MASTERCLASS DO FIM DO MUNDO
Neblina
“O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer. Que eu sirva para que, pelo menos, eu possa ser um ponto de inflexão.” Com estas palavras, Jair Bolsonaro abriu o jantar oferecido pela embaixada brasileira durante sua primeira visita a Washington em março de 2019. [1]
Exatamente um ano depois, era confirmada a primeira morte por covid-19 no Brasil. O panorama apocalíptico anunciado pelas notícias da pandemia no estrangeiro ainda contrastava, por aqui, com a continuidade inalterada da rotina. A indefinição do cenário criava uma atmosfera de apreensão, maior a cada dia. A aglomeração obrigatória em locais de trabalho fechados como fábricas, shoppings e escritórios, assim como em ônibus e vagões invariavelmente lotados, fornecia a imagem angustiante da disseminação de uma doença ainda desconhecida. Foi numa empresa de telemarketing da Bahia que a tensão transbordou primeiro: os operadores abandonaram seus postos e saíram à rua exigindo medidas de quarentena. Em poucas horas, a cena se replicava em call centers de Teresina, Curitiba, Goiânia e outras cidades do país. Os vídeos das paralisações, que viralizaram em grupos de operadores no WhatsApp e no Facebook, indicavam uma solução bastante concreta para aquela situação desesperadora: literalmente, sair! [2]
O coronavírus deu ares premonitórios aos termos da carta anônima – mais exatamente um “último grito de socorro” – que funcionários de uma rede de livrarias haviam divulgado em fevereiro de 2020, após uma sessão avassaladora de assédio moral. É sintomático que, antes mesmo da pandemia, eles descrevessem a experiência no interior da empresa como uma “masterclass de fim do mundo”. Mas “o grande problema do fim do mundo”, concluíam, “é que alguém vai ter que ficar depois pra varrer”.[3] De fato, quando nos vimos diante de uma calamidade biológica, poucas semanas depois, os “empregos de merda” continuaram fazendo reféns [4] para manter os negócios em dia.
A comparação das centrais de telemarketing com senzalas e prisões, tão comum no repertório de piadas dos operadores, encontrava agora uma confirmação brutal. Para muitos deles, a fuga do trabalho [5] apareceria como último recurso para não morrer no posto de atendimento. A despeito do decreto presidencial que incluiu o setor entre os serviços essenciais logo após as paralisações, o que se viu nas semanas seguintes foi um esvaziamento dos call centers. Enquanto muitos trabalhadores passaram a apresentar atestados (reais ou fraudados), faltar sem justificativa ou pedir as contas, as empresas responderam com soluções precárias de trabalho remoto, férias coletivas e demissões.[6] A pressão dos protestos se diluiu na desagregação que já era tendência no ramo e foi acelerada pelo vírus. [7]
Tão rapidamente quanto a pandemia erodia as condições de trabalho nas mais diferentes áreas, a vida se conformava ao “novo normal”. Assim assistimos operários retornarem do lay-off para se expor à infecção, mas agradecidos por ainda terem emprego num cenário de fechamento de fábricas; professores que contestavam o ensino à distância engajarem-se de maneira proativa na nova rotina; e boa parte dos remanescentes da avalanche de demissões no setor de serviços submeter-se ao programa de redução de jornada e salário, feito sob encomenda pelo governo federal (embora, na prática, a jornada na empresa não se alterasse). E se greves de motoristas e cobradores de ônibus fizeram-se mais recorrentes ao redor do país a cada mês de 2020, é porque esta foi a única forma que restou para garantir o salário num contexto de redução do número de passageiros e crise no setor. [8]
O poder destrutivo do coronavírus combinou-se, por aqui, com a onda de devastação que já estava em curso. Saída de emergência acionada pelo capital em resposta à revolta social deflagrada em 2013, esse “movimento de destruição de forças produtivas” encontrou nas eleições de 2018 uma personificação na figura incendiária de um capitão reformado. [9] Na impossibilidade de gerir a crise, é a crise que se torna método de gestão. Onde se poderia ver um governo ineficiente, nosso autoproclamado agente da desconstrução revela uma eficiência negativa: o caos já constitui um método [10] e “não governar é uma forma de governo” [11]. Ao criar sistematicamente entraves às recomendações científicas para o controle da pandemia, Bolsonaro nunca foi propriamente “negacionista”; pelo contrário, “é antes um vetor do próprio vírus, a identificação dele com o vírus é integral” [12]. “Sou capitão do Exército, a minha especialidade é matar, não é curar ninguém”, bradava ele ainda em 2017. [13]
Em agosto de 2020, quando o Brasil ainda se aproximava da cifra de cem mil mortes registradas por covid-19, pesquisas alertavam para outro índice preocupante, ao revelar que menos da metade da população em idade para trabalhar estava trabalhando. [14] Se a queda da taxa de ocupação aos patamares mais baixos da história recente poderia ser vista como uma aceleração da eliminação de trabalhadores descartáveis, sob outros olhos, porém, o mesmo quadro devastador estava produzindo algo novo… “Já enxergávamos no Brasil um cenário promissor para essa nova forma de trabalhar e a pandemia fez com que mais pessoas buscassem outras maneiras de exercer suas atividades e gerar renda”, explicava a vice-presidente de expansão internacional de um aplicativo usado por empresas para contratar freelancers em 160 países, que agora chegava ao Brasil. [15] Depois do apocalipse, o Uber?
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ABANDONAI TODA ESPERANÇA
Nas mesmas semanas em que se espalhou a convocatória de uma nova greve nacional de caminhoneiros, marcada para o dia 1º de fevereiro de 2021, circulava nos grupos de WhatsApp da categoria o vídeo de um motorista que se enforcara ao lado de seu veículo, numa árvore à beira da estrada. A cena era compartilhada com mensagens de luto e de alerta para a situação desesperadora dos transportadores autônomos, encurralados entre fretes baixos e sucessivos aumentos dos custos de rodagem, especialmente do combustível. A despeito disso, o movimento não teve nem de longe a mesma força que a paralisação de maio de 2018, quando o abastecimento de todo o país foi asfixiado em poucos dias e o governo, apavorado, ofereceu algum alívio imediato, com medidas que perderiam o efeito nos anos seguintes [119] Sem a composição ampla – e ambígua – da mobilização anterior, que envolveu motoristas com veículo próprio, donos de pequenas frotas e grandes transportadoras, a ebulição do início de 2021 se resumiu a iniciativas dispersas de caminhoneiros autônomos, que tentaram bloquear trechos de diversos estados, mas foram rapidamente desarticulados pela polícia rodoviária. [120]
Ainda que a greve não tenha deslanchado nas estradas, a agitação contagiou trabalhadores que também dependem diretamente do combustível para ganhar a vida nas cidades. Entre fevereiro e abril, manifestações de motoboys, motoristas de aplicativos e de vans escolares, além de novos protestos de caminhoneiros, ocorreram quase diariamente por todo Brasil, dando contornos insurrecionais às ruas com circulação reduzida pelo pico da segunda onda do coronavírus no país. Esse movimento de trabalhadores motorizados travou rodovias e centros de distribuição da Petrobrás; lotou postos de gasolina, com a tática de abastecer apenas um real para formar filas e dar prejuízo aos revendedores; reacendeu a organização de protestos e paralisações de entregadores; e impulsionou a maior carreata de motoristas de aplicativos de passageiros da história de São Paulo, que interditou o acesso ao Aeroporto Internacional de Guarulhos por uma noite inteira para exigir o fim de modalidades de corrida mal remuneradas. [121]
Na era da uberização, a inflação – que tradicionalmente se traduzia em reivindicações ao redor do custo de vida – provoca, em primeiro lugar, mobilizações mirando os custos de trabalho, isto é, lutas para “poder trabalhar”. A reprodução da força de trabalho se transforma em administração da microempresa de si mesmo, daí a aproximação frequente entre os protestos contra a alta dos combustíveis e as campanhas anti-lockdown de comerciantes nos primeiros meses do ano. Para muitos, as greves foram o último recurso antes de abandonar a peleja e entregar as armas, ou melhor, antes de devolver o carro à locadora (em algumas cidades, associações de motoristas de aplicativo estimam que mais da metade dos cadastrados nas plataformas desistiram de continuar rodando ao longo de 2021). [122]
Entre a crescente inviabilidade financeira do trabalho autônomo, de um lado, e o desmoronamento do emprego formal, de outro, não há para onde fugir. A única alternativa é seguir na correria sem fim, se virando em condições mais e mais adversas. Essa sensação de confinamento a um trabalho exaustivo e sem futuro encontra eco do outro lado do globo, sintetizada pela palavra da vez entre os usuários das redes sociais chinesas “para descrever os males de suas vidas modernas”: nèijuǎn (内卷). [123] Antes de entrar na moda no país mais populoso do mundo, em meados de 2020, o termo era usado por estudiosos para traduzir o conceito de “involução”, uma dinâmica de estagnação de sociedades agrárias – mas também das grandes cidades da periferia do capitalismo global – nas quais a intensificação do trabalho não se reflete em modernização. [124] “Composta pelos caracteres ‘dentro’ (内) e ‘rolo’ ou ‘rolar’ (卷)” a expressão pode ser “intuitivamente entendida como algo no sentido de ‘virar para dentro’”. [125] Enquanto “desenvolvimento”, em português, carrega a imagem de um desenrolar para fora, em direção a algo, nèijuǎn sugere um parafuso que gira em falso sobre si mesmo. Um movimento incessante, mas sem sair do lugar. – Não é isso, afinal, a eterna viração de cada dia? Reverberando o desespero da experiência cotidiana de estudantes e trabalhadores nas metrópoles chinesas, o termo condensa
"a sensação de estar preso em um ciclo miserável de trabalho exaustivo que nunca é suficiente para alcançar a felicidade ou melhorias duradouras, do qual ninguém pode sair sem cair em desgraça. Eles sentem isso quando reclamam que a vida parece uma competição sem fim e sem vencedores, e sonham com o dia quando finalmente vencerão. Mas esse dia nunca chega. As dívidas se acumulam, os pedidos de ajuda são ignorados, as opções restantes começam a diminuir. Em um tempo de involução, quando mesmo as menores reformas parecem impossíveis, tudo o que resta são medidas desesperadas". [126]
Se algo desse desespero atravessa os movimentos de motoristas autônomos no Brasil, ele assume feições ainda mais dramáticas nas ruas e nas estradas chinesas. Em janeiro de 2021, um entregador a quem o aplicativo se recusava a pagar o que devia pôs fogo no próprio corpo em frente a sua estação de delivery em Taizhou. Em abril, um caminhoneiro que teve o veículo apreendido pela polícia por sobrepeso em Tangshan tomou um frasco de pesticida e enviou uma mensagem de despedida aos colegas de rodagem pelas redes sociais. No mesmo mês em que um cadeirante de São Caetano do Sul amarrou explosivos falsos ao corpo e ameaçou mandar uma agência do INSS para os ares se não tivesse acesso a sua aposentadoria por invalidez, [127] o morador de uma vila do distrito de Panyu, no sul da China, onde o Estado expropriara as terras coletivas para vendê-las a empresas de turismo, foi às vias de fato no prédio do governo local: com bombas reais, explodiu a si mesmo e a cinco funcionários. Demitido no início de julho, um pedreiro invadiu a casa do ex-patrão no litoral de Santa Catarina, manteve sua família refém por dez horas e terminou assassinado pela polícia ao liberá-los. [128] E a pandemia representaria ainda mais pressão e desespero, como fica patente no caso do homem que jogou o carro contra a recepção de um pronto socorro público superlotado da região metropolitana de Natal depois que o atendimento de sua esposa, infectada por covid, foi negado. [129]
Quando um policial militar da Bahia abandonou o posto e dirigiu sozinho por mais de 250 quilômetros até o Farol da Barra, ponto turístico de Salvador, onde disparou tiros de fuzil para o alto, em meio a gritos contra a violação da “dignidade” e da “honra do trabalhador”, seu surto foi celebrado nas redes anti-lockdown como um gesto heroico contra as “ordens ilegais” dos governadores. [130] O fim trágico do soldado, morto em tiroteio pelos próprios colegas, foi usado por deputados da extrema direita para incitar um motim na tropa. A carreata de policiais que partiu do local no dia seguinte, contudo, encontrou o trânsito congestionado por outra manifestação: eram motoboys que denunciavam a morte de um entregador atropelado por um motorista que dirigia bêbado pela contramão na noite anterior. Unidos acidentalmente pelo luto por companheiros caídos em uma guerra social sem forma definida, os atos convergiram em direção à sede do governo estadual. [131]
Ao mesmo tempo em que agrava a crise, ou melhor, alarga a fossa em que há décadas nos debatemos sem sair do lugar, a política de terra arrasada de Bolsonaro o habilita a mobilizar o desespero, em investidas suicidas, sob a promessa de uma decisão [132] – de um “tiro final” [133]. Por mais que o descontentamento com o aumento dos combustíveis tenha arranhado o apoio do presidente em uma de suas principais “bases” (os caminhoneiros), o bolsonarismo continuou sendo a principal força política com alguma capacidade de disputar a turbulência social destes tempos apocalípticos, agindo para conformar as mais diversas insatisfações numa “revolta dentro da ordem” [134], desviando-as para atacar os alvos da vez no interior das instituições – sejam eles os prefeitos, os governadores, o judiciário, a mídia, a vacina ou a urna eletrônica – ou simplesmente mimetizando as lutas concretas em rituais estéticos, como os passeios de moto dominicais.
No auge do turbilhão, o Supremo Tribunal Federal trouxe de volta ao tabuleiro uma peça decisiva que os mesmos juízes haviam retirado do jogo alguns anos antes. Ao anular as condenações de Lula e habilitá-lo a disputar eleições novamente, a decisão sinaliza que talvez não seja possível conter as investidas da insurgência bolsonarista sem recorrer ao comandante da grande operação de pacificação que vigorou quase inconteste até o abalo de junho de 2013, na expectativa de que tudo funcione de novo. Cabe perguntar, contudo, “qual tecnologia ele terá às mãos para apassivar” uma massa urbana numa trajetória acelerada de “proletarização descendente” em meio à atual escalada da guerra social. [135] Por mais que a manobra do judiciário reanime na esquerda a vã esperança de restaurar os direitos desmantelados, os formuladores do programa econômico petista para 2022 não só reconhecem a perda de forma do trabalho como fazem coro com os executivos do iFood para “tirar os trabalhadores de plataformas digitais do limbo regulatório” [136], o que “não quer dizer enquadrar na velha CLT, mas também não é deixar como está hoje”. [137]
“Um novo governo Lula significará, na melhor das hipóteses, que as pessoas poderão continuar trabalhando de Uber”, [138] com a regulamentação da “parceria” entre aplicativo e motoristas e mais “segurança jurídica” para as empresas. E, ainda que o regime incendiário de Bolsonaro forneça um terreno fértil para a expansão de seus negócios, as foodtechs brasileiras também não dispensam a expertise de diálogo e mediação de conflitos acumulada no país durante os governos “democrático populares”. A fim de minimizar o impacto negativo das paralisações em sua marca, o iFood – que, aliás, celebra “metas de diversidade e inclusão de raça e gênero” dentro de seus escritórios [139] – vem recrutando quadros forjados em ONGs e projetos sociais de periferias para apaziguar a rebelião de seus “parceiros” motorizados. [140] Ao longo do ano de 2021, motoboys envolvidos em paralisações por todo o país foram procurados por um “gerente de comunidade” contratado pela empresa não exatamente para atender reivindicações, mas para dialogar, anunciando a construção de um “Fórum de Entregadores” [141] com digital influencers da categoria e supostas lideranças de greves, no melhor estilo das conferências participativas do Brasil de outrora.
Um retorno do ex-metalúrgico ao Palácio da Alvorada deve representar não um momento de reconstrução nacional, mas a chance de aterrar os destroços e consolidar os novos terrenos da acumulação no país, numa normalização do desastre com gostinho de vitória – e por isso mesmo “mais perfeita do que seria possível sob qualquer político conservador” [142]. A expectativa pelas eleições de 2022 aprofunda, assim, o estado de espera de grandes partidos e pequenos coletivos de esquerda, que durante a pandemia encontraram no imperativo do isolamento social uma justificativa para sua quarentena política. Ao encarnar a defesa das recomendações sanitárias, a esquerda em geral conformou-se à realidade do home office, numa espera paralisante de expectativas rebaixadas: a espera pela contagem diária dos mortos, torcendo pela queda da curva; a espera pela chegada das vacinas ao Brasil, seguida pela espera – e pela disputa [143] – por um lugar na fila; a espera pelo fim do “governo Bozo”, animada a cada novo impasse com o STF ou depoimento na CPI; em suma, a espera de que o pior passasse e tudo voltasse a ser menos pior, como era antes. Com a melhora nos indicadores da pandemia, em meados de 2021, essa esperança inerte saiu de casa e tornou-se fotografia aérea nas avenidas. Contudo, se as passeatas demonstraram o tamanho do rechaço ao presidente nas principais cidades do país, também tornaram flagrante a impotência dessa oposição. Após reunirem centenas de milhares de pessoas, os atos foram gradativamente minguando, conforme entravam no compasso de espera das entidades organizadoras.
A letargia da esquerda contrasta com a insurgência da extrema direita, que se alimenta da mobilização de quem já não tem expectativa alguma. E se não é possível descartar totalmente uma vitória imprevista de Bolsonaro nas urnas, tampouco se pode desprezar as ameaças de ruptura da ordem, sempre adiadas, de forma a conservar sua militância numa prontidão quase paranoica enquanto mantém a oposição na defensiva, hipnotizada pela iminência do golpe decisivo que nunca chega. A política permanece em transe, numa eterna preparação para um conflito nunca conflagrado que já é, por si mesma, uma tática de guerra no arsenal da gestão “híbrida” de territórios e populações.
Apesar de contar apenas com a multidão fiel de sempre, o exercício de mobilização das tropas no feriado de 7 de setembro representou menos um sinal de impotência [144] do que um campo de testes. No dia seguinte, quando as rodovias de quinze estados do país amanheceram bloqueadas por caminhoneiros – que, até então incapazes de sustentar uma mobilização ao redor do valor do frete e dos combustíveis, mostravam força considerável em apoio à investida estratégica do presidente contra as urnas eletrônicas e o STF [145] –, o governo se viu obrigado a reconhecer que a convocatória não passava de um ensaio geral, despertando a ira de muitos manifestantes e deixando entrever um bolsonarismo que já ultrapassa o próprio Bolsonaro. Por dentro ou por fora do Estado, comandada pelo capitão ou não, “a revolução que estamos vivendo” [146] – e que “recoloca a violência, entendida como uso da força armada, na condição de recurso político fundamental” – se fará sentir para muito além de 2022, como anunciam as cenas quase surrealistas do assalto ao Capitólio e a outras casas legislativas estaduais após a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos. [147]
Marcada para o dia 11 de setembro, uma nova greve nacional de entregadores de aplicativos chegou a se confundir com as notícias da paralisação dos caminhoneiros – menos pelo apoio ao presidente do que pelo significado que a última grande greve daquela outra categoria central do setor logístico adquiriu no imaginário dos motoboys. [148] Sem a mesma repercussão do Breque dos Apps do ano anterior, a greve de 2021 se prolongou, aqui e ali, para além da data marcada. Numa distribuidora de bebidas do app Zé Delivery, na zona sul de São Paulo, motoboys decidiram começar a paralisação dois dias mais cedo para cobrar pagamentos atrasados. [149] E em São José dos Campos, no interior de São Paulo, os entregadores continuaram parados pelos cinco dias seguintes, na mais longa greve de aplicativos da história do país até então. [150]
Inspirados em um vídeo em que motoboys da capital encenam passo a passo “como brecar um shopping”, [151] os entregadores do quinto maior município do estado se dividiram em pequenos grupos para bloquear os grandes estabelecimentos da cidade, enquanto outros circulavam pelas ruas para interceptar fura-greves, além de distribuir água e comida. A cada noite, todos se reuniam numa praça para discutir os rumos do movimento e votar a continuidade da paralisação. Enquanto um aplicativo menor, recém-chegado à cidade, cedeu à pressão anunciando um aumento nas taxas, o iFood organizava uma contraofensiva e prometia uma reunião às lideranças locais, por meio de um seus “articuladores comunitários”. A notícia de que a maior plataforma de entrega de comida da América Latina abrira uma negociação – por mais limitada que fosse – diante da heroica persistência dos “trezentos de São José dos Campos”, como retratavam memes nas redes de motoboys, deu àquela derrota um gostinho de vitória e a transformou num exemplo para os arredores. Nas semanas seguintes, o interior de São Paulo foi varrido por uma sequência não coordenada de greves, que se prolongariam por vários dias em Jundiaí, Paulínia, Bauru, Rio Claro, São Carlos e Atibaia. [152]
Nos momentos de tensão que marcaram o fim da mobilização em São José dos Campos, porém, as promessas de diálogo se combinaram a outra negociação do iFood com donos de restaurantes e operadores logísticos locais que, em tom de ameaça, fizeram chegar aos motoboys o recado de que a continuidade do movimento poderia levar a “atos de violência” na cidade. [153] Ao recorrer de uma só vez a estratégias de desmobilização participacionistas e milicianas, o maior aplicativo de entregas brasileiro dá indícios a respeito do futuro do país entre Lula e Bolsonaro – ou nos lembra, simplesmente, que pelegos e jagunços sempre se cruzaram na zona cinzenta dos intermediadores populares. [154]
LUTA DE CLASSES SEM FORMA
Nos primeiros dias de março de 2019, passageiros se depararam com bilheterias fechadas em diversas estações do metrô de São Paulo. Não era de todo estranho, já que dores de cabeça com o sistema de recarga de cartões são parte da rotina de quem usa o transporte público na cidade. Aquilo que do lado de fora das cabines parecia mais um problema técnico era, entretanto, um movimento invisível dos bilheteiros terceirizados contra descontos ilegais nos salários, entre outros expedientes ilícitos utilizados com frequência pela prestadora de serviços para reduzir seus gastos com pessoal. [155] “Explorando o limite ambíguo entre a precariedade do sistema que já é normalmente disfuncional, a enrolação (...) e a ‘paralisação parcial’ de fato”, os terceirizados conduziram uma greve intermitente na qual as interrupções e o retorno ao trabalho se sucediam “em diversas bilheterias, de acordo com oportunidades, a força do momento”, e sem coordenação aparente. [156] A uma catraca de distância, o conflito passava quase despercebido aos olhos da maioria dos funcionários efetivos do metrô, conhecidos por sua intensa atividade sindical. Além de expor o abismo aberto pela terceirização dentro de um mesmo espaço de trabalho, a dificuldade em reconhecer aquela greve, completamente fora do rito oficial – sem começo nem fim delimitado, sem um anúncio claro, sem assembleias ou negociações formais –, é sinal da perda de forma do conflito social no mundo do trabalho sem forma. [157]
Como a mobilização subterrânea nas bilheterias, inúmeras paralisações de entregadores explodem e se desfazem sem contornos precisos, nos espaços de sombra voltados para o trabalho difuso que movimenta a logística urbana: docas de shoppings, bolsões de motos, centros de distribuição, dark kitchens e dark stores [158], além dos ambientes virtuais. Se entre os terceirizados do metrô a insubordinação oscilava de uma estação a outra de acordo com as brechas e a pressão do momento, entre os motoboys é comum que o conflito salte de loja em loja, de um bairro a outro, ou de cidade em cidade de maneira descontínua e imprevisível: enquanto os primeiros grevistas chegam ao seu limite de forças e recursos, um novo grupo anuncia um breque noutro canto, contagiado por vídeos e relatos que se espalham em tempo real.
Quando a alta rotatividade do trabalho é a regra, as lutas também se tornam altamente rotativas: dentro de uma mesma cidade é comum que os entregadores da “linha de frente” de um protesto não tenham participado de movimentos anteriores. E se dificulta um processo consistente de cooptação das lideranças, a dinâmica centrífuga das lutas também desafia qualquer esforço de organização do movimento. Grupos de WhatsApp surgem e são abandonados a cada mobilização, trabalhadores se reúnem e se dispersam com a mesma volatilidade com que se interrompe uma conversa na calçada quando toca um novo pedido: como moléculas de gás que se condensam na hora da tempestade, é apenas no instante do enfrentamento que ganha corpo esse proletariado em nuvem.
“Uma ‘base’ que só existe num processo de enfrentamento”, que se “dissolve tão logo a ação declina”, “não está disponível para ser gerenciada”. [159] Mesmo as lideranças que despontam publicamente, longe de dirigir um contingente coeso de motoboys, contam, quando muito, com uma rede difusa de seguidores, também na nuvem. Para youtubers e influencers ligados ao movimento, menos dirigentes do que “empreendedores políticos” [160], o engajamento na causa frequentemente se confunde com a carreira pessoal. Ganhar a luta não se dissocia de ganhar com a luta, o que pode significar desde a monetização de vídeos até a colaboração em ações de marketing, passando pelo convite para tornar-se dono ou gerente de uma operadora logística. A ambiguidade, que descreve uma zona de indistinção entre atuação política e trabalho, já está em alguma medida contida no vocabulário corrente dos entregadores: ser um “guerreiro” ou “ir pra luta” são expressões que podem se referir tanto ao conflito contra o aplicativo, como à guerra de baixa intensidade vivida no dia a dia da correria sobre duas rodas. [161] A profusão de candidaturas de motoristas de app nas eleições municipais de 2020, [162] em sua maioria por legendas fisiológicas e de direita, representam muito mais uma via de ascensão individual do que a tática deliberada de um movimento articulado do setor, que não existe.
Hoje, estruturas organizativas só perduram fora do conflito à medida que passam a operar como engrenagens do próprio trabalho, caso das inúmeras associações profissionais, sindicatos e cooperativas que funcionam, para os entregadores, como canais de inserção no mercado de trabalho – e também dos grandes movimentos sociais de décadas atrás, que agora subsistem como mediadores do acesso a programas governamentais e ao mercado. Basta lembrar do mais novo êxito do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) no setor financeiro, uma parceria com grandes grupos empresariais para levantar recursos para sete cooperativas de assentados – entre as quais figuram algumas das maiores produtoras de alimentos orgânicos do continente [163] –, emitindo títulos ao alcance de “pequenos e médios investidores” em uma plataforma online. [164] Diante da insuficiência e do desmantelamento das políticas de fomento à chamada “agricultura familiar”, o MST recorreu diretamente ao mercado, numa operação que captou mais de 17 milhões de reais, sem a mediação de programas governamentais, em sintonia com a crescente valorização (e quantificação) do “impacto social” dos investimentos mundo afora. [165]
Por sinal, faz algum tempo que certos movimentos sociais migraram para a nuvem. Ao longo dos anos 2000, os desafios da gestão de acampamentos com centenas de famílias nas periferias, atravessados por disputas com poderes territoriais concorrentes e sempre na iminência do despejo, fizeram com que cada vez mais movimentos de moradia – com destaque ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) – passassem a reconhecer as ocupações como um momento necessariamente provisório e adotassem, como estrutura permanente, um grande cadastro de famílias. Enquanto outras organizações constituíam uma base cobrando aluguel em prédios ocupados, o MTST expandiu suas fileiras exigindo engajamento ao invés de dinheiro: a participação nas assembleias e atos rende pontos que condicionam o acesso ao “bolsa aluguel” negociado com o governo, e o score de cada família dita o ranking da fila de espera pela casa prometida. [166] Em suma, o “trabalho de base” deu lugar ao trabalho da base. Com um núcleo de tecnologia pioneiro, o movimento digitalizou parte dessa logística interna de ocupações e manifestações em um app e, mais recentemente, lançou a campanha “Contrate quem luta”, que conta com um bot de WhatsApp capaz de conectar sem-teto cadastrados a clientes em busca de uma série de serviços. [167]
Se “a fronteira entre formas de associação voltadas para a luta coletiva e aquelas destinadas a engajar ainda mais o trabalhador na exploração se esfumaçou”, [168] não é estranho que os conflitos do nosso tempo ocorram por fora das organizações consolidadas, ou até contra elas, mas sem edificar estrutura alguma em seu lugar. A maior onda de greves da história do país, de 2011 a 2018 – e não nos anos 1980, como se poderia supor –, tem tão pouco a ver com o ciclo de lutas que marcou o final da ditadura que a comparação fica quase descabida. [169] Ao ressurgir em nichos fordistas relativamente estáveis quarenta anos atrás, o sindicalismo ainda nutria um horizonte de ampliação de conquistas, no qual se forjaram novas e importantes organizações de massa, integradas no esforço geral de “construção da democracia” – mantra que, de lá pra cá, se dissiparia “num presente perpétuo de trabalho redobrado” [170]. Ao longo da última década, as greves passaram “a ocorrer, cada vez mais, no campo das reações imediatas, urgentes” [171]: pelo pagamento de salários atrasados e o cumprimento da legislação, contra o fechamento de unidades e demissões em massa, entre outras reivindicações “defensivas”. Levados adiante à revelia dos sindicatos e frequentemente hostis a seus representantes, tais movimentos por vezes assumiam traços insurrecionais, como as rebeliões nos canteiros de grandes obras do finado Programa de Aceleração do Crescimento [172] ou as paralisações selvagens de motoristas de ônibus fora das garagens às vésperas da Copa do Mundo [173].
A despeito da sua dimensão sem precedentes, a avalanche de greves dos anos 2010 não deixou margem para qualquer “acúmulo de forças” – nem aqui, nem na China. Ao contrário do que se poderia imaginar, a situação era parecida no coração industrial do planeta, atravessado por uma onda de motins operários no mesmo período. Sem canais oficiais de representação, as paralisações dispersas e violentas que se multiplicaram nas fábricas chinesas terminaram “incapazes de construir uma organização durável ou de articular demandas políticas”. [174] Com ares de “saque”, a greve aparecia como momento de “arrancar tudo o que fosse possível” a troco do dia a dia insuportável nos distritos industriais: “recuperar salários, bônus de férias e benefícios não pagos, ou simplesmente se vingar de gerentes que cometiam assédio sexual, de patrões que pagavam capangas para espancar trabalhadores em luta etc.” [175] Outras vezes, os operários “simplesmente pegavam o dinheiro e saíam”, chutando o balde – ou melhor, “levantando o balde” e abandonando os alojamentos, para usar a expressão típica dos trabalhadores migrantes chineses que viralizou recentemente ao lado de vídeos críticos à vida nas fábricas. [176]
Sem o antigo “horizonte de ‘conquistas’ a serem acumuladas, numa perspectiva mais ampla de integração progressiva”, o que resta às lutas do nosso tempo é refluir aos poucos ou escalar imediatamente, “assumindo sem qualquer mediação formas insurrecionais (sem antes e depois)” [177]. Daí que protestos contra um aumento nas tarifas de transporte se tornem, em poucos dias, terremotos nas ruas do Brasil ou do Chile; que a violência policial incendeie cidades na Grécia, nos Estados Unidos ou na Nigéria; que um aumento nos combustíveis paralise o Equador, a França, o Irã ou o Cazaquistão. Ainda que as reivindicações iniciais forneçam contornos mínimos a esses levantes, sua explosão tende a extrapolá-las e diluí-las em uma revolta generalizada contra a ordem – que acaba por se traduzir em muitos casos, de maneira imprecisa, em uma revolta “contra o governo”. [178]
Tão intensos quanto descontínuos, sem jamais assumir formas estáveis, os conflitos que se proliferam de um extremo ao outro do globo podem ser descritos como “não-movimentos sociais”. [179] Trazida à tona nos debates de certos círculos militantes, a expressão vem a calhar num contexto de “luta de classes sem organização de classe”, [180] cada vez mais atomizada, cuja propagação passa menos por estruturas centralizadas do que por ações que se replicam de maneira dispersa. Não-movimentos se expandem através de gestos que podem ser “copiados e imitados, acumulando instâncias de repetição” [181] e se ramificando como memes na internet – só que nas ruas, numa dinâmica que retroalimenta as redes. É o caso do Breque dos Apps, que não era uma organização nem uma campanha planejada, mas um gesto replicável difundido por meio de vídeos que seguiam o mesmo roteiro. E também das paralisações no setor de telemarketing logo após a chegada do novo coronavírus por aqui; dos bloqueios de dezenas de rotatórias por pedestres vestidos com coletes refletivos na França; dos “catracaços” estudantis e da “primera línea” nos protestos chilenos... Através da multiplicação desses atos descentralizados, os conflitos adquirem escala sem adquirir uma forma estável (quando a forma se fixa, o meme perde força e corre o risco de se converter em marca, em imagem vazia de conteúdo, numa estetização da revolta) [182].
Pressionados por tumultos difusos e sem interlocutores com quem negociar, governos e empresas ao redor do mundo têm o desafio de “responder unilateral e racionalmente a uma insurgência ‘irracional’” [183]. A formalização dos não-movimentos – isto é, sua tradução a uma gramática legível pelas instituições – aparece, aqui, como precondição para sua neutralização e incorporação. Contudo, mesmo quando as revoltas saem vitoriosas em suas reivindicações imediatas, a volta à normalidade costuma carregar a sensação de que nada melhorou, ou mesmo de que a situação piorou. A incapacidade do Estado em absorver por completo a energia de contestação deixa uma insatisfação latente, que pode se reverter no avesso do impulso original – não foi essa, afinal, a continuidade entre a revolta de junho de 2013 e a insurgência bolsonarista? [184] Da eleição de políticos que assumem abertamente a violência social à degradação em guerras civis propriamente ditas, com frequência os não-movimentos terminam acelerando a tendência destrutiva da própria crise. [185] Mobilizações intensas e desgastantes que, entretanto, não saem do lugar: estariam os conflitos do nosso tempo presos também ao ciclo infernal do nèijuǎn?
Nas paredes carbonizadas das estações de metrô de uma Hong Kong sublevada, frases como “prefiro virar cinzas do que pó” ou “se queimarmos, vocês queimam conosco” condensavam uma imagem precisa não apenas do beco sem saída enfrentado pelos amotinados daquela cidade, mas do clima sufocante que pesa sobre as revoltas do nosso tempo. [186] Se faz pouco sentido falar em acúmulo de forças, “a raiva certamente se acumula”, [187] e está sempre a um triz de descambar para a violência entre os próprios esfolados. Sem mudanças significativas nas condições de trabalho, não é incomum escutar motoboys defendendo as paralisações como uma forma de, ao menos, se vingar dos aplicativos [188] – mas o ódio coletivo pode rapidamente se voltar contra um motorista numa briga de trânsito ou contra um ladrão de motos pego em flagrante e prestes a ser linchado. Com os mesmos contornos vingativos e suicidas das explosões individuais de desespero, os enfrentamentos frequentemente se reduzem a uma escalada de violência sem sentido. [189] E alguém precisa ficar para varrer – como ocorreu na manhã seguinte à maior manifestação da história do Chile, quando imigrantes venezuelanos se organizaram para limpar voluntariamente as ruas do centro de Santiago; ou em Quito, naquele mesmo outubro de 2019, onde a faxina das barricadas ficou a cargo de um mutirão organizado pela própria Coordenação Nacional Indígena do Equador (CONAIE) após o acordo que encerrou o levante. Vistos daí, motins e rebeliões das mais variadas dimensões se tornam mais um dado rotineiro do nosso cotidiano catastrófico.
Curiosamente, a expressão “não-movimentos” apareceu primeiro na literatura sociológica para descrever o “estado constante de insegurança e mobilização” das camadas urbanas subalternas “cujos meios de vida e a reprodução sociocultural frequentemente dependem do uso ilegal dos espaços públicos da rua”, numa “longa guerra de atrito” com as autoridades nas metrópoles do Oriente Médio contemporâneo. [190] Nada muito distante da correria de marreteiros ou motoboys nas ruas brasileiras, sempre prontos a driblar uma blitz ou burlar a fiscalização, não pagar a passagem ou cruzar o farol vermelho para se virar: “esforços dispersos”, individuais, cotidianos e contínuos, que podem envolver “ações coletivas quando os ganhos são ameaçados” [191]. Com apenas uma faísca, essa rotina desesperadora de trabalho, que transita a todo momento entre a resistência e o engajamento, pode se romper numa explosão desesperada – não custa lembrar que foi a autoimolação de um ambulante cujo carrinho de frutas acabara de ser confiscado que serviu de estopim aos protestos de 2011 na Tunísia.
Na viração das esquinas, entre “empregos de merda” e “trampos” temporários – ali onde não há nada de promissor à vista a não ser cair fora –, a insubordinação irrompe com a mesma urgência, o mesmo imediatismo da produção just in time. Os conflitos explodem como um gesto desesperado, um grito de “foda-se” em que se misturam “sofrimento, frustração e revolta” [192], frequentemente sob a forma de um ato de desforra individual – ou, quando muito, coletiva. Assim como a recente onda de deserções do trabalho nos Estados Unidos [193] e em outras partes do mundo, a debandada dos call centers nos primeiros dias da pandemia no Brasil era um sinal de recusa a uma rotina que, para arcar com a “normalidade” em colapso, torna-se ainda mais infernal. A cada nova emergência – sanitária, ambiental, econômica, social –, gira o parafuso da intensificação do trabalho, todos integralmente mobilizados num esforço sem fim em que não se formam senão “experiências negativas” [194]. Se os “não-movimentos” trazem uma boa notícia, contudo, ela é justamente essa: eles “indicam que o proletariado já não tem nenhuma tarefa romântica” [195], sem ter nada a esperar e também nada a perder.
NOTAS
1 Eduardo Bolsonaro, “Fala de JB abrindo o jantar na embaixada do Brasil nos EUA (17/MAR/2019)”, YouTube, 18 mar. 2019.
2 “Para não morrer, operadores paralisam call centers em todo Brasil exigindo quarentena”, Passa Palavra, 19 mar. 2020, . Os protestos não deixam de ser um epílogo inusitado às reflexões de alguns militantes que, poucos anos antes, se defrontaram com as dificuldades de organização em um setor tão rotativo (Um grupo de militantes, “Disk Revolta: questões sobre uma tentativa recente de organização em call centers”, Passa Palavra, 30 mai. 2019). No momento em que centrais de telemarketing foram atravessadas por uma onda de paralisações sem precedentes, é significativo que a perspectiva da mobilização fosse simplesmente escapar daquele inferno.
3 Trabalhadores da Livraria Cultura, “'Nosso último grito de socorro': trabalhadores voltam a denunciar a Livraria Cultura”, Passa Palavra, 19 fev. 2020.
4 “Somos refém”, dizia um cartaz erguido por operadores na janela de uma empresa de telemarketing no centro de São Paulo no dia da “greve geral” convocada pelas centrais sindicais contra as reformas trabalhista e da previdência em 2017 (Disk Revolta, “Pedido de socorro e apoio à greve na Uranet”, Facebook, 28 abr. 2017).
5 Também aqui a batalha subterrânea na livraria revelava uma tendência. “Para qualquer sindicalista, o objetivo final traçado pelos trabalhadores da Livraria Cultura soará muito estranho: querem ser demitidos sem justa causa. Apesar dessa reivindicação só fazer sentido nos marcos da CLT (afinal, o objetivo é ganhar a rescisão), olhando em perspectiva histórica este tipo de luta já indica um adeus às promessas celetistas, pois não há mais o horizonte jurídico, político, econômico e social que ela um dia apresentou (carreira, estabilidade, direitos etc). ‘Ser demitido era visto como uma vitória’, escreveu um ex-funcionário em um comentário.” (“Por que as denúncias contra a Livraria Cultura viralizaram?”, Passa Palavra, 27 abr. 2019).
6 Um caso de pressão coletiva pelo home office foi registrado em Invisíveis de Goiânia, “Atento: resistindo à chamada da morte”, Passa Palavra, 17 abr. 2020.
7 “Conhecida por ser porta de entrada de milhares de jovens no mercado de trabalho”, a profissão de operador de call center vinha enfrentando, “nos últimos anos, (...) uma reformulação do mercado [de telemarketing], com corte de vagas e um investimento em autoatendimento”, explica o diretor do sindicato patronal do setor. As medidas de isolamento social parecem ter contribuído, contudo, para que “pela primeira vez em cinco anos” mais operadores fossem contratados do que demitidos nos doze meses encerrados em fevereiro de 2021, num movimento que uma parcela dos especialistas vê como temporário. De qualquer forma, a automatização e a dispersão da força de trabalho parecem ser tendências complementares na reestruturação da área, que estuda manter parte da mão de obra em home office depois da pandemia – e já desenvolve novos mecanismos de vigilância para tal, assim como fazem diversos outros setores. (Angelo Verotti, “Ao novo normal”, IstoÉ Dinheiro, 14 jul. 2020; Douglas Gavras, “Telemarketing reabre vagas com mudança de comportamento do consumidor pós-Covid”, Folha de S. Paulo, 8 mai. 2021; “Funcionários de call center em home office serão vigiados”, Poder 360, 28 mar. 2021).
8 Algumas dessas paralisações estão registradas no vídeo do canal Treta no Trampo, “2020 - Greve dos rodoviários!” (Instagram, 1 fev. 2021), e mencionadas em Thiago Amâncio, “Crise no transporte público na pandemia provoca greves em série por todo o país" (Folha de S. Paulo, 21 mai. 2021).
9 “Conforme a política ganha ares de guerra aberta”, sugeríamos em outra ocasião, “as tecnologias de mediação social desenvolvidas nos últimos anos soam obsoletas. (...) A onda de destruição que se abateu não apenas sobre os principais operadores do arranjo político constituído desde a redemocratização e sobre sua máquina de governo, mas também sobre algumas das maiores empresas brasileiras, precisa ser compreendida nos marcos de uma ‘aniquilação forçada de toda uma massa de forças produtivas’, movimento típico das crises capitalistas, que sempre vem acompanhado de um aprofundamento da exploração. A destruição de forças produtivas, frequentemente por meio da guerra, sempre constituiu uma saída de emergência eficiente para o capital.” (Um grupo de militantes, “‘Olha como a coisa virou’”).
10 Marcos Nobre, “O caos como método”, Piauí, abr. 2019.
11 Gabriela Lotta, “O que acontece quando a falta de decisão é o método de governo”, Nexo, 27 jan. 2020.
12 “O discurso de Bolsonaro não é um negacionismo da letalidade do vírus, ou se o é em um nível superficial”, notava um espectador dos primeiros pronunciamentos oficiais durante a pandemia: “transubstanciado num complexo humano-vírus, (...) Jair Bolsonaro se aproxima de sua forma final, um anjo da morte, um emissário da morte em massa – que melhor expressão haveria para o capital suicida?” (Felipe Kouznets, “anjinhos”, helétricuzinho, 25 mar. 2020).
13 “Bolsonaro diz que, no Exército, sua ‘especialidade é matar’”, Folha de S. Paulo, 30 jun. 2017.
14 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Mercado de Trabalho Conjuntural, ago. 2020.
15 Entre os novos usuários da plataforma, 35% relacionaram a busca por trabalho ao isolamento social (Beatriz Montesanti, “Startup israelense de trabalho freelancer chega ao Brasil”, Folha de S. Paulo, 10 nov. 2020).
[...]
119 O documentário Bloqueio (dir. Victória Álvares e Quentin Delaroche, 2018) retrata a atmosfera daqueles dias de interrupção dos fluxos, que talvez anunciassem algo do que viria pela frente. Ver também o artigo escrito no calor do momento por Gabriel Silva, “A greve dos caminhoneiros e a constante pasmaceira da extrema esquerda”, Passa Palavra, 28 mai. 2018.
120 Raquel Lopes, “Greve dos caminhoneiros tem baixa adesão e poucos problemas nas rodovias até o início da tarde”, Folha de S. Paulo, 01 fev. 2021. Um dos instrumentos utilizados para desarticular a mobilização nas estradas, a infração por “usar o veículo para interromper, restringir ou perturbar a circulação na via”, punida com uma multa exorbitante e suspensão da CNH, foi criado pelo governo da presidente Dilma Rousseff para combater os protestos de caminhoneiros pelo impeachment em 2015 e também é frequentemente empregado para reprimir o movimento dos entregadores.
121 Alvo de críticas e boicotes de motoristas ao longo de todo ano, as modalidades Uber Promo e 99 Poupa foram extintas no fim de 2021. Para um relato da onda de protestos ao redor dos combustíveis no primeiro semestre, ver Comrades in Brazil, “Petrol in the Pandemic: short report of motorised workers’ protests in Brazil”, Angry Workers of the World, 29 mai. 2021.
122 Ver Akemí Duarte, “Combustível caro faz motoristas abandonarem apps de corrida”, R7, 14 jul. 2021, “30% dos motoristas por aplicativos abandonam a função em Campinas e região”, Digital, 18 mar. 2021, Jael Lucena, “Motoristas de aplicativo devolvem carros às locadoras após decreto no AM”, D24am, 22 jan. 2022.
123 Wang Qianni e Ge Shifan, “How One Obscure Word Captures Urban China’s Unhappiness”, Sixth Tone: Fresh voices from today’s China, 4 nov. 2020.
124 “De forma (...) prosaica, a ‘involução’ agrícola ou urbana pode ser descrita como o aumento incessante da auto-exploração da mão-de-obra (mantendo fixos os outros fatores), que continua, apesar da redução do rendimento, enquanto produzir algum retorno ou incremento”, escreve Mike Davis, retomando o conceito do antropólogo Clifford Geertz, em seu estudo sobre “a involução urbana e o proletariado informal” (Mike Davis, “Planeta de favelas” em Emir Sader [org.], Contragolpes, São Paulo, Boitempo, 2006). “Tais sociedades precisam correr mais e mais rápido – apenas para se manter no mesmo lugar e não escorregar” (“China: Neijuan 内卷”, Wildcat, n. 107, 1 abr. 2021).
125 “‘Neijuan’ tornou-se agora o termo que os chineses metropolitanos usam para descrever os males de suas vidas modernas, seu senso de pisar freneticamente as águas em uma sociedade hipercompetitiva. Competição intensa com baixas chances de sucesso, seja nos exames do ensino médio, no mercado de trabalho (ou no casamento!), ou quando se trabalha horas extras loucas. Todos têm medo de perder o último ônibus – e ainda assim sabem que ele já partiu.” (“China: Neijuan 内卷”, Wildcat, cit., grifo nosso).
126 Assim como os episódios relatados na sequência, o trecho é de “Bombing the Headquarters”, Chuang, mai. 2021.
127 “Cadeirante ameaça explodir agência do INSS com bomba falsa em SP”, UOL, 16 mar. 2021.
128 Carolina Fernandes, “Homem demitido invade casa de ex-chefe e faz família refém no Sul de SC, diz polícia”, G1, 5 jul. 2021.
129 “Em Parnamirim (RN), homem joga carro contra UPA após ter atendimento negado”, Diário de Pernambuco, 22 mar. 2021.
130 João Pedro Pitombo, “Morre policial baleado após dar tiros para o alto e contra colegas no Farol da Barra, em Salvador”, Folha de S. Paulo, 28 mar. 2021.
131 Gil Santos, “Grupo faz protesto no Farol da Barra após morte de PM”, Correio, 30 mar. 2021.
132 Ver Felipe Catalani, “A decisão fascista e o mito da regressão: o Brasil à luz do mundo e vice-versa”, Blog da Boitempo, 23 jul. 2019.
133 “Foi um tiro final, vamos ver o que que vai dar”, explicava um morador do extremo sul de São Paulo no dia seguinte à eleição de Bolsonaro em outubro de 2018. Seis meses depois, outro morador afirmava aos mesmos entrevistadores: “eu vejo o país como uma fossa, um buraco. Todo presidente entrava, tinha um buraco, tampado de concreto. Passava quatro anos, e ‘ó, o buraco tá aí: quer resolver o problema, resolve, ou tampa também’. Aí veio nosso presidente, tampou, brigou pra poder aprovar a Dilma no poder, pra tampar a fossa. Quando a Dilma saiu, entrou o Temer, tentou tampar a fossa, mas ferrando a Dilma. Quando Temer saiu, o Bolsonaro chegou, e sabe o que ele fez? Quebrou a tampa da fossa. E ele tá errado? Ele tá certo. Essa fossa vem antes do Fernando Henrique, é um buraco muito grande. Então meu, ele só furou o buraco da fossa. Não cabe mais merda na fossa, já tá tudo estourado. Eu penso assim.” (Carolina Catini e Renan Santos, “Depois do fim”, Passa Palavra, 1 nov. 2018 e “Apesar do fim”, Passa Palavra, 10 jun. 2019).
134 Trata-se da fórmula sintética usada por João Bernardo para definir o fundamento do fascismo (Labirintos do Fascismo, 3ª versão, revista e aumentada, 2018).
135 Leo Vinícius, “Que horas Lula volta?”, Passa Palavra, 30 set. 2015.
136 Fabrício Bloisi (presidente do iFood), “Novas regras para novas relações de trabalho”, Folha de S. Paulo, 21 jul. 2021.
137 Não se trata, pois, de revogar a reforma trabalhista, mas de empreender algo que um articulador da campanha batizou sugestivamente de “pós-reforma”, a ser acertada, é claro, por meio da “negociação entre trabalhadores e representantes patronais” (Fábio Zanini, “Regras fiscais precisam ser revistas, diz coordenador econômico de plano do PT”, Folha de S. Paulo, 11 jul. 2021 e C. Seabra e C. Linhares, “Petistas procuram Alckmin para desfazer ruído com fala de Lula sobre lei trabalhista”, Folha de S. Paulo, 10 jan. 2022).
138 “Lula hoje apontou para uma reestatização do que está sendo privatizado da Petrobrás e para preços de combustíveis sem a paridade internacional. Nesse momento muitos caminhoneiros e motoristas de aplicativos estão literalmente parando de trabalhar pela atividade ter se tornado inviável com o preço dos combustíveis. (...) Um novo governo Lula será aquele em que o horizonte de expectativa não deve ser maior do que a da possibilidade de ganhar a vida dirigindo para aplicativos.” (Leo Vinícius, 10 mar. 2021).
139 “iFood terá 50% de mulheres na liderança e 40% de colaboradores negros até 2023”, iFood News, mai. 2021 e Pablo Polese, “A política identitária do Ifood”, Passa Palavra, nov. 2021.
140 Não deixa de ser revelador que um dos principais interlocutores do iFood com os entregadores exiba em seu currículo a passagem por programas em que a “inclusão social” por meio da “arte educação” faz parte de um esforço de “‘pacificação’ dos jovens e dos territórios mais precarizados”, como as Fábricas de Cultura em São Paulo (ver Dany e outros, “Rebelião do público-alvo? Lutas na fábrica de cultura”, Passa Palavra, 18 jul. 2016).
141 Gabriela Moncau, “iFood assina compromisso com entregadores escolhidos pela própria empresa e não aumenta repasse”, Brasil de Fato, 16 dez. 2021.
142 Luis Felipe Miguel, “Favorito em 2022, Lula pode normalizar desmonte do país se ceder demais”, Folha de S. Paulo, 14 ago. 2021. Ao assumir o governo federal no início da década de 2000, o PT desempenhou um papel análogo, completando e aprofundando, com auxílio da sua capilaridade social, o “estado de emergência econômico” implementado nas gestões de seus antecessores e criticado pelo partido enquanto estava na oposição (Ver, por exemplo, Leda Paulani, Brasil delivery, São Paulo, Boitempo, 2008).
143 Ao longo do primeiro semestre de 2021, assistimos a uma profusão de lutas corporativas pela prioridade na ordem da vacinação. Ora, somente “categorias” claramente identificáveis, ali onde o trabalho na “linha de frente” conserva alguma forma, podem reivindicar um lugar especial na fila. Naturalmente, a prioridade se limitou a trabalhadores concursados, celetistas ou diplomados: professores, policiais, metroviários, motoristas de ônibus, biólogos etc. Para muitos deles, a conquista se revertia logo na volta antecipada ao trabalho presencial – via de regra, antes da imunização completa. Nas palavras de um metroviário, “a vacina virou o novo ‘tratamento precoce’. Distribuir vacina ou distribuir cloroquina, para eles tanto faz. O que importa é continuar trabalhando, independentemente se morrem mil ou quatro mil por dia. Na mão dos capitalistas, a vacina é mais uma arma para impor a volta ao trabalho.” (Um funcionário do Metrô de São Paulo, “Prioridade para os trabalhadores do transporte?”, Passa Palavra, 14 abr. 2021).
144 “Na verdade, a murchidão acabou sendo um importante elemento, um charme” (Eduardo Moura, “'Piroca verde e amarela' do 7 de Setembro é gigante pela própria natureza, diz autor”, Folha de S. Paulo, 15 set. 2021).
145 Entre as razões para tamanha diferença entre as tentativas de paralisação frustradas dos caminhoneiros autônomos contra o aumento do combustível e a mobilização em apoio a Bolsonaro, há a suspeita de apoio do agronegócio e de transportadoras, levantada por entidades contrárias aos bloqueios iniciados em 7 de setembro. O áudio do presidente que circulava por grupos de WhatsApp da categoria na manhã seguinte se afastava da retórica explosiva dos dias anteriores e pedia que eles liberassem as estradas para “seguir a normalidade”. Enquanto parte das lideranças dos protestos, para quem estava tarde demais para recuar, era deixada à própria sorte, Bolsonaro era acusado de traição nas redes sociais, onde alguns falavam em “game over” (“O que se sabe sobre paralisação de caminhoneiros que atingiu 15 Estados”, BBC, 8 set. 2021 e “'Game over': a decepção e revolta de bolsonaristas com recuo de Bolsonaro”, BBC, 9 set. 2021).
146 A expressão é de Bolsonaro, recuperada no artigo de Gabriel Feltran, de onde saiu também a citação seguinte (“Formas elementares da vida política”, cit.).
147 Como notou um observador sagaz, “a visão de invasores assaltando furiosamente o Senado e exigindo que Mike Pence se revele; de um homem em trajes proletários com os pés em cima da mesa no escritório da (...) multimilionária Nancy Pelosi; e da diversão perversa que a maioria deles parecia estar sentindo, fornecem imagens políticas poderosas (...), por mais efêmeras que sejam”. “Num país onde a maioria dos cidadãos não vota”, onde “a violência desenfreada, o vício, as rotinas de tiroteios em massa e as epidemias de suicídio atestam uma profunda desesperança de que algo pode ser feito para melhorar a vida cotidiana”, elas “reafirmam na mente de milhões de pessoas a ideia de que medidas drásticas podem ser tomadas por gente comum” (Jarrod Shanahan, “The Big Takeover”, Hardcrackers, 7 jan. 2021).
148 Os bloqueios que pararam o Brasil há três anos são frequentemente evocados como referência pelos entregadores – alguns chegaram a levar alimentos para os grevistas de 2018 e sonham com uma união que interromperia os fluxos nas cidades e rodovias do país. Sobre a greve de 11 de setembro de 2021, ver Treta no Trampo, “Almoço brecado”, Instagram, 11 set. 2021 e “Teve jantar brecado em SP”, Instagram, 11 set. 2021.
149 Treta no Trampo, “Entregadores de aplicativo bloqueiam Zé Delivery Jabaquara”, Instagram, 9 set. 2021.
150 Amigos do Cachorro Louco, “Entregadores de app de São José dos Campos completam 6 dias em greve”, Passa Palavra, 16 abr. 2021 e Ingrid Fernandes e Victor Silva, “Como uma greve de entregadores no interior de SP enquadrou o iFood”, Ponte Jornalismo, 20 set. 2021.
151 Treta no Trampo, “Manual de como brecar um shopping”, Instagram, 29 ago. 2021.
152 Ver Amigos do Cachorro Louco, “Greves de entregadores no interior de São Paulo já completam 7 dias”, Passa Palavra, 14 out. 2021 e Gabriela Moncau, “Greves de entregadores contra apps de delivery se espalham e já duram dias”, Brasil de Fato, 11 out. 2021.
153 Durante a mobilização em São José dos Campos, além de “se desligar de alguns restaurantes sem qualquer aviso” e pressionar estabelecimentos a retomarem as entregas, o iFood ameaçou utilizar supostas “gravações de entregadores reclamando da greve” e fez chegar aos ouvidos dos grevistas “que a polícia poderia começar a comparecer nos locais piquetados” (Renato Assad, “Entregadores de São José dos Campos recuperam métodos históricos de luta e emparedam Ifood”, Esquerda Web, 24 set. 2021).
154 “Quando olhamos para os territórios populares, lideranças locais se transformam em intermediários de uma enorme quantidade de relações, regulando desde questões comerciais, domésticas, comunitárias, políticas etc. e sendo, principalmente, centralizadores de demandas e articuladores da comunidade com agentes externos.” Como nota Isadora Guerreiro, tais atravessadores são necessariamente figuras ambíguas: ao mesmo tempo em que “são parte da comunidade, se apoiam na sua existência e nas suas redes, precisando mantê-las e incentivá-las”, seus interesses econômicos “colocam claros limites a esta parceria”. “Não surpreende que, nos relatos do Breque de SJC, os comerciantes apareçam primeiramente como apoiadores e, depois, como deflagradores de uma provável violência se não houver negociação.” (Isadora Guerreiro, “Lições do Breque entre a cidade e o trabalho”, Passa Palavra, 27 set. 2021).
155 Dois funcionários do Metrô, “Metrô SP: Terceirizados da bilheteria denunciam descontos abusivos”, Passa Palavra, 3 mar. 2019.
156 “Bilheteiros do Metrô param os atendimentos contra descontos abusivos do salário”, Passa Palavra, 7 mar. 2019. Chama atenção que, no início da mobilização, um grupo de bilheteiros tenha recorrido ao sindicato que os representa legalmente frente a empresa e recebido a resposta de que “a greve só é benéfica aos funcionários públicos”, pois para os terceirizados a greve “não é legalmente aceita, e sim a paralisação”.
157 Dois anos e uma pandemia depois, numa estratégia acelerada pela perda de receita durante o período de isolamento social, o governo de São Paulo anunciaria a extinção do contrato com as prestadoras de serviço e o fechamento de todas as bilheterias do metrô, transferindo o trabalho dos funcionários para os usuários por meio de um app e máquinas de autoatendimento (Fernando Nakagawa, “Metrô de SP triplica prejuízo em 2020 e quer fechar bilheterias para economizar”, CNN, 1 abr. 2021).
158 A expansão do serviço de delivery por aplicativos vem produzindo, ao redor do mundo, a proliferação de cozinhas e lojas “fantasmas” – instalações sem atendimento presencial aos clientes, que por vezes reúnem diversos estabelecimentos virtuais, reduzindo custos com pessoal, mobiliário, estoque e aluguel (Nabil Bonduki, “Dark kitchens, que vieram para ficar, são boas para as cidades?”, Folha de S. Paulo, 16 fev. 2022). Nova frente de investimentos imobiliários, elas também se tornam pontos de reunião de entregadores, onde, com frequência, eclodem conflitos (ver, por exemplo, Treta no Trampo, “A greve na loja da Vila Madalena entra no 2º dia”, Twitter, 6 nov. 2021).
159 Francesc e El Quico, “Notas em defesa da centralidade do conflito”, Passa Palavra, 2 mar. 2021.
160 A expressão é utilizada por Rodrigo Nunes para lançar luz sobre a dimensão financeira da militância bolsonarista – um verdadeiro “fenômeno empreendedorístico”, que pode ajudar a compreender uma dinâmica presente em outras mobilizações. “Fosse pela criação de movimentos habilitados a captar recursos de destinação nebulosa, fosse pela conquista (ou reconquista) de espaços na mídia tradicional, fosse pela monetização de canais no YouTube e perfis no Instagram, eles constituíram um circuito em que a acumulação de capital político se convertia facilmente na acumulação de capital econômico, e vice-versa. Essa convertibilidade é, aliás, simultaneamente o meio pelo qual a trajetória de empreendedor político se constrói e um fim. Ao consolidar-se como influenciador, o indivíduo se cacifa para pleitear um cargo público, seja por eleição ou indicação; o cargo público, por sua vez, traz notoriedade e uma audiência fiel, retroalimentando a performance nas redes sociais. Mesmo quando não conduz a uma carreira na política, esse tipo de empreendedorismo sempre envolve vantagens pecuniárias, tanto diretas (convites para palestras, contratos publicitários e editoriais, venda de produtos como camisetas e adesivos, verbas públicas) quanto indiretas (perdão de dívidas fiscais, empréstimos, acesso a autoridades).” (Rodrigo Nunes, “