonial de objetivação do capitalismo e suas expressões teóricas conservadoras: o fascismo e o integralismo. Verinotio - Revista on-line de Filosofia e Ciências Humanas. [online] 2019. Disponível em: http://www.verinotio.org/sistema/index.php/verinotio/article/view/497 

CHAUÍ, M. “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In: CHAUÍ, M.; FRANCO, Maria Sylvia C. Ideologia e mobilização popular. Rio de Janeiro: Paz e Terra/Cedec, 1978.

 

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Coleção Cultura, v. 2. Juiz de fora: Ed. UFJF. 2010.

FANON, Frantz.   Sociologie d’une révolution. Paris: Maspero, 1968

FAUSTINO, Deivison. A emoção é negra e a razão é helênica? Considerações fanonianas sobre a (des)universalização do. Revista Tecnologia e Sociedade (Online), v. 1, p. 121-136, 2013.

FAUSTINO, Deivison. “Por que Fanon? Por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese de Doutorado. Universidade Federal de São Carlos. 2015. Disponível em: https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/2016/Mencoes-Honrosas/Sociologia-Deivison-Mendes-Faustino.PDF 

FAUSTINO, Deivison. Violência e sociedade: o racismo como estruturante da sociedade e da subjetividade do povo brasileiro. São Paulo: Escuta. 2018a.

FAUSTINO, Deivison. Frantz Fanon: um revolucionário, particularmente negro. São Paulo: Ed. Ciclo Contínuo. 2018b.

FAUSTINO, Deivison. A disputa em torno de Fanon: a teoria e a política dos fanonismos contemporâneos. São Paulo: Coleção Africamundi. 2020a.

FAUSTINO, Deivison. Blog pessoal de Deivison Mendes Faustino. O Coronavirus e a quarentena que não chega na periferia: o que fazer. 2020b. [blog] 17 de março de 2020. Disponível em: https://deivisonnkosi.kilombagem.net.br/artigos/saude/corona-virus-mas-e-se-a-sua-quarentena-nao-chegar-na-periferia-o-que-fazer/ [Acessado em: 20 jun. 2020].

FAUSTINO, Deivison. Os condenados pela Covid-19 no Brasil: esboço para uma análise sobre o racismo e as novas formas de deixar morrer. BOLETIM A QUESTÃO ÉTNICO-RACIAL EM TEMPOS DE CRISE, p. 1 - 4, 20 nov. 2020d.

Faustino, D. e Oliveira, Leira Maria. Xeno-racismo ou xenofobia racializada?  Problematizando a hospitalidade seletiva aos estrangeiros no Brasil. REMHU, v. 29 n. 63, 2021

FERNANDES, F., Circuito Fechado: Quatro ensaios sobre o poder institucional. 2a ed. Rio de Janeiro: Hucitec. 1979.

FERNANDES, F. “Prefácio”. In: VASCONCELLOS, G. A ideologia curupira. São Paulo: Brasi- liense, 1979. 

FERNANDES, F., Marx & Engels: História. Coleção Grandes Cientistas Sociais. n. 36. São Paulo: Ática. 1983.

FERNANDES, F., Que tipo de República? São Paulo: Brasiliense. 1986.

FERNANDES, F., Florestan Fernandes na constituinte: leituras para a reforma política. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo Expressão Popular. 2014.

GALVÃO, L. A., Marx & Marx. São Paulo: Ática. 1997.

GÓES, W. L.,  Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. São Paulo: LiverArs. 2018.

Lenin, V. I [1917]. El imperialismo, fase superior del capitalismo. Ensayo popular. In: _____. Obras completas, v.27. Moscou: Progreso, 1985. p.324-449.

Luxemburgo, Rosa e Bukharine, Nikolay, Imperialismo e acumulação de capital. Lisboa: Edições 70, 1972

LUKÁCS, Gerg. A destruição da razão. Instituto Lukács, 2020

MATTOS, A. L., Racismo e xenofobia no Brasil: análise dos intrumentos jurídicos de proteção ao imigrante negro. Monografia. Universidade Federal de Santa Maria. 2016. Disponível em: https://repositorio.ufsm.br/handle/1/2796 [Acessado em: 01 de julho de 2020]

MARINI. R. M., Processo e tendências da globalização capitalista. Dialética da dependência. [online]. Petrópolis: Vozes. 1996. Disponível em: [Acessado em: 01 de julho de 2020]

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013

MARX, Karl. Trabalho Assalariado e Capital. 4a Edição, São Paulo, Global, 1987 

 MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. São Paulo: Boitempo, 2009

MBEMBE, Achille, Critica da razão negra, Lisboa: Antígona, 2014. 

MÉSZÁROS, I., 2002. Para além do capital. São Paulo: Boitempo.

MOURA, C., Sociologia do negro brasileiro. São Paulo,  Editora Ática. 1988.

MOURA, C., Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Editora Anita Garibaldi. 1994.

Prado-Jr. C., Formação do Brasil Contemporâneo: Colônia. São Paulo: Companhia das Letras. 1942.

RAGO, A., A teoria da Via Colonial de objetivação do capital no Brasil: J. Chasin e a crítica ontológica do capital atrófico. Verinotio revista on-line de educação e ciências humanas. 2010. [online]. Disponível em: http://www.verinotio.org/conteudo/0.44345918339068.pdf [Acessado em: 28 de junho de 2020]

bottom of page