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A CRISE POLÍTICA BRASILEIRA NO FIM DA HISTÓRIA
Thomas Amorim e 
Talita Cavaignac


1.INTRODUÇÃO

O conceito de “crise”, proveniente originalmente do vocabulário médico da Grécia Antiga, como nos mostra Robert Kurz, adquire um sentido inédito nas sociedades modernas. Ao contrário das sociedades com condições agrárias e religiosas pré-modernas, onde a noção de crise não era usada como metáfora social geral para a ideia de crise social,[1] nas relações modernas de produção, ainda que possam ser ditas crises políticas, culturais etc., “o conceito [de crise] está pré-formado e sempre ensombrado pela sua origem moderna na economia objetivada e reificada do fetiche do capital”[2]. Quer dizer, é somente na modernidade que o conceito de crise se encontra atrelado a um limite inerente da própria forma social, no sentido dos limites históricos do processo de acumulação da riqueza abstrata ou da forma valor.


A concepção marxiana da crise refere-se a um limite histórico do processo de acumulação da riqueza abstrata, que alcançou hoje o seu apogeu no mercado mundial globalizado. Não há hoje nenhum nicho, objeto ou campo da vida – seja material, artístico, cultural, ideal etc. –, que não esteja sujeito à sua “economização”. Do mesmo modo, nenhuma zona do planeta que esteja à parte desse processo. Por todo lado que se olhe, o capital está a sós consigo e a globalização aparece como seu destino e triunfo final, um tipo de força da natureza ou nova condição quase ambiental para a qual se orientam as economias nacionais.[3]


Ao mesmo tempo, decorrente do fracasso do “socialismo real” no Leste Europeu aliado ao fim das ilusões com a social-democracia, por todo canto se veem os sintomas de que o mundo enfrenta um processo de crise global, enigma que se tornou mais urgente à medida que agrupamentos políticos de extrema direita ganharam alcance popular, alcançando o poder estatal, inclusive na institucionalidade política brasileira.


Hoje salta aos olhos a lacuna de perspectivas políticas voltadas ao futuro, de horizontes históricos populares de massa e de quase quaisquer experimentos sociais proponentes de programas que ultrapassem a gestão da escassez material, tida como inevitável. Uma crise política e cultural que nos propomos a pensar à luz das diversas teorias marxistas da crise e do esgotamento das perspectivas sociais do modo de produção capitalista e que bem podem ser uma chave-interpretativa decisiva para a compreensão estrutural do beco-sem saída a que o Brasil chegou.


2.BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A CRISE DO CAPITAL: CRISE DE PRODUÇÃO OU CRISE DE PODER DE COMPRA?

Um retrato do processo de crise não pode se esquivar dos limites inerentes ao sistema de produção de mercadorias, da contradição interna à valorização do valor que chega a seu epítome quando o mundo é ele mesmo uma mercadoria. Na busca ampliada e insaciável de lucro, o capital individual beneficia-se tanto mais não pela massa de valor produzida isoladamente, mas quanto maior a quota-parte da massa global de valor apropriada nas relações de concorrência. Devido à flexibilização de custos com a mão-de-obra, têm maior vantagem então justo aqueles ramos produtivos ou economias nacionais com maior capacidade tecnológica. Resulta assim, porém, uma discrepância entre os planos do capital individual e global, já que o capital global demanda e se sustenta sobre a força de trabalho viva, mas o capital individual busca otimização dos lucros, com flexibilização e redução dessa força de trabalho. É dessa dissonância que resulta a contradição essencial de que, no desenvolvimento das forças produtivas, o capital, enquanto totalidade, reduz a um mínimo precisamente aquilo que é sua própria fonte de riqueza abstrata (valor), a força de trabalho viva, levando ao limite sua própria capacidade de autovalorização.[4]


Como os capitais individuais não se realizam pela massa de valor produzida individualmente, mas pelo preço pelo qual pode vender suas mercadorias, a concorrência do mercado não é um componente supérfluo, pois, embora o movimento de concorrência não produza o valor, ele o distribui de forma desigual.[5] Resulta assim uma verdadeira guerra econômica mundial, de busca das economias nacionais por expansão desproporcional e descomunal dos mercados.


Seja como for, a contradição em suma entre o aumento incomensurável da produtividade material, de um lado, e a dificuldade cada vez mais crescente dessas mercadorias de se converterem efetivamente em capital (e em dinheiro), de outro, é tida hoje como assunto batido – logo resumida ao bordão sobre a contradição entre forças produtivas e relações de produção.[6]


Na contramão dessa extenuação, é preciso enfatizar como a recepção muitas vezes reducionista da teoria da crise teve implicações não só teóricas de ordem filológica, mas sobretudo com dimensões de nível prático-político. É que a abreviação da crise de produção (como crise do valor) a uma mera “falta do poder de compra” dos trabalhadores não só, do ponto de vista categorial, não está em nenhum momento da obra de Marx,[7] mas, sobretudo, do ponto de vista político, resultou frequentemente, no melhor dos casos, em medidas rooseveltianas, que logo mostraram seu esgotamento histórico.


Se se tem em vista, por outro lado, a contradição essencial quanto à discrepância entre a riqueza concreta e a crise do valor, ou entre a massa de produtos a inundar o mundo ininterruptamente e a dificuldade cada vez mais ampliada desses produtos de substanciarem riqueza abstrata (capital) e se converterem em dinheiro (que é a própria razão de ser das mercadorias), então a solução por medidas de ativação do mercado ou emissão monetária mostra limites constitutivos.[8]


Não é o dinheiro simples véu das mercadorias – como se pelo fato de o dinheiro poder ser substituído por meros signos dele mesmo, fosse ele próprio um símbolo, sem determinação constitutiva própria.[9] Antes, o dinheiro é realmente o único objetivo que se tem em vista com o modo de reprodução do capital e é com efeito no momento em que ele se concretiza como fim-em-si que o capital se constitui como relação social:


[No momento de crises comerciais e de produção, o dinheiro] torna-se insubstituível por mercadorias profanas [...]. Ainda há pouco o cidadão, presumindo-se esclarecido e ébrio de prosperidade, proclamava o dinheiro como uma paixão inútil. Somente a mercadoria é dinheiro. Apenas o dinheiro é mercadoria, clama-se agora por todo o mercado mundial. E como o cervo que grita por água fresca, assim grita a sua alma por dinheiro, a única riqueza.[10]


Quando o próprio dinheiro, porém, passa pela dificuldade de sua representação em valor, amparado em larga medida em capital fictício, então o próprio capital enquanto tal encontra-se em meio à crise, para a qual resulta também uma crise política, por qualquer lado que se olhe.


Como dizíamos, quando essa contradição essencial do capital é obliterada e a teoria da crise é reduzida a uma mera incongruência entre os níveis de produção e distribuição – como se se referisse somente às dificuldades de consumo da classe trabalhadora (decorrente do subemprego ou desemprego massivo) – esta limitação teórica tem reverberações no plano político. Rapidamente se deriva a conclusão da solução pelo alto, por medidas do Estado e administração do social. Para usar outros termos, como se os limites entre a massa de valor de uso e sua dificuldade crescente de representar capital pudessem ser reparados pela boa-vontade política. O mais-valor, quando reconhecido, não é problematizado enquanto tal, mas sua distribuição mais “equitativa”.


É na esteira de uma avaliação assim que Kurz faz a crítica, sobretudo, ao pós-operaísmo de Michael Hardt e Antonio Negri, para quem a conquista da classe operária passaria pela supressão da propriedade privada jurídica dos meios de produção, de modo a permitir uma distribuição “justa” ou “igual” do mais-valor, de modo que a forma do valor, agora “bem-comportada”, não teria limites históricos. Mas esta ainda é uma visão avançada dentro do pensamento de esquerda.


As formas da “esquerda realmente existente” limitam-se em sua maior parte ao Estado como aparelho de gestão das crises, tanto quanto possível: “No fundo, a esquerda quase inteira, com destaque para a esquerda dita radical [...] apenas quer organizar deste modo o melhor capitalismo ou ‘gerir ela própria’ o fetiche do capital”.[11]


Foi esta última a solução encontrada quando a esquerda chegou ao poder no Brasil, concentrou-se na ativação do mercado interno, enquanto garantiu a concentração de capital. O partido dos trabalhadores (PT) foi tanto o agente quanto a resultante brasileira na crise política que acompanha o fim da história, a corporificação do colapso do protagonismo da classe trabalhadora e mais um passo no processo de atomização social que culminou no bolsonarismo e sua política do medo.


3.O INTERCURSO DO PT E OS LIMITES POLÍTICOS DA GESTÃO DA CRISE

Duas décadas após as eleições que deveriam marcar uma guinada para a esquerda ou mesmo socialdemocrata na política pós-redemocratização brasileira, podemos considerá-la como etapa de um processo. Do ponto de vista econômico, a vitória de Lula ofereceu uma continuidade não somente da matriz neoliberal dos mandatos de Fernando Collor e Fernando Henrique, mas também do que se entendeu nos setores da burguesia como a “estabilidade” do Plano Real, com os tantos compromissos firmados por Lula de continuidade da política econômica do período anterior.


Do ponto de vista social, por outro lado, se fala por todo canto de uma ruptura notável em relação ao modelo anterior, já que, aliada a tal política econômica ortodoxa similar à de FHC (ou apesar dela), uma gestão do social baseada sobretudo no Bolsa-Família, no aumento real do salário mínimo e no sistema de crédito, com consequente promoção do mercado interno, daria as credenciais à era Lula, seja pela consciência comum de esquerda seja pelo meio intelectual brasileiro, para que pudesse ser entendida como uma virada social, propiciando a emergência de uma “nova classe média” ou “nova classe trabalhadora”,[12] cuja missão redentora seria servir de esteio à modernização brasileira.[13]


É na sequência de uma compreensão que entende a era Lula como uma transformação em termos sociais e políticos que um dos principais analistas do lulismo, André Singer, identificou esse sistema como um modelo de “diminuição da pobreza com manutenção da ordem”.[14] A nosso ver, aparecem justapostas nessa fórmula duas figuras que só podem combinar sob a invocação de uma dupla matriz: uma liderança carismática que pudesse oferecer, ao mesmo tempo, a mão esquerda do Estado, nas políticas sociais baratas e na despolitização do social, e a mão direita, na concessão ao capital: mudar para que tudo continue como está!


Singer parte de uma intenção teórica e política diversa desse tom. Mas, como ele mesmo destaca, foi o medo da instabilidade pelo público de baixíssima renda que acionou o “conservadorismo popular” – historicamente manejado ideologicamente – e impediu Lula de alcançar os pleitos em 1989, 1994 e 1998. Ele vence em 2002, mas só nas eleições de 2006 é que sua base social se desloca em especial para os estratos de renda inferior baixíssima (até 2 salários mínimos), enquanto as intenções de voto passam a cair progressivamente quanto maior a renda.


Ao invés de compreender os deslocamentos da base de Lula e do PT em 2006 da classe trabalhadora organizada para uma figura calcada no “popular” como uma despolitização, Singer vê antes aí como o lulismo teria colocado em cena uma força nova, representada por uma fração de classe que Paul Singer chamou de “subproletariados”, trabalhadores destituídos de condições mínimas, tendentes para a informalização e que, até então, estariam fora do tabuleiro político. Dada a dificuldade própria de auto-organização dessa camada, o lulismo faria emergir seus anseios políticos, ainda que constituída politicamente desde cima ou pela “via passiva”: “Lula cria um ponto de fuga para a luta de classes, que passa [...] a ser arbitrada desde cima”.


Se Chico de Oliveira,[15] em direção contrária, avalia o lulismo como uma desmobilização social geral e a redução do social ao plano da administração, Singer ressalta antes como essas camadas da miséria, que nunca tiveram voz, se constituem de maneira inédita como um bloco novo no jogo de forças políticas, não havendo que se falar, portanto, em despolitização ou desideologização.


Seja como for, dois aspectos nos chamam a atenção na fórmula de Singer sobre a “diminuição da pobreza com manutenção da ordem”. O primeiro deles refere-se à garantia de que as mudanças em jogo não envolvem horizontes transformativos. A estratégia lulista de um deslocamento para além da polaridade entre esquerda e direita ampara-se sub-repticiamente na política do medo (mudar para que nada mude) e em uma contenção da política em que o polo da crítica se desvia do binômio exploração/ dominação para a “discriminação” e gestão do individual (voltaremos a essa temática na parte final deste artigo).


Em segundo lugar, mesmo que esta não fosse a intenção de Singer, quando percebe o subproletariado e o peso dessa fração de classe “no centro da equação de classe brasileira”, sua análise encontra harmonia ao diagnóstico da crise e a toda a velha questão da queda da taxa de lucro. Não há espaço aqui para maior desenvolvimento dessa ideia, mas o que está em jogo é que um fenômeno político do tamanho do lulismo tenha como seu suporte essa legião posta à margem das condições formais do trabalho (e do valor). Que o “subproletariado” constituísse em 1976 48% da população economicamente ativa (PEA), contra apenas 28% de proletários[16], e que aquela tenha sido a base social que o lulismo soube mobilizar quase 3 décadas depois, é sinal de alarme de uma crise estrutural, que tem, a longo prazo, também seus limites políticos.


Duplo passo, então, com o afastamento do fantasma da “desordem”, de um lado, e a política de administração da miséria, de outro, a tarefa seria idealmente a promoção da via passiva da modernização brasileira. Como diria Kurz em outro contexto, a modernidade do capital (aqui representada na figura petista) “seria capaz de superar a si mesma e, no entanto, permanecer sempre a mesma”.[17] Mas já não havia espaço para os anseios da modernização... Como observa Oliveira, ainda em 2010:


Quanto o PT se mete a gerenciar o capitalismo em sua fase financeira (que é o que ele está fazendo), é devorado pelo atraso, no sentido de negar as reivindicações da classe trabalhadora e da sociedade brasileira. Ele está sendo comido não pelas forças do atraso, mas sim pelas forças do progresso. É o progresso da acumulação, dominado pelo capital financeiro. É essa a contradição que eu encontro nessa decadência do PT como partido da transformação. Esse é o nó, que é difícil de desfazer.[18]


A nosso ver, as causas do “nó” não se referem somente às especificidades da dialética entre atraso e progresso dos trópicos, ela mesma vinculada ao sistema-mundo. A difícil gestão do capital financeiro e de um processo de acumulação que parece infinito, mas que se sustenta crescentemente em bolhas, já emite seus sinais de alarme muito além das fronteiras do “sul global”,[19] vinculando-se aos limites também políticos decorrentes da crise do valor, limites que, na conjuntura brasileira, desaguam no golpe de 2016 e na ascensão do bolsonarismo.


Esse breve panorama sobre o aguçamento da contradição capitalista pode nos levar a refletir sobre os limites históricos com que nos defrontamos no campo sociopolítico e até mesmo com dinâmicas socioculturais de uma era de descrédito geral da “política de classe” e a consequente individualização das demandas por justiça e igualdade.


4.A CRISE BRASILEIRA E A AFIRMAÇÃO DO MEDO COMO SENTIMENTO POLÍTICO

O pânico moral se alastra de maneira descontrolada pelo Brasil – bem como no restante do mundo – como paródia pós-moderna da antiga politização radical. Uma destrutiva retórica de guerra divide o palco do discurso público com uma inócua pregação da paz. Civilização e barbárie parecem se entrelaçar no “fim da história”[20] e conspirar pela manutenção da política como questão moral, resultando no consequente rebaixamento do “horizonte de expectativas”[21] da pós-modernidade.


O esgotamento dos horizontes de desenvolvimento da modernidade se faz sentir quando se constata a descrença geral com as possibilidades coletivas de um futuro melhor e com o beneplácito do crescimento econômico. Tudo parece sugerir que a crise capitalista resultou na introjeção da escassez como pressuposto político fundamental e determinação de expectativas coletivas rebaixadas. O frágil discurso da esquerda social-liberal apenas procura se diferenciar do programa da direita contemporânea com slogans inclusivos, cuja legitimidade e pertinência social flutuam nos diferentes contextos, e não chega a constituir oposição ao neomalthusianismo prático – quando não teórico – que hegemoniza a política ocidental desde o fim da história.


Os limites extremos da dominação capitalista são paralelos a tais horizontes estreitos da imaginação política que já não pode mais conceber a satisfação das necessidades humanas e o bem-estar coletivo.  O presente nos apresenta uma modernização concluída, um capitalismo realizado, que já não se mostra capaz sequer de iludir com as miragens futuristas de riqueza ampla, geral e irrestrita.


A hipocrisia de Delfim Neto prometia que primeiro era “preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”.[22] O cinismo de Paulo Guedes anuncia que é melhor interromper desde já a “festa danada” de um Brasil em que supostamente “todo mundo está indo pra Disneylândia,[23] empregada doméstica [indo para] Disneylândia”. A modernização conservadora da ditadura militar prometia uma festa para que todos seriam convidados futuramente, ressalvando-se os subversivos e o restante da população matável e incômoda. O Brasil de Bolsonaro já não promete festa alguma, mas apenas o espetáculo da expulsão dos intrusos e a morte como fim em si mesmo. O projeto político condizente com o esgotamento da modernização capitalista parece ser o projeto da abundância seletiva e da escassez planejada.


As grandes expectativas da modernidade foram teorizadas por Fredric Jameson como resultante cultural de um capitalismo ainda ascendente, anterior à universalização do trabalho assalariado e à uniformidade global da forma mercadoria do capitalismo multinacional.[24] Os desníveis e assimetrias das fases pregressas do sistema-mundo apareciam espontaneamente na imaginação como sinais de um tempo histórico que estava em movimento, a “aparência objetiva” do capitalismo concorrencial e do capitalismo monopolista forjavam a preconcepção de uma ruptura vindoura.


Um Acontecimento era esperado desde o momento fundador da sociedade burguesa na Revolução Francesa, que colocou de pé não apenas o ordenamento socioeconômico da sociedade capitalista, mas pôs em jogo a atividade coletiva e as grandes forças sociais que condicionaram todas as rebeliões e combates pela justiça social do século e meio subsequente, incluindo a Revolução de 1917.[25] O futuro era universalmente profetizado como essencialmente diverso com relação ao presente. A dinâmica realista e o ímpeto cultural modernista ansiavam pela realização do processo histórico, pela realização inevitável das promessas da era da burguesia revolucionária.[26]


A exploração das matérias-primas simbólicas e das promessas históricas do mundo burguês emergente, no entanto, segundo Jameson, era finita e o processo da reificação capitalista se encarregaria de bloquear o desenvolvimento de acontecimentos potencialmente redefinidores da experiência coletiva.[27] A própria modernização era tanto um combustível explosivo para o desenvolvimento cultural e econômico quanto era uma força corrosiva para as potências coletivas nos campos culturais, sociais e políticos.


Justamente a atomização social que caracteriza a pós-modernidade teve os efeitos culturais e políticos mais acachapantes com relação as promessas de emancipação da modernidade e geraram a imagem de crise apocalíptica que permeia o discurso político no Brasil contemporâneo. A temporalidade evolucionista, que norteava a cultura burguesa em seu período clássico, foi deslocada para a onipresente linguagem espacial da política moderna, focada na micropolítica, com crescente autoconsciência da pluralidade, mas com a moldura da imaginação política crescentemente constituída pela sincronia.


Uma condição sociopolítica que é interpretada por Paulo Arantes na chave do “presentismo”, um “novo tempo do mundo” que se caracteriza pela ruína das velhas expectativas futuristas típicas das eras produtivas e revolucionárias do capitalismo.[28] O foco da figuração política contemporânea se relaciona com a gestão das populações excedentes, um gerenciamento que pode assumir as formas mais brutais de uma extrema-direita raivosa e igualmente o planejamento social e a administração filantrópica da miséria. Aspectos que de uma perspectiva não-dualista devem ser mostrados em sua intersecção e convergência como fenômenos relacionados à plenitude e crise do capitalismo avançado.


Esse fim de linha político foi prenunciado por toda a tradição da reação burguesa desde 1848, passando pelas guerras mundiais e o holocausto, além de todos os desenvolvimentismos, nacionalismos e tentativas socialistas abortadas pelas brutais ditaduras militares da América Latina. Porém, quando a regressão da etapa neoliberal do capital se impõe, a destrutividade do modo de produção capitalista se encarna na institucionalização da superexploração da força de trabalho, no desemprego,[29] na ética do “trabalho flexível”, no assédio moral programático e na exacerbação da repressão das forças policiais e militares, fenômenos cujo resultado cumulativo agora assistimos de maneira privilegiada no Brasil.[30]


O “fim da história” burguesa, como vemos, tem consequências político-ideológicas muito claras ao resolver a tensão da pulsão inovadora e expansionista do capital e o sempre-já das relações de produção em favor do último termo. A administração da propaganda ideológica e o loteamento do tempo futuro inaugurados como técnica de planejamento político na Guerra Fria se tornaram o modelo espetacular de gestão das crises nas sociedades pós-modernas.[31]


Arantes destaca que o refluxo da grande mobilização política e simbólica que deu origem aos tempos modernos inverteu o paradigma clássico, segundo o qual as metrópoles eram a vanguarda de um futuro que chegaria para todos. Hoje a marca do centro é a saturação e, por sua vez, as “sociedades ainda históricas” são as sociedades deficitárias de capital. A estagnação societária tem uma afinidade interna com a gestão hierárquica das populações excedentes, do “público-alvo”, seja na forma de políticas de violência, seja na forma de políticas assistencialistas.


O slogan de Jameson de que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo nunca se tratou apenas de uma ironia ideológica, mas sim de um diagnóstico formal sobre o que acontece com a representação sob o influxo de uma era de esgotamento das possibilidades do pensar histórico, a crise da inserção das figuras humanas individuais em tramas coletivas significativas e memoráveis.[32] À esquerda e à direita o “realismo capitalista”[33] se impôs como dominante e fez da “gestão social” a aliança secreta entre progresso e atraso, uma aliança infame entre as perspectivas utópicas de igualdade e a ideologia da incontornável dominação.


Justamente a gestão das “populações excedentes” demanda o rebaixamento da utopia da emancipação e, ao mesmo tempo, a elevação da ideologia do controle social e hierarquia. Trata-se de um encontro funesto para os discursos críticos que tentam se legitimar sem serem capazes de questionar os fundamentos dessa crise socioeconômica e catástrofe política e compreendê-las como resultado da lei do valor.[34]


Os inempregáveis são a população que já não pode encontrar função na máquina capitalista e se distanciam do “exército industrial de reserva”, restando-lhes apenas o papel passivo de objetos do desprezo ou da compaixão, a depender do governo de plantão e das ideologias correntes.  A má-fé solicitada para que se execute o serviço de administração da miséria é vista por Arantes, seguindo Christophe Dejours, como empréstimo do “zelo” típico da objetificação laboral. O manejo técnico e indiferente que caracteriza os métodos para a exploração da força de trabalho em todas as suas etapas, mas ganha expressão generalizada na fase neoliberal do sistema capitalista.


Sob a pressão da concorrência interiorizada em seu nível histórico máximo, de um jeito ou de outro todos acabam arregimentados para o serviço da “colaboração”, que não funciona se não inviabilizar seus agentes através de mil expedientes e armadilhas defensivas. Comparada a esse grandioso sistema de colaboração stricto sensu, o ciclo fordista-taylorista anterior poderia ser revisto como um regime de alienação em tempo parcial.[35]


O “colaboracionismo” com tal gestão nefasta das condições existentes só pode existir a partir de um sem-número de artimanhas ideológicas e psicológicas, mas tal é a lógica inerente ao trabalho abstrato e, ainda mais, na época de sua universalização. A concorrência extremada produz a atual guerra social e uma “zona cinzenta, com contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une o campo dos senhores e dos escravos”.[36] Toda essa selvageria contemporânea do trabalho se elucida quando consideramos a hegemonia da autopreservação através da qual Adorno e Horkheimer descrevem a violência interiorizada no contexto da dominação esclarecida.[37] Cada qual precisa se adaptar as circunstâncias da melhor maneira, ou seja, sem refletir sobre suas consequências. O Brasil de hoje é, nesse sentido, uma vanguarda e um laboratório da produção capitalista de ruínas, degradação e devastação.


Os dominantes e os dominados coparticipam do espetáculo da fragmentação e administração do caos resultante. Para Arantes, o martírio do trabalho se transforma num fim em si mesmo de maneira mais radical à medida em que a produção social se autonomiza de maneira perceptível de todos os ilusórios propósitos do Bem-estar social capitalista. O “darwinismo social” meditado e estimulado por campeões do fim da história, como M. Thatcher e R. Reagan, não poderia ter deixado de germinar nas formas políticas e subjetivas hodiernas.


Richard Sennet teoriza a atomização subjetiva e “a corrosão do caráter” como o reflexo dos riscos produzidos pelo novo mundo do trabalho “flexível”[38]. A pressão constante sobre os indivíduos, a demanda permanente pelo cumprimento de metas de curto prazo, e a erosão das possibilidades tradicionais da construção de uma carreira dão ensejo à fragmentação moral e coletiva, o que, por sua vez, fomenta a lógica do todos contra todos que ora nos envolve.


O risco, a ousadia do empreendedor e a coragem do visionário como narrativas heroicas nas ideologias organizativas condizentes com os modelos produtivos contemporâneos são vistos por Sennet como seletivos e estimulantes apenas nas camadas mais elevadas da pirâmide social, onde a insegurança e o ganho podem ser proporcionais. Nos estratos proletários, o efeito do risco é a desmoralização, a ameaça gratuita e sem significado, o perigo permanente da desclassificação e o consequente individualismo que se desobriga de quaisquer compromissos sociais ou expectativas coletivas. Sob a assombração contínua do fracasso, mediante os desabonos que espreitam a cada esquina, a figura do ego coerente e sua narrativa socialmente ascendente se desfazem.


Nessas circunstâncias, não pode haver uma narrativa de vida coerente, um momento esclarecedor de mudança iluminando o todo. Essas visões da narrativa, às vezes chamadas “pós-modernas”, refletem na verdade a experiência do tempo na moderna economia política. Um eu maleável, uma colagem de fragmentos em incessante vir a ser, sempre aberta a novas experiências – essas são as condições adequadas à experiência de trabalho de curto prazo, a instituições flexíveis e ao constante correr riscos. Mas há pouco espaço para compreender o colapso de uma carreira, se se acredita que toda história de vida é apenas uma montagem de fragmentos. Tampouco há qualquer espaço para avaliar a gravidade e a dor do fracasso se o fracasso é apenas mais um incidente.[39]


Essa crise da narrativa pessoal e pública criou o que que François Dubet chama “o tempo das paixões tristes”[40], uma era de crise política que vitimou em particular a grande narrativa da “classe social”, sublinhando a micropolítica e sua infindável miríade de narrativas individuais e especializadas. Dubet calcula em centenas o número de estratificações a que se pode chegar aplicando os diferentes critérios de desigualdades em circulação na política contemporânea. Desnecessário dizer o modo como tal aguçamento do senso de assimetria esgota as possibilidades de ação política sistêmica e o quanto está ligado à atomização, embora talvez seja pertinente enfatizar a dialética entre a crítica ideológica crescente e sua neutralização crítica.


A grande privatização da experiência que caracteriza o mundo social e político contemporâneo torna a “indignação” a paixão política mais amplamente disseminada e hegemônica. Tal indignação ou as várias indignações já não recebem o tratamento politizante clássico e nem se colocam numa moldura coletiva apta a fomentar as grandes oposições do debate público moderno, mas se articulam com o esgarçamento contínuo do tecido social, o conflito diuturno entre grupos e subgrupos e os consequentes populismos que podem direcionar a cólera social para alvos circunstanciais e flexíveis. A maleabilidade emocional da indignação pode explicar o oportunismo e seletividade com a qual é empregada na construção do “ódio como política”.[41]


Dubet afirma que a situação de erosão da classe social como categoria política central tem a ver com o desmonte dos sindicatos no contexto da “uberização” do trabalho e as correlatas ideologias do empreendedorismo, que desatam o indivíduo trabalhador da experiência da classe trabalhadora.[42]


A individualização do sofrimento social cria uma lógica de disputa entre os dominados que o sociólogo francês chama de “concorrência das desigualdades”, agora geridas com máxima consideração ao espectro das desigualdades múltiplas.[43]


Os trabalhadores migrantes que têm vocação para se tornarem trabalhadores “como os outros” são progressivamente percebidos como minorias. Quanto mais as sociedades tiverem minorias (em todo caso, quando mais elas as enxergarem), mais as solidariedades são restritivas aos semelhantes, e mais fortes seriam as desigualdades sociais.[44]


O que Dubet sente como problema dessa configuração político-ideológica não é exatamente uma nostalgia da boa e velha luta de classes, mas algo como a perda de civilidade decorrente do desgaste das regras sociais daquele conflito, a degradação de um idioma geral em favor de uma pluralidade de dialetos, cada um dos quais com sua gramática, vocabulário e acentos privados.


A resultante da nova constelação de conflitos sociais é a situação de que os agentes políticos são chamados a comparar suas situações individuais como a de seus “vizinhos”, o “privilégio” é mensurado com o viés das pequenas diferenças, enquanto os grandes abismos seguem silenciados. “O conjunto de comparações com maior proximidade possível é amplamente acentuado pela desintegração das coletividades, a começar pela coletividade do trabalho”.[45]


O viés individualista fica evidente precisamente quando se nota que a crítica desliza da exploração ou dominação para a “discriminação”, o preconceito. O subtexto social-liberal do “tempo das paixões tristes” pode também ser notado na substituição da reivindicação por igualdade pela demanda por “igualdade de oportunidades”[46]. A “inclusão”, que se mostra o contrário da discriminação, se apresenta majoritariamente como uma integração no sistema das desigualdades cristalizadas.


A atomização e predomínio da indignação como matéria-prima política produz não apenas esse civilizado clamor por uma meritocracia normativa, mas igualmente o pânico de perder posição na “ordem das desigualdades”. O barbarismo da extrema-direita faz ressurgirem os mais arcaicos preconceitos e o “espectro do comunismo” é, uma vez mais, evocado como nome para o medo em relação a própria história, a angústia de que algo possa mudar. A cólera difusa dos indivíduos serializados nas mãos da extrema-direita se volta contra as minorias – através da miragem que transforma seu ressentimento próprio e pulsão dominadora na noção de ressentimento e subversão dos oprimidos –, mas a única “grande narrativa” de que a esquerda impotente ainda goza é a negação abstrata da grande narrativa da extrema-direita e sua arma exclusiva são as propostas edulcoradas de melhoria do sistema da escassez.


O lastro objetivo da violência de direita se encontra na exploração e marginalidade social, que encontraram na gestão social sua precária resolução nacional. A militarização da vida social, por exemplo, não foi superada pelo pacto da constituição federal de 1988, e sim continuada de maneira crescente e contínua até nossos dias, produzindo uma necropolítica voltada às populações miseráveis. O “inimigo interno” da ditadura militar criou uma zona de guerra que se pulveriza por todos os poros da vida social brasileira na ausência de um real inimigo da ordem constituída. O governo Bolsonaro e o bolsonarismo são a expressão da desintegração do tecido social brasileiro e a resposta selvagem à crise da modernização nacional.


O mundo das utopias e ideologias individualizadas não pode deixar de ser o mundo distópico da desesperança coletiva. Ao contrário do que noções dualistas e a concepção aditiva do progressismo postulam, o pluralismo contemporâneo é resultado das condições sociais da pós-modernidade e a mistura de civilização e barbárie. A crise política brasileira no fim da história tem a ver com essa dialética do neoprogressismo e do neoconservadorismo, que se corporificam numa era de expectativas decrescentes, de fragmentação da narrativa política, de atomização e de privatização da experiência social.


5.CONCLUSÃO

A redução da política a discursos de ódio continuará a fazer parte da política nacional nos próximos anos porque a crise do presente não pode ser contornada por nenhum discurso de amor.  O medo e a indignação continuarão a sua dança terminal até o ponto em que se recrie um senso de historicidade coletiva, um vislumbre de um Acontecimento capaz de organizar a esperança e produzir uma práxis emancipatória orientada ao futuro.


Venha empiricamente o que vier após o governo Bolsonaro, não deixaremos de viver aquilo que Slavoj Žižek remeteu a noção de “tempo interessantes”. Na cultura popular chinesa, “os tempos interessantes” denominam as eras apocalípticas de agitação social, lutas sangrentas pelo poder, guerras e sofrimento generalizado, ou seja, tempos amaldiçoados que se deseja a encarnação apenas aos piores inimigos.[47]


Os nossos “tempos interessantes” podem ser dignos dos mais terríveis pesadelos projetados pela imaginação antiutópica, porque a sociedade do capital produziu forças produtivas e forças destrutivas incomensuráveis, capazes de dizimar a vida na Terra ou de torná-la um tormento insuportável. O capital se esforça por tornar os trabalhadores dispensáveis e, ao mesmo tempo, eternizar sua servidão numa dominação high-tech cada vez mais similar as distopias da ficção científica.


Por outro lado, ao mesmo tempo, não podemos ignorar o reverso da moeda: “os tempos interessantes” que vivemos podem se converter nos limites da grande estagnação do fim da história. A crise presente pode sublinhar a claustrofobia capitalista e inverter as valências de seu cenário pós-moderno e presentista, transformar os afetos de desamparo e medo por ele produzidos numa renovada percepção sobre os limites estruturais do capitalismo e fomentar a recuperação do senso de historicidade e prospecção social há tanto tempo perdidos por nossa sociedade.[48]

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NOTAS

1. Embora as catástrofes e ruínas nas sociedades pré-modernas pudessem contar não somente com causas externas, mas também internas, e evidentemente com conflitos materiais, não era possível uma “crise” de reprodução propriamente dita, induzida no interior da própria forma social. Assim como as categorias de dinheiro e trabalho, próprios do fetiche do capital, o conceito moderno de crise, tampouco deveria ser projetados sobre fenômenos diversos das sociedades pré-modernas. R. Kurz, Dinheiro sem valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa 2014.

2. Ibidem, 212.

3. Idem, Das Weltkapital. Globalisierung und innere Schranken des modernen warenproduzierenden Systems. Berlin 2005. 

4. “O próprio capital é a contradição em processo, [pelo fato] de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte de riqueza”, K. Marx, Grundrisse. São Paulo 2011, 588-9. “O capital trabalha, assim, pela sua própria dissolução como a forma dominante da produção”, ibidem, 583.

5. “No que diz respeito à dimensão do valor, não existe qualquer relação imediata com a quantidade individual de trabalho e o seu resultado individual, mas apenas uma dimensão total do valor do capital global, que se apresenta na mercadoria individual como uma parte da mesma não determinada de forma individual, mas unicamente através da mediação da concorrência, sob a forma do preço. Só o preço [...] é individual; o valor é sempre relativo à totalidade da sociedade. O preço só é empírico como resultado da concorrência; o valor é, por princípio, não empírico” (R. Kurz, Dinheiro sem valor. Op. cit., 163).

6. A extenuação com a discussão sobre a crise leva até um dos grandes e melhores analistas da crise social contemporânea, Paulo Arantes, a declarar em uma conferência recente que “ninguém mais aguenta ler os Grundrisse”. Cremos ser fundamental resistir a tal tendência e relacionar a crise geral de nosso tempo às categorias marxianas da crítica da economia política, porque na lógica social imanente ao modo de produção capitalista surgiu a crise como fenômeno histórico geral. P. Arantes, Passagem na Neblina – Discutindo o texto “Masterclass de fim do mundo”.

7. Ver R. Kurz, Dinheiro sem valor. Op. cit. 

8. A ampliação da capacidade de consumo pode apenas maquiar a contradição, mas não é capaz de resolver o fato de que, frente às revoluções tecnológicas, uma mesma massa de capital precisa de uma produção cada vez maior de valores de uso para se representar. Ainda, mesmo o artifício da mais-valia relativa pode apenas incubar a contradição, já que mesmo a ampliação da taxa de lucro aumenta sobre uma massa global de valor cada vez menor. Para uma crítica de Kurz à recusa de uma teoria do colapso por Michael Heinrich (o qual se ampara no argumento da mais-valia relativa), ver sobretudo o capítulo 14 de Dinheiro sem valor.

9. Ibidem.

10.  K. Marx, O Capital: crítica da economia política. Vol. 1. O processo de produção do capital. São Paulo 1996, 257-8, grifo nosso.

11. R. Kurz, Dinheiro sem valor. Op. cit., 229.

12. Jessé de Souza traz o dilema das acepções à tona, empregando a noção de “batalhadores”. J. de Souza, Os Batalhadores Brasileiros. Nova classe média ou Nova classe trabalhadora?. Belo Horizonte 2010. Catalani explicita o falso problema em torno da terminologia “nova classe média” ou “nova classe trabalhadora”. Mais do que uma concepção de fundo substancialmente distinta, tal diferenciação guardaria mais uma demarcação simbólica entre aqueles que usam um ou outro termo, gestores e tecnocratas, de um lado, e a contraposição do mundo intelectual, de outro, buscando recuperar a honra moral do trabalho no deslocamento conceitual de “nova classe média” para “nova classe trabalhadora”: “De todo modo, como a ‘classe média’ também trabalha, de algum modo ou de outro a distinção sociológica que se desejava fazer ali parecia antes uma referência a como as distinções operam socialmente em termos morais ou culturais (à maneira da distinção simbólica concebida por Pierre Bourdieu). O que está por trás do argumento é que há uma classe média representante do atraso atávico (vinculada a tudo que aparece como improdutivo, como o patrimonialismo, o rentismo, etc.), e uma outra, trabalhadora, batalhadora e ascendente, que deveria se tornar a base social de um capitalismo ‘civilizado e democrático’[...]”. F. Catalani, “A barbárie e os bárbaros: notas sobre o processo social brasileiro na crise”, em F. Santos, M. Perruso e M. Oliveira (orgs.), O pânico como política: o Brasil no Imaginário do lulismo em crise. Rio de Janeiro 2020. 

13.  Uma das poucas e mais notáveis exceções de uma avaliação do lulismo com saldo positivo foi Chico de Oliveira. Para ele, embora possa ser certo que a pobreza absoluta tenha diminuído durante a era Lula, a desigualdade não só não diminuiu como “provavelmente aumentou”. Trazendo dados comparativos, com valores que falam por si só, contra os modestos 10 a 15 bilhões de reais do Bolsa Família, o pagamento do serviço da dívida interna girou em torno de 200 bilhões – cuja maior parte é recebida por uma estimativa entre 10 e 15 mil contribuintes, segundo dados de Márcio Pochmann (apud idem, “O avesso do avesso”, Piauí, São Paulo,  out. 2009. A própria gestão da miséria, inclusive, na esteira do programa Bolsa Família, foi transformada em ativo financeiro, convertendo-se os “pobres” nos verdadeiros avalistas da dívida interna brasileira (Idem, “A clonagem”, Piauí, São Paulo, n. 61, out. 2011).

14.  A. Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo 2012.

15.  C. De Oliveira, ”Hegemonia às avessas”, Piauí, São Paulo, n. 4, jan. 2007.

16.  P. Singer apud A. Singer, Os sentidos do lulismo. Op. cit.

17.  R. Kurz, Das Weltkapital. Op. cit., 10.

18.  C. de Oliveira, “A crítica social como instrumento de diálogo público”, CULT. São Paulo, n. 146, mai. 2010. 

19.  Ver R. Kurz, Com todo vapor ao colapso. Juiz de Fora 2004.

20.  F. Fukuyama, O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro 2015. 

21. P. Arantes, O Novo Tempo do Mundo, São Paulo, Boitempo Editorial, 2014.

22.  W. Baghdassarian, “Fazer o bolo crescer para depois dividi-lo”, Gazeta do povo, Ago. 2019. 

23.  M. Ventura, “Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo pra Disney, uma festa danada’”, O Globo, fev. 2020. 

24.  F. Jameson, Representing Capital: A Reading of Volume One: A Commentary on Volume One. London 2014.

25.  P. Arantes, O Novo Tempo do Mundo.

26.  Idem, O Inconsciente Político. A Narrativa como Ato Socialmente Simbólico. São Paulo 1992.

27.  Idem, Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo 1997. 

28. O que, segundo Marildo Menegat, resulta numa crítica transcendente com a qual não precisamos estar de acordo para apreciar a clareza do diagnóstico e dos prognósticos desse colapso do horizonte de expectativas do “longo século XIX” (1789-1917). Uma espécie de pós-marxismo com inspiração da obra de Kurz produzia na obra de Arantes um modelo de crítica social relacionado, mas também afastado da crítica da economia política marxiana: “Nesta altura da sociedade burguesa, não cabem mais no seu andar ideias que se inspiram em potencialidades ou promessas emancipatórias constituídas a partir de princípios dessa mesma sociedade e que ainda não teriam sido realizados [...] O desgaste do movimento contraditório da sociedade não criou a proximidade do novo, mas apenas um acúmulo de ruínas do velho. Ela se efetiva no contrapé da autocontradição do mecanismo social, que realiza plenamente seu desenvolvimento incorporando e esvaziando outras formas (ou esperas) da contradição, como a luta de classes ou aquela decorrente do desacordo entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de produção” P. Arantes, O Novo Tempo do Mundo. São Paulo 2014, 18-9. 

29.  F. Jameson, Representing Capital. Op. cit. 

30.  A interpretação econômica dessa lógica político-econômica pode ser interpretada na chave de leitura proposta por David Harvey, que retoma ideias de Marx e Rosa Luxemburgo para designar uma “acumulação por espoliação”. Uma forma de violência típica da acumulação primitiva, da qual o capital não pode prescindir nos momentos críticos nos quais ocorre um estreitamento das possibilidades de “acumulação molecular”, a extração de mais-valor na forma da “troca pacífica” entre a força de trabalho e o capital. D. Harvey, A Condição Pós-Moderna. São Paulo 2008. 

31.  G. Debord, A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro 1997. 

32. F. Jameson, The Antinomies of Realism. London 2015. Idem, Marcas do Visível. São Paulo 2007.

33.  M. Fisher, Realismo Capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo 2020.

34.  Uma crítica antidualista evita recair no binômio maniqueísta do bem e do mal na análise de conjuntura e compreende o bolsonarismo como a metástase dos processos de degeneração da vida social que estão em curso há tempo no Brasil. Perruso argumenta que, dentre incontáveis outras questões sociais, as Unidades de Política Pacificadora no governo Lula e a lei antiterror no governo de Dilma Rousseff foram precedentes que já anunciavam o curso de militarização contínua por que passa a gestão de populações no Brasil. M. Perruso, “Golpe, onda conservadora, fascismo: a narrativa lulista como pensamento político-social”, em F. Santos, M. Perruso e M. Oliveira (orgs.), O pânico como política. Op. cit.  

35.  P. Arantes, O Novo Tempo do Mundo. Op. cit., 103. 

36.  Ibidem. 

37.  T. Adorno & M. Horkheimer, Dialética do Esclarecimento. São Paulo 1985. 

38.  R. Sennet, A corrosão do caráter. Consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro 2012. 

39.  Ibidem, 159-60. 

40.  F. Dubet, O tempo das paixões tristes: as desigualdades agora se diversificam e se individualizam, e explicam as cóleras, os ressentimentos e as indignações de nossos dias. São Paulo 2020.

41.  E. Solano (Org.), O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil. São Paulo 2018. 

42.  Nossa hipótese, ancorada na crítica de Fredric Jameson, é de que a pós-modernidade desfaz a experiência moderna de “mapeamento cognitivo” das relações sociais no sistema automatizado e globalizado da terceira fase do capitalismo industrial. Em tal leitura, está claro que se trata de implosão da “classe para si”, da “aparência objetiva” do modo de produção calcado da extração de mais-valor. Sartre chamava de “serialidade” tal condição que não deve ser compreendida como um destino petrificado, mas a dominante política dos momentos de reificação extremada. 

43.  “Enquanto outrora procurava as desigualdades ‘por trás’ das classes sociais, alguns entre eles procuravam agora as classes sociais, princípio de unidade, ‘por trás’ das desigualdades” F. Dubet, O tempo das paixões tristes. Op. cit., 28.

44.  Ibidem, 29. 

45.  Ibidem, 62. 

46.  Dubet não é inocente quanto à transformação do identitarismo num grande negócio em que a representação simbólica gera todos os dividendos do marketing, da propaganda e da mobilização libidinal. “É verdade que essas comparações criam também o mecanismo central do consumo de massa, dentro do qual as pequenas diferenças são subjetivamente exacerbadas”. Ibidem.

47.  S. Žižek, Vivendo no fim dos tempos. São Paulo 2012. 

48.  F. Jameson, Valences of the dialectic. London 2009; V. Safatle, O circuito dos afetos: Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. São Paulo 2015. 

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