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PARALELOS: NOTAS PROVISÓRIAS SOBRE AS DETERMINAÇÕES DE UMA PINTURA
Caio Bonifácio 

Este texto é organizado como uma sequência de notas sobre a pintura Paralelos, de Éder Oliveira, exposta no 37º Panorama da Arte Brasileira – Sob as cinzas, brasa, do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). As notas aqui organizadas não formam uma sequência causal que corresponde a uma leitura fechada desse trabalho de Éder, mas são sugestões no meio do caminho.


É um texto sem rigor, se isso disser respeito à cientificidade positiva do método – talvez seja sem método, regido pelo imperativo de partir daquilo que é apresentado materialmente e dado aos sentidos como uma unidade. O trabalho de escrita aqui é ensaístico, mas também não configura um ensaio – ele ensaia estabelecer as relações possíveis entre um artefato (a pintura) e outros objetos da cultura humana, materiais ou imateriais.


Por vezes, me dedico mais a refletir sobre a pintura como linguagem (e a herança social de suas técnicas), outras vezes interrogo o bloco cerâmico e seu papel social ou a empreitada contemporânea de reconstruir a história a partir de narrativas pessoais (o agigantamento do sujeito que por vezes é simplificado).


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Em Sob as cinzas, brasa, há duas pinturas de Éder Oliveira que ocupam uma parede inteira no prédio do MAM-SP, no parque do Ibirapuera. O tamanho de cada uma extrapola a escala humana, apesar de haver em ambas figuras humanas.[1]


Se você atravessar a exposição pelo meio da sala, ao fim de uma parede falsa se abre uma outra salinha um pouco mais larga. O centro desse cômodo é ocupado por vários trabalhos de Ana Mazzei[2] e à direita estão as duas pinturas de Éder.


Primeiro, você se depara com o trabalho ao qual este texto se dedica: Paralelos, de 2022: uma tela esticada, sem chassis, presa à parede com imãs, na qual foi pintada uma cena doméstica: no interior de um edifício com paredes de bloco cerâmico[3] sem reboco, em primeiro plano, há dois homens sentados em cadeiras de plástico, um deles tem o torso pelado e costura fibra construindo um matapi,[4] o outro veste uma camiseta regata e observa interessado. Atrás deles há uma parede de bloco cerâmico que parece se estender infinitamente para a direita, dividindo uma sala grande demais para que alguma de suas arestas apareça na pintura. Do lado de lá dessa parede, no que parece ser outro cômodo, em segundo plano, há um menino pequeno ao lado de uma janela segurando um matapi e olhando para fora da pintura, na direção do observador.


Na parte de baixo da tela, bem rente ao fim do tecido, o artista fez algumas anotações: desenhos de folhas, insetos e um diagrama que mostra algo como a transformação de um ramo de planta em pincel. Esses desenhos parecem rascunhos, a não ser o pincel (estágio final dessa transformação), que é pintado com um cuidado similar ao restante do trabalho.
















O homem sentado que observa é desenhado à imagem do próprio artista, o menino no outro cômodo, separado pela parede, é seu filho e o homem construindo o matapi é seu tio. Em uma publicação em seu Instagram pessoal, Éder legendou os registros fotográficos dessa pintura com uma nota a respeito dessa aprendizagem na produção do matapi: “O tio que sempre chamamos pelo nome Rebelde. Meu filho que provavelmente nunca aprenderá a fazer um mundurú/matapí.”[5]


A pintura tem aspecto de um rascunho, com exceção das figuras humanas. O espaço parece ser um ensaio, um tablado improvisado no qual as figuras humanas desempenham seus papéis. De fato, a cadeira na qual está sentado o homem que observa não foi terminada: só há linhas (em carvão?) que delimitam seu espaço, mas sua matéria é transparente, suas cores são as do chão e da parede que está atrás dela, mas que se confunde com ela.[6] O chão, as paredes e a paisagem sugerida na janela (que poderia ser confundida com uma pintura também, uma abstração gestual em branco e verde) são pintados com uma tinta rala, com baixa definição e pouca complexidade.


Essa é uma pintura estranha. Pouca coisa nela permite deduzir um espaço verossímil. As sombras têm projeções ilógicas: a luz que viria da janela não produz sombra da parede em primeiro plano, apenas daquela do segundo plano, as cadeiras têm sombra de uma luz vinda da direção do observador e a parede do primeiro plano tem sombra de uma luz que não poderia vir de lugar algum, senão de seu próprio interior.


Essa mesma parede, de luz anormal, apesar de ser representação e não se acanhar em se afirmar dessa forma, também desempenha um papel como parede real: ela recebe quatro pinturas pequenas com chassis. Dentre as imagens representadas nesses quadros só reconheço uma delas, feita a partir da fotografia de Tuíra Caiapó em 1989 ameaçando com um facão o então presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz. Os quadros têm formatos irregulares, pois são construídos para caber na perspectiva da parede pintada, sugerindo uma relação entre sua realidade de objeto e o espaço esboçado da representação.














Não só o espaço da representação, mas a própria tela (o espaço real onde a pintura acontece) tem qualidade próxima do rascunho: o tecido é esticado como se tivesse no ateliê, prestes a receber mais tratamento, mais camadas de tinta, mais trabalho. Configuram-se dois espaços, o da imagem e o da pintura como objeto, ambos são uma construção em meio do caminho. Sobre eles, confundindo o que está projetado com o que se apresenta ali como material, estão essas quatro pinturas colocadas, fechadas, terminadas, momentos passados e completos na história.


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Pode-se dizer que a técnica é uma das temáticas desse trabalho, por isso se mostra como uma construção, algo forjado e que não apara seus cantos – é importante que sua produção tenha sido suspensa no meio, não foi decretado o que se convenciona chamar de uma pintura terminada.


Essa construção pictórica parece fazer paralelo com a própria parede, sem reboco, que carrega consigo também um dado social, da construção civil nas casas brasileiras mais pobres, encontradas de norte a sul nas periferias de cidades grandes e pequenas. Ambas deixam evidente parte de seu processo de construção.


A produção em andamento do matapi parece sugerir também uma relação com a construção da pintura. Há uma distinção fundamental: o matapi é um artefato de origem indigena, cujas técnicas de produção e de uso são transmitidas no interior da família ou comunidade, dos mais velhos aos mais novos; enquanto a pintura tem outra dinâmica de ensino, geralmente suas técnicas são transmitidas nos ateliês de pintores, em cursos livres especializados ou em cursos universitários. Nosso caminho é tentar restituir os vínculos dessas práticas com a organização social da qual elas surgiram.


Interessa aqui pensar o processo de autonomização das artes plásticas como foi descrito por Sérgio Ferro.[7] O autor descreveu a dinâmica das guildas no medievo, que funcionavam como oficinas livres onde os aprendizes eram orientados na prática a tornarem-se também mestres. Ele identificou uma transformação dessas guildas datada do Renascimento: nesse período, a autonomização dos aprendizes passou a ser barrada por um processo de especialização em etapas de produção do objeto de arte. Assim se dá a construção de uma dependência permanente entre mestres e aprendizes, antecipando em sua fase mercantil o que seria o trabalho alienado sob o capitalismo.


A pintura a óleo sobre tela é uma transmissão europeia, que chega ao Brasil ainda depois da colonização portuguesa, com expedições coloniais holandesas e francesas. Logo seu ensino é oficializado na Academia Imperial de Belas-Artes, criada a partir da Missão Francesa no século XIX, para difundir uma produção artística da nobreza e da elite portuguesa que chegava à colônia.


Antes da difusão dessa prática acadêmica, houve o Barroco mineiro como uma manifestação artística peculiar no interior de Minas Gerais, resgatada pelos modernistas no início do século XX. Nessa região os materiais artísticos convencionais eram escassos, seja pela dificuldade de transporte ou pelo preço elevado. A produção regional foi orientada pelo uso da matéria disponível, o que acarretou, por exemplo, nas esculturas em madeira e na arquitetura com detalhes em pedra sabão, que conhecemos como atribuídas principalmente ao Aleijadinho e ao Mestre Ataíde.


Lembro isso pois os pincéis e os rascunhos na base da pintura parecem sugerir uma pesquisa que busca identificar as possibilidades dos materiais disponíveis no meio amazônico em desempenhar uma determinada função própria da pintura a óleo sobre tela. Primeiro sabe-se que é preciso pintar, depois busca-se um material que possa desempenhar essa função.


Há uma ambivalência nesse processo de aproximação entre culturas originárias e uma cultura do colonizador. Ao longo de todo continente americano existem experiências de uma fusão da cultura européia com alguns aspectos das culturas originárias desses territórios. É uma ambivalência constitutiva: esse choque dá origem a técnicas condizentes com o período histórico que se inaugura com a colonização europeia no século XVI; nesse cenário, essa prática também permite a continuidade da vida de uma técnica de produção indígena, que carrega consigo um modo de viver próprio da sociedade que a elaborou; por outro lado, isso também trabalha na ampla divulgação da cultura europeia, por possibilitar sua circulação dentro e fora dos centros metropolitanos em situações adequadas para sua compreensão.[8]


Não se pode afirmar que a pintura Paralelos opera propriamente nessa ordem da conciliação entre técnica indígena e técnica e circulação europeias (porque aspectos da técnica de construção do matapi não parecem estar envolvidos na construção da pintura, no sentido de uma “contaminação”), igualmente não se pode dizer que ela esteja na ordem do choque. Na realidade o procedimento parece ser da representação de uma técnica indígena parcialmente descontinuada por meio de uma técnica colonial, neste caso manipulada para evidenciar suas estruturas – isso feito através da ferramenta do “interminado”.


A hipótese de Sérgio Ferro a respeito da divisão do trabalho nas oficinas de artes plásticas no Renascimento segue com uma elaboração também do aspecto interminado, a partir das esculturas de escravos de Michelangelo. Sobre isso, Ferro argumenta que o aspecto interminado era, junto da produção de uma superfície perfeitamente lisa, uma das estratégias de resistência à dependência dos mestres. Ou os artistas tentavam provar sua destreza manual na produção de uma imagem que não deixasse ver vestígios do trabalho que a produziu, ou afirmavam essa mão trabalhadora a partir do aspecto interminado, evidenciando o processo de produção daquele objeto, sublinhando a gestualidade do fazer artístico.


Na pintura de Éder vemos etapas de elaboração do que está representado: seu esboço em linhas, sua camada de tinta rala e uma finalização em pinceladas mais grossas que formam uma superfície complexa com a construção de volumes. O trabalho está evidente.


Na própria pintura, o homem sentado que observa pode estar aprendendo ou não. Mas não se sabe o que ele aprende, se a técnica de construção do matapi ou se o próprio tio: seu movimento de corpo, sua constituição enquanto imagem a ser então reproduzida na superfície da tela, como pintura que se transmite enquanto construção, que também ensina. Por outro lado, essa construção da figura humana é o único aspecto terminado, fechado, que resguarda um encanto pela execução: por fim, ela não se transmite de forma pedagógica, nem enquanto algo magicamente executado, mas como um efeito de técnica e destreza especial.


É pela prática que se aprende, e praticando Éder chegou ao lugar de “ensinar” pintura, mas não tudo dela. O artista teve sua formação na Universidade Federal do Pará, em Artes Plásticas, e sua prática não foi direcionada ao matapi, mas à pintura, mais especificamente na produção de retratos a partir de imagens das notícias de crimes nos jornais.


Mesmo demonstrando a estrutura a partir da qual uma pintura é tecnicamente construída, é possível aprender apenas vendo, como em um tutorial resumido? Será que o artista não aprendeu a fazer um matapi apenas observando seu tio, por isso seu filho provavelmente nunca aprenderá? Ou será que ele mesmo não assistiu essa produção, mas elaborou essa relação apenas na pintura?


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Nas periferias brasileiras é comum encontrar casas com paredes sem reboco. Nessas paredes se vê a ordem dos blocos cerâmicos, o que pode ser interpretado como uma forma de transmissão de conhecimento pela experiência da cidade. Ao ver uma dessas casas é rápido compreender que uma fileira de tijolos precisa estar deslocada em relação às fileiras de cima e de baixo, para que a junção entre dois blocos de uma mesma fileira esteja alinhada com o meio do bloco da linha de cima. Entre cada fileira, então, uma camada de cimento. E assim teoricamente se sobe uma parede.




























De certa forma, esse elemento da cidade realiza um desejo característico da arquitetura modernista de orientação construtiva: edifícios pedagógicos e auto evidentes que fizessem com que a experiência de viver no meio urbano fosse parte de uma formação.


Se na arquitetura de Mies van der Rohe, por exemplo, o vidro desempenha um papel de tornar evidente a parte interna da casa e, de quebra, demonstra também a razão entre a estrutura de vigas de aço e a sustentação do próprio vidro. Na arquitetura popular e periférica, a ausência do reboco desempenha o papel secundário ou inconsciente de evidenciar a estrutura da casa, mesmo que ela ocorra como uma condição, não como uma escolha.[9] Ainda, a ausência do reboco em uma parede opaca, contra a transparência do vidro, cumpre uma dupla função: abre as estruturas e mantém a intimidade do ambiente doméstico.


Nas casas de vidro, a vida privada está aberta à vista, à inspeção pública e desafia o pressuposto moderno e burguês de uma intimidade que resguarda os assuntos familiares (entre eles o sexo, a economia doméstica, o gosto estético, as divisões de tarefas) à esfera privada.[10] Por outro lado, é evidente que isso poucas vezes se realiza, já que as casas de vidro geralmente pertencem a famílias ricas e estão localizadas a certa distância da vida pública, em redutos bucólicos.


A transferência do trabalho de um ambiente doméstico para o ambiente da fábrica, coletivo, e consequentemente o êxodo de trabalhadores do campo para a cidade foi condição de emergência e é parte da modernidade. No Brasil, a continuidade do trabalho em âmbito doméstico é condição de desenvolvimento da indústria e do capitalismo, então também parte de uma realização específica da modernidade.


Como o economista Francisco de Oliveira[11] argumentou, no Brasil há um “inchaço”[12] do terceiro setor (serviços e comércios), em relação ao segundo setor (indústria). Isso ocorreu para que fosse realizada a máxima extração de lucro pela apropriação da mais valia: era necessário diminuir os custos de produção, o que foi feito com a eliminação da necessidade de manter vivo o trabalhador, prescindindo à garantia de moradia em uma vila operária próxima à fábrica ou com a alimentação em restaurantes subsidiados.


No Brasil, junto aos processos de industrialização e de urbanização surge uma categoria de trabalhadores autônomos que prepara comidas para vender na porta das fábricas ou nas vias de acesso de trabalhadores aos locais de trabalho. Essa categoria é responsável também pela distribuição das produções agrícola e fabril nas ruas, em carrinhos de mão, entre outras figuras de um circuito paralelo de produção e distribuição. Nesse regime, os custos da produção ficam a cargo dos trabalhadores: por exemplo, quem vende comida na porta da fábrica prepara tudo em casa, arca com os custos de transporte, de insumos e da mão de obra. Assim, parte do processo de produção retorna ao ambiente doméstico e à vida privada como condição de desenvolvimento de um circuito industrial – ao menos no âmbito da alimentação.


Quando se considera a moradia, a falta de vilas operárias anexas às fábricas foi suprida pelos mutirões de moradia que uniam trabalhadores das indústrias de uma região para construir casas uns para os outros.[13] Esse processo teve início no Estado Novo com as políticas trabalhistas de Getúlio Vargas – portanto ocorreu entre as décadas de 1930 e 1950. Data também desse período, mas principalmente a partir da década de 1960, o ressurgimento do interesse pela alvenaria estrutural na construção civil, que resgata e desenvolve justamente o uso de tijolos cerâmicos – categoria da qual faz parte o bloco cerâmico furado representado na pintura de Éder.


Ajustando essas considerações, é necessário notar que a industrialização da região amazônica, foco do interesse do artista, é um processo que se acentua principalmente durante a ditadura militar, entre as décadas de 1970 e 1980. E é desse período o desenvolvimento de um interesse técnico especializado na alvenaria estrutural, que amplia a produção e populariza o uso do bloco cerâmico na construção civil. O bloco cerâmico vazado tem sua distribuição ampliada pela leveza e facilidade no transporte.


Um breve paralelo: algumas imagens de santos católicos difundidas pela América no período colonial eram produzidas a partir de técnicas indígenas com pasta de milho, que dava às peças leveza e resistência. Quando posicionadas em pontos estratégicos de articulação e reiteração de valores culturais indígenas, essas imagens poderiam "despertar" as almas dos povos nativos.[14]


Também o bloco cerâmico, ligado à construção civil e à casa como unidade familiar, não está totalmente desconectado da construção de habitações individuais e de longa duração, a despeito das habitações coletivas de povos indígenas nômades que habitam a região amazônica, como os Yanomami, que incendeiam suas malocas quando migram.


Podemos também pensar que a alvenaria estrutural empregada na construção civil é geralmente orientada à construção de habitações convencionais, com quartos, sala de estar, cozinha, varanda, quintal etc: cômodos especializados e devidamente separados. A construção com bloco cerâmico não é uma forma vazia, mas implica uma relação com o espaço doméstico, com o trabalho, com a região; ela carrega consigo uma ideia de família, de casa, de território.


Na pintura Paralelos a construção do espaço parece desafiar a divisão convencional, elaborando um cômodo cujo tamanho é incompreensível, porque se estende além dos limites da representação. A sala onde o matapi é construído pode ser um galpão, mas pode ser uma moradia coletiva, de uso comum. Pode também ser uma casa muito grande, mas dividida convencionalmente. Mas a que cômodos pertence o matapi? À sala de estar, à cozinha, ao quarto? A qual cômodo, na casa moderna, o trabalho pertence?


Na cena construída levanta-se algumas contradições fundamentais: a casa de paredes sem reboco é efeito de um processo de industrialização tipicamente brasileiro, que une um trabalho autônomo (doméstico, coletivo ou “amador”) a processos modernos de produção; a dinâmica de modernização, caracterizada também pela centralização do trabalho na fábrica, é parcialmente revertida pela realização doméstica, em âmbito privado, de um trabalho fundamental para manutenção do circuito industrial; a casa, como a representada, é lugar de uma forma de produção que resiste aos processos de modernização, mas também os sustenta em uma adaptação à realidade regional.


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Nesta pintura, o artista afirma sua subjetividade através do gesto, que se mostra em alguns pedaços da tela, mas sempre presente, como na parede feita com tinta rala ou nos corpos construídos com uma tinta espessa que limita o tamanho da pincelada. Essa é uma forma de presença da ação do artista na produção da pintura – uma ação temporalmente localizada que resiste ao passar do tempo, em sua marca na forma da pincelada.


Conforme afirma em entrevistas, Éder pesquisa a identidade cultural do homem amazônico. E completa que, por conta do recorte da pesquisa, as pessoas que retrata acabam sendo sempre muito parecidas com ele mesmo. Recordo então que o artista também se coloca como uma das personagens da cena representada. Como dito antes, o homem sentado observando a construção do matapi é o próprio artista.


O artista está em uma relação histórica com outros elementos da cena: os quatro quadrinhos em perspectiva, representando momentos do passado, momentos de uma presença social amazônica no quadro da história do Brasil; sua relação com seu tio, colocado em primeiro plano como no presente e articulando uma transmissão de saber regional da produção do matapi, como uma mediação entre duas gerações próximas; e seu filho ao fundo que carrega um matapi, talvez uma mirada no futuro, uma garantia da permanência daquele objeto ao menos na presença de um novo adulto.


Paralelos tematiza a técnica (de produção do matapi e da pintura) e seu produtor. Na imagem, mais que na técnica, aparece uma ideia das relações mediadas pelo matapi e por sua construção, então o artista aparece na cena como uma figura envolvida na perpetuação da técnica de produção do matapi, como um observador. Em sua aparição na superfície da pintura, nas marcas de sua pincelada, ele aparece de fora, como o corpo que produziu aquela imagem através de um aparato técnico ocidental.


Duas observações sobre aspectos formais da pintura corroboram com essa leitura: o foco nos sujeitos é reforçado pelo aspecto de rascunho, de construção incongruente do espaço, que serve como uma justificativa para o posicionamento dessas figuras;[15] as grandes dimensões da tela, a orientação de paisagem e o foco nas figuras humanas indicam uma proximidade da pintura histórica.


É possível dizer que, por sua realização técnica, essa é uma pintura feita para durar, para permanecer no tempo (como casa de alvenaria?). Ela segue algumas orientações técnicas convencionais: a tela é de algodão grosso, uma lona que resiste bem a eventuais rasgos, seu fundo é preparado com gesso acrílico a fim de proteger o algodão da corrosão dos solventes necessários para diluir a tinta a óleo. Pela ausência de cheiro de solvente na sala, é possível deduzir que o diluente utilizado foi uma terebintina, ou algum outro meio suave e inodoro, menos agressivo à tela e ao corpo.


A habitação solidamente estabelecida e feita para durar tem a capacidade de fixar mais ou menos o sujeito em um determinado espaço, estabelecendo relações a partir de sua residência. As cidades crescem, não se substituem – elas aumentam suas franjas, suas periferias. A destruição de uma cidade é possível, é claro, mas apenas quando suas estruturas barram o desenvolvimento, como no plano de avenidas de Prestes Maia, em São Paulo, no final do século XIX, e na reforma urbana de Pereira Passos, no Rio de Janeiro, no início do século XX.


As obras de arte têm uma duração prolongada justamente por sua separação do uso social. Assim se constrói um pressuposto de autonomia que garante a permanência desses objetos no tempo, além da sociedade que os produziu. A distância temporal relativa, sempre um aspecto desses objetos, serve como um deslocamento do observador, como observada por Walter Benjamin. Esse é o aspecto revolucionário do objeto de arte, sua capacidade de nos distanciar da legitimação de um cotidiano ideologicamente pronto.


Por outro lado, o discurso formulado sobre esses objetos pode tomar o sentido de legitimação de uma ordem representada, de uma determinada técnica também, desvinculada aparentemente de seu texto social, e trabalhar pela naturalização daquele objeto “sempre aqui da mesma forma”. É um tanto esse o papel da pintura histórica, fundada no século XVIII na França a fim de legitimar com uma determinada narrativa da história o lugar ocupado pelo Estado, pelo corpo da Nação e pela burguesia na nova ordem social.


É preciso considerar que o capitalismo se transmite como um texto não tecido, como um dado da natureza, e transmite assim também suas ferramentas específicas: as formas dos afetos, as delimitações territoriais e populacionais, as categorizações do corpo (de raça, de gênero, entre outros), a riqueza individual e a herança, as categorias do pensamento, as disciplinas e as específicas organizações institucionais.


Na pintura Paralelos, as figuras humanas, diferentemente do espaço, têm uma construção pesada, completa, afirmativa, não experimental. A cadeira, apenas sugerida pelo desenho de seus contornos, é um elemento confuso a ser completado e interpretado pelo observador. Já as figuras humanas parecem dadas em sua completude, por uma estratégia de redundância de suas informações que transmite um efeito de realidade – delas não há só o contorno, mas também o volume, as cores, a textura, as luzes, a escala, o escorço. Enquanto o espaço é inteiramente construído como um ensaio, uma sugestão, uma proposta efêmera, um meio do caminho, as figuras humanas já estão constituídas e são transmitidas como um dado.


Pode-se dizer que as figuras representadas nos quatro quadrinhos pendurados sobre a tela têm um outro efeito: há uma afirmação da qualidade de real pela própria distorção do chassis em uma perspectiva, que engana aquele que acha aqueles quadros estarem em continuidade com a tela maior. Eles se apresentam como um outro objeto real sobre a tela, mas as imagens têm um distanciamento causado pela representação em preto e branco. De fato, elas tratam de um outro momento histórico, na sequência temporal, em relação à história dos povos amazônicos.


A história necessita de um sujeito, ou de um modelo de subjetividade. O modelo proposto nesta tela é então do homem amazônico, fadado, como todo homem moderno, a uma identidade fragmentada. Os termos dessa fragmentação diferem de caso a caso. Neste caso, o sujeito se divide ao menos em dois pedaços: a afirmação de uma identidade regional, na persistência de uma cultura ancestral, e as exigências ou facilidades de assimilar elementos de uma cultura ocidental, industrial, artística. A casa é dividida entre sua vocação como ambiente doméstico e de trabalho, o artista está entre a produção de pintura e a de matapi.


Isso é uma questão de resposta lenta, de múltiplas tentativas. Essa resposta não se elabora teoricamente, mas na prática: no fazer artístico, na escrita e na leitura produtiva. A questão é sobre os modelos, sobre a técnica: seriam os modelos da história e da pintura apropriados para uma exigência de libertação ou de reconhecimento? Ou a produção de dependência e a propagação da forma do capitalismo estaria fincada nessas estruturas?[16]


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Tanto o modelo epistemológico da pintura quanto o da história propõem modos de ver o mundo. A imagem e a linguagem têm precedentes, é o aviso de Benjamin. Assim, seria necessário interrogar tanto o uso da técnica, em seus detalhes, sobre seus vínculos sociais e sua elaboração própria do mundo. Da mesma forma, seria fundamental interrogar a imagem sobre seus precedentes, sobre suas condições de existência e suas determinações. No encontro entre esses dois aspectos está a imagem encarnada: como o uso da técnica atravessa a significação proposta pela imagem.


Na pintura Paralelos, a imagem de dois homens em uma relação de aprendizado mediada pelo matapi, em um espaço precário, uma sala de paredes sem reboco, que canalizam simultaneamente a chegada ao território amazônico das tendências da construção civil, aliadas à facilidade proporcionada pela técnica, e a persistência de um fazer indígena. Esses elementos convivem na imagem, realizada por uma técnica europeia (em seu vínculo primário) de certa forma adaptada para dar forma a uma experiência deslocada em relação a seu surgimento. Para isso, a técnica é dobrada, modificada em alguns de seus fundamentos, mas também resiste em outros.


Chegamos a um lugar de identificação entre uma contradição representada e uma contradição atuada. Há principalmente três elementos nesse trabalho: o matapi, a pintura e o bloco cerâmico. O matapi ocupa a posição de um objeto indígena envolvido por um saber específico de produção e de uso para a pesca. A pintura sobre tela, um elemento ocidental e moderno, é articulada para o registro do matapi, mediante à recusa e à elaboração de alguns de seus aspectos convencionais – mas deixa de lado a documentação do processo de produção do matapi, presente apenas como um instantâneo de uma de suas etapas. O bloco cerâmico é um elemento moderno da construção civil que parece simbolizar o conflito do emprego da pintura na representação do matapi: a presença de um elemento moderno (com suas funções determinadas na cultura) junto a um elemento ancestral.


Portanto, esta é uma pintura em que a tensão está emergindo, como um acontecimento em processo, afinal a própria obra é apresentada como um rascunho. E as contradições citadas circunscrevem tensões existentes no campo social do qual esse objeto emerge. Afinal, a questão geracional do filho que talvez nunca aprenda a construir um matapi é também de ordem social, uma descontinuidade como efeito da colonização. Nem este texto, nem a pintura propõem solução para problemas em vias de elaboração. É óbvio que isso se dá não por uma falta de vontade, mas pelo entendimento de que a própria linguagem pode carregar consigo atualizações das dinâmicas coloniais. O texto escrito está enlaçado pela lógica colonial, assim como a pintura.


A obra exposta no MAM, no reduto bucólico modernista na cidade de São Paulo que é o Parque do Ibirapuera, com suas dinâmicas de público e isolamento, implica na circulação da discussão em consonância com os regimes de classe – além de sua localização em um bairro de classe altíssima, um dos mais caros da cidade para se viver, penso também nos novos valores dos ingressos para o museu em uma economia que cada vez mais onera o trabalhador com menores salários e aumento no custo de vida.


Pensando então sob essas condições, qual o sentido dessa pintura? Qual o sentido do artista se colocar em uma pintura que flerta com o gênero histórico? É uma proposta de legitimação de uma cultura excluída do cânone ocidental? Isso não reforça uma lógica por si mesma ocidentalizante da formação de um cânone linear no modelo da história?


Acredito ser fundamental considerar o papel que determinadas técnicas desempenham na organização social. O bloco cerâmico surge como um material na alvenaria estrutural justamente para ampliar a prática dessa técnica de construção, levando a habitação sólida e de longa permanência a regiões mais distantes dos centros urbanos.


Na cena retratada na pintura, a triangulação das três figuras humanas sugere uma transmissão: o tio produz, o sobrinho observa algo dessa produção, a criança carrega um matapi já pronto – sem o uso para pesca, mas talvez como um brinquedo. A transmissão da técnica vai se perdendo, e com isso o próprio uso do matapi.[17]


Então penso nas possibilidades de uma prática que não apenas represente a técnica, mas a incorpore. Onde, talvez, houvesse uma transformação radical da pintura, que não organizasse a experiência “pós-colonial” brasileira sob as técnicas produzidas para veicular a história europeia. Nesse sentido, a técnica de produção do matapi, de alguma forma se chocaria com a técnica de produção da pintura, em uma síntese que recusa e incorpora a função de ambas, produzindo um elemento novo advindo do encontro. É possível fazer pintura como se faz um matapi?


Primeiro sabe-se que é preciso pintar, depois busca-se um material que possa desempenhar essa função. As anotações na base da tela nos dizem isso, relatam uma prática de pintura que vem com as investigações sobre as possibilidades de usar capim como pincel. De certa forma, o tecido de algodão também pode sair do jogo, assim como a tinta a óleo e o formato retangular, dando origem a um ato de pintar que não produz uma pintura, mas outra coisa: um objeto que tem seu tempo, que transita pelo corpo social, faz presença no cotidiano, carrega uma narrativa da vida pelos traços de seu uso. Assim, quem sabe, capturar a pintura em uma armadilha.


Apesar das relações estabelecidas e das tensões propostas neste texto – que, por se darem a respeito de um objeto de arte, têm ainda o valor de relações mais ou menos estáveis – ainda há investigações pendentes de aprofundamento. O objetivo aqui é estabelecer as relações a partir de aspectos formais da pintura em questão, com as formas de produção relativas a cada um e com o lugar ocupado por eles no corpo social. Além de convidar a pensar que essas relações não podem ser tratadas como dados encerrados, afinal são problemas que ainda estão em curso, e que portanto ainda produzem novas organizações. Por fim, reforço que as transformações nesses âmbitos certamente alteram também o sentido desta interpretação – uma entre outras possíveis.